Capítulo 21 — mal entendido
Depois que comemos o porco que Kael trouxe, fiquei encarando as brasas da fogueira, meio perdido nos meus próprios pensamentos.
Era estranho… poucas horas atrás, esse mesmo Kael não teria hesitado em me matar caso eu não despertasse. E agora ele estava ali, agindo normalmente, como se aquilo nunca tivesse acontecido.
Se eu parasse para pensar de verdade… era uma loucura confiar nele.
Eu costumava confiar minha vida a Kael sem nem pensar duas vezes.
Mas agora?
Agora ele me assustava.
Era como se ele fosse um lobo: às vezes calmo, até brincalhão… mas ainda assim um lobo.
E um lobo, não importa o quão amigável pareça, pode arrancar seu braço fora num segundo de descuido.
Suspirei pesadamente, tentando afastar essa sensação ruim.
“Que saco… melhor pensar em outra coisa”, pensei, esfregando as mãos sobre as pernas para afastar o nervosismo.
Me forcei a olhar para o acampamento. E então notei: Laila estava me observando de novo.
De longe.
Com um olhar intenso que me fazia estremecer.
Ela ficava sempre por perto… parecia quase colada em mim durante a refeição.
Era estranho.
Claro, eu entendia — ela tinha passado por horrores, sobreviveu a abusos constantes por um tempo que eu nem conseguia imaginar. E agora estava conosco, junto de Aiza, porque era uma das únicas sobreviventes depois que Kael massacrou aqueles caras.
Talvez… ela me admirasse por ter salvo a vida dela.
Talvez fosse só gratidão.
Mas e se fosse mais?
“Será que ela… gosta de mim?”, pensei, desconfortável, desviando o olhar.
Várias vezes ela se sentou perto de mim, e parecia que, a cada minuto, se arrastava mais para o meu lado.
Eu não estava maluco.
Eu tinha certeza disso.
Enquanto me debatia mentalmente, sentado num tronco de árvore, senti o olhar dela me atravessando como uma lança.
Era um olhar obcecado, fixo, que gelou minha espinha.
Um arrepio percorreu minhas costas, tão forte que meus ombros até estremeceram.
Engoli em seco, desviando o olhar.
Mas então, sem aviso, senti uma mão tocar meu ombro.
Pesada como uma pedra.
Gelada como neve recém-caída.
Meu corpo inteiro enrijeceu na hora. Olhei para cima, devagar, e me deparei com Kael.
Ele estava parado ali, me encarando de cima com aqueles olhos frios, sem nenhuma emoção.
— Lucas, venha comigo. E não questione. — ordenou, sua voz cortante como uma lâmina.
Eu hesitei por um instante, o estômago embrulhado.
— Tá… tudo bem — murmurei, sentindo a dúvida e o estresse se misturarem dentro de mim. Mas não me atrevi a contrariá-lo.
Me levantei rapidamente, aliviado por ter escapado daquela situação estranha com Laila, mas meu alívio durou pouco.
Percebi para onde estávamos indo.
De novo… a floresta.
“Não… não de novo… merda…” pensei, o desespero crescendo dentro de mim.
Kael andava na frente com passos firmes e silenciosos. Sem parar, virou um pouco a cabeça para falar com Aiza:
— Aiza, fica de olho enquanto eu e o Lucas vamos treinar.
Seu rosto continuava inexpressivo.
Uma máscara fria, sem nenhuma emoção.
Era assustador como ele mudava de um momento para o outro.
Pouco tempo atrás parecia até humano… agora parecia uma máquina.
E no fundo, eu sabia.
Sabia que o que vinha a seguir… não ia ser nada fácil.
Se eu tiver que lutar contra Kael novamente… eu não tenho certeza se vou conseguir.
Mesmo depois de ter despertado pela segunda vez a percepção da mana, ainda sou incapaz de utilizá-la. Agora, neste exato momento, eu sequer consigo senti-la ao meu redor — como se o mundo tivesse ficado vazio, silencioso, morto.
E, para piorar, eu não faço ideia de como mudar isso.
As duas vezes em que consegui manipular mana foram obra do acaso… pura sorte e desespero. Nem mesmo com a ajuda da mana da Galvata, um ser tão poderoso, sou capaz de conjurá-la por vontade própria.
Que tipo de fracassado precisa da força de uma entidade cósmica e ainda assim falha miseravelmente?
Sinto um nojo profundo de mim mesmo.
Esse sentimento cresce dentro de mim como um veneno, sufocando minha alma, me corroendo de dentro para fora.
É um nojo tão forte que, às vezes, me pergunto se faria alguma diferença simplesmente desaparecer.
Talvez fosse melhor. Talvez eu devesse acabar com isso de uma vez, já que sou tão patético.
Uma vergonha para todos. Para Aira. Para Galvata. Para mim mesmo.
Se eu continuar assim, nunca — NUNCA — vou evoluir.
Essa espiral de autodesprezo me acompanha enquanto seguimos caminhando pela floresta, adentrando uma área menos densa. As árvores se espalham, permitindo que feixes de luz dourada toquem o chão coberto de folhas secas. O som dos nossos passos se mistura ao farfalhar distante da floresta viva ao nosso redor.
De repente, Kael para bruscamente.
Imediatamente, meu corpo reage.
Instinto puro.
Meus músculos se contraem, meus punhos se fecham, e assumo uma postura defensiva, com o coração disparado, como um tambor martelando dentro do peito.
Não posso baixar a guarda. Um único erro… e eu vou morrer.
— Não precisa ficar assim — disse Kael, com um tom de voz calmo, mas firme. — Nós não vamos lutar. Pelo menos, não agora.
Fiquei olhando para ele, confuso e ainda em alerta. Minha respiração era pesada, e a tensão fazia meus ombros doerem.
— Então… o que viemos fazer aqui de novo? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas o medo transparecia em cada sílaba.
Kael cruzou os braços e me encarou com aquela expressão séria, impassível.
— Você acha que eu não percebi? — começou ele. — Que você ainda não consegue usar magia quando quer? Aquela luta que tivemos mais cedo foi só para testar isso. Queria ver se, sob pressão, você conseguiria despertar a mana novamente.
Se conseguisse, eu teria certeza de que, mais cedo ou mais tarde, você aprenderia a controlar essa força por vontade própria.
Engoli em seco. Cada palavra dele era como uma facada na minha insegurança.
— Então… se era só um teste, por que tentou me matar? Você mesmo disse que ia fazer isso! — perguntei, o medo misturado à revolta transbordando da minha voz.
Kael soltou um suspiro, como quem perde a paciência com uma criança teimosa.
— Era simples — disse ele, com um sorriso de lado quase debochado. — Se eu quebrasse todos os seus ossos e te deixasse à beira da morte, eu te levaria rapidamente para a cidade.
Lá tem curandeiros que poderiam restaurar seu corpo em questão de minutos.
Ele balançou a cabeça, incrédulo.
— Você realmente achou que eu ia te matar mesmo? — perguntou, rindo baixo, como se não acreditasse na minha burrice.
— É CLARO QUE EU ACHEI! — gritei, a vergonha me invadindo como uma onda esmagadora. Meu rosto queimava, e eu queria cavar um buraco e sumir ali mesmo.
Kael riu de verdade dessa vez, uma risada seca e rouca.
— Lucas, eu gosto bastante de você… e da Aira também — disse ele, com mais seriedade agora. — Não tenho nenhum motivo para querer a morte de vocês.
Além disso, mesmo que eu fosse idiota o suficiente para fazer isso, a Ayesha descobriria em pouco tempo. E aí… eu me tornaria inimigo jurado do Reino de Frewer e de todos os reinos aliados.
O jeito como ele disse aquilo… não era apenas uma ameaça — era uma certeza.
Um lembrete de que, às vezes, a política e os laços pesam tanto quanto o sangue.
Eu apenas permaneci ali, encarando Kael, enquanto a vergonha e o nojo de mim mesmo me corroíam ainda mais.
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