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    — Mas esqueça isso e vamos focar no que viemos fazer aqui — disse Kael, as palavras saindo de sua boca com firmeza e autoridade, como se ele estivesse cortando qualquer distração no ar.

    O som da sua voz foi como um comando para meu corpo, me forçando a colocar todos os pensamentos em ordem.

    — Tá… e que tipo de treinamento vamos fazer, Kael? — perguntei, a dúvida e a ansiedade misturando-se na minha voz, ainda que eu tentasse soar confiante.

    Kael me olhou com uma expressão séria, tão intensa que por um momento senti como se ele estivesse enxergando diretamente o que se passava dentro de mim.

    — Vamos fazer você usar a mana de forma consciente, Lucas — disse ele, sua voz firme como rocha.

    Eu engoli em seco.

    Sério?
    Isso ia ser difícil… muito difícil.
    Eu não fazia ideia de como tinha conseguido usar a mana daquelas duas últimas vezes. Parecia ter sido algo natural, automático, como se meu corpo tivesse agido sozinho em momentos de desespero.

    Mas eu queria ser forte.
    Muito forte.

    Não era apenas um sonho distante.
    Era uma necessidade.
    Uma urgência que queimava em cada célula do meu corpo, um grito silencioso pedindo por evolução.
    Não era mais uma questão de querer… Era algo que eu precisava dominar, algo vital para meu próprio ser.

    Agora ou nunca.

    Respirei fundo, sentindo um peso novo se acomodar sobre meus ombros, e encarei Kael com um olhar determinado, cheio de convicção.


    Kael percebeu a mudança no meu semblante e, com um gesto sutil da mão, me chamou.

    — Lucas, venha cá — disse ele, num tom que não aceitava hesitação.

    Sem pensar duas vezes, dei passos firmes em sua direção, tentando controlar a ansiedade que ameaçava explodir dentro do meu peito.
    Cada passo ecoava a decisão que eu havia tomado.

    Ao me aproximar, Kael pousou uma mão forte e firme sobre meu ombro, como se quisesse passar parte da sua própria confiança para mim.

    — Lucas — começou ele, sua voz soando baixa, mas carregada de significado —, das últimas vezes que você usou mana, seu corpo respondeu a situações extremas. Você estava em estado de emergência.
    Uma necessidade real, urgente, te obrigou a alcançar a mana que existia dentro e ao seu redor.

    Suas palavras caíam pesadas sobre mim, como se cada frase fosse um golpe direto no meu entendimento.

    — Você tinha um objetivo em mente — continuou Kael —. A vontade de vencer. A necessidade de salvar. O instinto de sobreviver.
    Lembre-se disso, Lucas.
    Das vontades que consumiam seu coração.
    Dos desejos que alimentavam sua força.
    Dos pensamentos que te empurraram para frente, quando tudo parecia perdido.

    Começo a lembrar brevemente, sentindo as memórias dos momentos de desespero e superação se acenderem na minha mente como brasas vivas.

    — Lucas, feche seus olhos — disse Kael, agora com uma calma inabalável, quase como um sussurro que carregava todo o peso da responsabilidade que eu estava prestes a assumir.

    — Está bem — respondi, e fechei meus olhos sem hesitar, entregando-me completamente ao momento.


    — Agora — disse Kael, sua voz ainda mais serena, como o som distante de um riacho —, acalme sua mente.
    Deixe todos os pensamentos irem embora.
    Abandone o medo.
    Abandone a ansiedade.
    Abandone o desejo de acertar.

    Eu respirei fundo, sentindo o ar preencher meus pulmões e depois escapar devagar, como se eu estivesse esvaziando também tudo o que me prendia.

    — Imagine que você está em uma praia — continuou Kael.
    — Sinta a areia quente sob seus pés descalços, moldando-se ao seu peso com suavidade.
    — Ouça apenas o som das ondas do mar, indo e voltando, num ritmo eterno e hipnotizante.
    — Sinta a brisa salgada tocando seu rosto, acariciando sua pele como um sussurro leve da natureza.

    Enquanto ouvia sua voz, deixei que as imagens tomassem conta da minha mente.

    O cheiro do sal, o calor do sol sobre minha cabeça, o toque frio da água nos tornozelos… tudo parecia tão real que por um instante esqueci onde estava.

    Minhas preocupações se dissolveram.
    Minhas dúvidas desapareceram.
    E tudo o que restou foi o som suave do mar e a tranquilidade profunda que começava a preencher cada espaço dentro de mim.


    — Agora, Lucas… — a voz de Kael cortava o silêncio como um veneno doce.
    — Esqueça que estou aqui.
    — Esqueça o que sente.
    — Esqueça quem você é.
    — Esqueça tudo que ama, tudo que teme, tudo que acredita.
    — Abandone seus sonhos, suas lutas, seus medos, sua identidade.
    — Deixe morrer tudo que te sustenta.
    — Agora… sinta apenas a paz.

    A voz dele não era apenas uma instrução.
    Era uma sentença.
    Uma ordem que arrastava minha mente para o abismo.

    — Deixe essa paz te invadir, Lucas… — a voz dele soava como o próprio vento da morte. — Deixe-a possuir cada célula do seu corpo, cada batida do seu coração.
    — Deixe-a apagar tudo.
    — Torne-se ela.
    — Seja ela.

    Fechei os olhos.
    E a escuridão me engoliu.

    Então senti.
    Pela primeira vez, senti.

    Não era estar em paz.
    Era ser a paz.

    Meu corpo desapareceu.
    Minha mente se dissolveu.
    Não havia mais floresta, nem praia, nem som, nem cheiro.
    Não havia eu.

    Só existia um vazio tão calmo que era quase cruel.

    Eu era o silêncio.
    Eu era o nada.
    Eu era a ausência completa de dor… de alegria… de qualquer coisa.

    E por um instante — um único, eterno instante —, isso pareceu ser suficiente.


    — Agora, Lucas… — a voz de Kael rompeu o vazio, carregada de uma violência que me rasgou em dois.
    — Imagine que essa paz foi arrancada de você.
    — Imagine que ela foi roubada.
    — Que tudo o que te restava… foi destruído.
    — Que você nunca mais vai senti-la de novo.

    Um peso insuportável esmagou meu peito.
    Era como se uma mão invisível apertasse meu coração com força brutal.
    Senti o chão sumir sob meus pés.
    Senti minha alma gritar sem fazer som.

    — Você aceita isso, Lucas? — perguntou Kael, a voz dele cheia de algo que parecia dor e raiva ao mesmo tempo.

    Minhas pernas fraquejaram.
    Minhas lágrimas caíam, quentes, grossas, violentas.
    Meu rosto tremia.
    Meu corpo tremia.

    — Não… — sussurrei, quebrado, quase sem ar. — Eu quero ela… eu preciso dela… para sempre…

    Meu grito era a última coisa que restava de mim.


    — ENTÃO CORRA ATRÁS DELA! — berrou Kael, sua voz agora como trovões arrebentando os céus.
    — PEGUE-A!
    — PUXE-A DE VOLTA COM TODA SUA FORÇA!
    — NÃO DEIXE-A IR EMBORA, LUCAS!
    — NÃO DEIXE!
    — NUNCA MAIS!
    — VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO?!
    — ELA É SUA!
    — SOMENTE SUA!
    — ELA NUNCA MAIS VAI TE SER TIRADA!

    A força das palavras dele explodiu dentro de mim como uma tempestade.

    Meu corpo se moveu antes que eu pudesse pensar.
    Eu corri.
    Corri por entre a escuridão.
    Corri atrás de uma sombra fugitiva, uma silhueta quase invisível, como se fosse feita de fumaça.

    Eu corri com o desespero de quem sabe que vai morrer.
    Com a fome de quem nunca mais vai comer.
    Com a sede de quem sabe que jamais verá água de novo.

    Mas ela era mais rápida.
    A cada passo que eu dava, ela se afastava ainda mais.

    — Eu não consigo… — soluçava, minhas pernas falhando.
    — Eu não consigo… ela é muito rápida… eu não vou conseguir…!

    Meu coração martelava tão alto que abafava meus pensamentos.
    Minha garganta queimava de tanto gritar.
    Meu corpo queria cair.
    Minha alma queria desistir.

    Mas eu não podia.
    Eu não podia perder.

    Aquela paz…
    Aquela pequena luz que me fazia existir…
    Era tudo o que eu tinha.

    E sem ela… eu já não era mais nada.

    Então, com cada lágrima, com cada grito silencioso, com cada gota do que ainda restava de mim…
    Eu continuei correndo, mas era impossível.

    —EU NÃO CONSIGO! ELE É RÁPIDO DEMAIS! EU NÃO CONSIGO! NÃO DÁ! É IMPOSSÍVEL! — berrei, minha garganta rasgando em dor enquanto lágrimas quentes desciam pelo meu rosto suado. O ar parecia me escapar, rarefeito, como se a cada segundo longe daquela paz que um dia conheci eu me aproximasse, lento e cruelmente, da própria morte. Eu sentia… sentia que se não reconquistasse aquilo, se não tomasse aquilo de volta, eu simplesmente deixaria de existir. Não era apenas uma sensação — era uma certeza cravada no meu peito.
    Aquela paz… não era só parte de mim. EU ERA AQUELA PAZ! Ela era meu sangue, minha alma, meu respirar.


    —SEJA MAIS RÁPIDO! MAIS FORTE! MAIS RESISTENTE! — a voz de Kael trovejou sobre mim, como uma tempestade prestes a destruir tudo em seu caminho — OU ENTÃO… TUDO O QUE VOCÊ AMA, TUDO O QUE VOCÊ ACREDITA, TUDO QUE VOCÊ UM DIA PROTEGEU, CADA SONHO, CADA LÁGRIMA, CADA SORRISO… VAI SER ARRANCADO DE VOCÊ! DILACERADO! ANIQUILADO! VOCÊ VAI PERDER TUDO, LUCAS! TUDO!
    —ME RESPONDA, LUCAS! — Kael rugiu, sua presença esmagadora me sufocando, me obrigando a reagir — VOCÊ VAI DEIXAR ISSO ACONTECER?!?

    Seus gritos não eram só palavras. Eram socos, choques elétricos que me atingiam, me puxando das profundezas da minha própria fraqueza.


    —NÃO! — explodi, cuspindo minha alma para o mundo, sentindo o peito se partir enquanto o ódio e o medo se fundiam em algo muito maior — NÃO! NÃO VÃO TIRAR ISSO DE MIM! NUNCAAAA!

    Era como vomitar fogo, expurgar todo o desespero, toda a dor acumulada em anos e anos de quedas e perdas.


    —CORRA, LUCAS! — a voz de Kael estourou nos meus ouvidos como um trovão — CORRA MESMO QUE SEUS OSSOS QUEBREM, MESMO QUE SUA PELE SE RASGUE, MESMO QUE VOCÊ SANGRE ATÉ NÃO SOBRAR UMA GOTA! NÃO PARE! NÃO DUVIDE! CORRA ATÉ O FIM!


    Então, reunindo cada fragmento despedaçado de força que ainda habitava dentro de mim, corri.

    Corri como se o inferno estivesse atrás de mim.
    Corri como se minha vida dependesse disso.
    Corri mesmo quando o ar se recusava a entrar nos meus pulmões, mesmo quando a dor nas pernas parecia arrancar meus músculos a cada passo.
    Corri porque sabia — sabia — que essa dor não era nada. Não era sequer uma sombra do que eu já tinha enfrentado, do que já tinha sobrevivido.

    E então eu vi.
    A sombra. A maldita sombra que roubara minha paz, que arrancara um pedaço da minha alma.

    Saltei sobre ela, um grito de guerra rasgando minha garganta, minhas unhas cravando no vazio e arrancando aquilo que me fora tirado.
    A sombra gritou sem som, esfarelando-se diante de mim, dissolvendo-se como névoa ao vento.

    E naquele momento… eu me senti inteiro novamente.
    Aquele pedaço perdido se encaixou de novo no meu ser.
    Eu… eu estava completo!


    Gritei.

    Gritei para Kael.
    Gritei para o céu.
    Gritei para o mundo inteiro ouvir.

    —EU CONSEGUI! EU CONSEGUI! EU CONSEGUIIIII! — chorei, sentindo o calor da vida invadir meu peito, abrindo meus olhos.


    Quando abri meus olhos, o tempo parecia ter se estendido em um infinito.
    Foi como despertar de um coma que durou anos.

    Ali, parado à minha frente, estava Kael.
    Sua mão firme repousava sobre meu ombro, pesada, forte… mas, ao mesmo tempo, estranhamente acolhedora.
    Seu toque parecia ancorar minha alma em um mundo que eu quase havia perdido.


    Mas então… senti.
    Algo diferente.
    Algo estranho…
    Algo familiar.

    Todos os meus sentidos estavam… vivos.
    Era como se, pela primeira vez, eu estivesse realmente enxergando, ouvindo, respirando.
    O vento que tocava minha pele parecia sussurrar.
    O chão sob meus pés pulsava, respirava.
    O universo inteiro parecia em sintonia comigo.

    E então percebi.

    A mana.

    A mesma presença que eu só tinha tocado de relance, em momentos breves e desesperados… agora fluía por mim como um rio furioso.
    Mas não era como antes.
    Não era fraca, não era distante.

    Agora ela era parte de mim.


    —Kael… — murmurei, a voz ainda rouca, ainda carregada pelo peso do que eu havia passado — Eu estou sentindo…
    —Eu acho que é a mana… É a mesma sensação… — continuei, limpando com a manga da camisa as lágrimas secas e teimosas que ainda marcavam meu rosto.

    Meu corpo inteiro tremia, não de medo… mas de algo novo. Algo maior.
    Eu era mais. Eu era diferente.


    Kael me olhou.

    E naquele olhar…
    Havia orgulho.
    Havia a certeza de quem sabia, desde o começo, que eu conseguiria.

    Ele sorriu.

    Um sorriso raro, quase impossível, rasgando aquela expressão sempre dura e implacável.

    Um dos poucos sorrisos que já vi Kael dar.
    Um sorriso que, naquele instante, significou tudo.

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