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    “As mesmas pessoas que mataram minha mãe e meu pai…”

    Essas palavras saíram da boca de Kael, mas pareciam não ter fim. Elas ecoaram na minha mente como se fossem facas sendo cravadas em meu peito, uma por uma, devagar, cortando camadas antigas de dor que eu pensava já estarem cicatrizadas.

    Eu não gostava de pensar neles. Nem na minha mãe, nem no meu pai.
    Tentei apagar essas lembranças, esconder esses sentimentos em algum canto profundo da minha mente. Não porque não os amava — pelo contrário. Mas porque lembrar deles só me fazia reviver aquele dia… o pior de todos.

    Pode parecer cruel. Frio. Mas às vezes, esquecer parece a única forma de continuar em frente.


    Meu pai era ausente. Passava mais tempo fora de casa do que comigo. Sempre ocupado, sempre com “assuntos importantes”.
    Mesmo assim, eu o admirava. E minha mãe… minha mãe era tudo.
    Ela era o coração da casa, o sorriso no fim do dia, a mão que confortava minha cabeça quando as coisas ficavam ruins.
    Aiza também estava lá — como uma irmã, uma amiga, uma companhia constante.

    Apesar da ausência do meu pai, aquela vida me bastava. Aquela casa, aquelas vozes, aquele cheiro de café pela manhã e as conversas no fim da tarde… era o meu mundo.

    E alguém destruiu tudo.

    Tiraram isso de mim. E eu… eu não vou deixar que saiam impunes.
    Se um dia eu encontrar quem fez isso… juro que vou acabar com eles com minhas próprias mãos.


    No instante em que Kael falou aquelas palavras, algo em mim se partiu. Ou talvez tenha sido despertado.

    Era como se minha alma tivesse saído do corpo e dado lugar a outra coisa. Algo antigo. Selvagem. Impiedoso.

    Meu corpo não era mais meu.
    Minhas emoções sumiram, engolidas por um redemoinho escuro.
    Eu observava tudo como quem assiste a um filme… preso atrás dos olhos, incapaz de impedir o que acontecia.


    Senti minha mana se mover de um jeito que nunca havia sentido antes.
    Ela dançava — ou melhor, pulsava — como um coração enlouquecido ao som de tambores de guerra. Cada célula do meu corpo vibrava, como se o próprio ar estivesse prestes a explodir.

    Sem pensar, sem querer, minha mão se ergueu.
    A palma aberta apontava diretamente para Kael. Mas, para mim, ele já não era Kael.

    Ele era o inimigo.
    Era o assassino.
    Era a sombra por trás da dor.

    Era o rosto que, por um breve momento, carregou tudo o que eu mais odiei.

    Kael pareceu perceber o que estava por vir. Seus olhos se arregalaram.
    E, com agilidade impressionante, ele se lançou para o lado, desviando rapidamente e com facilidade, como se aquilo fosse algo natural para ele. Nem parecia estar se esforçando.

    E então… tudo aconteceu.


    Tudo na direção para onde minha mão apontava… morreu.

    As árvores se curvaram como se estivessem sendo esmagadas por um peso invisível. Suas folhas secaram e despencaram num instante.
    As flores murcharam.
    A grama escureceu.
    Pequenos animais — esquilos, pássaros, insetos — caíram imóveis.

    O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Como se o mundo tivesse prendido a respiração.

    Foi aí que entendi: minha mana havia drenado toda a energia vital à minha frente.
    Ela sugou a vida.
    Absorveu tudo.
    Como uma entidade faminta que acordou de um longo sono.

    E, no instante seguinte, ela voltou para mim… fortalecida.


    Kael se levantou devagar, o olhar fixo em mim. Parecia impressionado, mas havia algo mais em seus olhos. Algo entre admiração e receio.

    — Lucas… isso foi incrível. Eu sabia que você conseguiria. — Ele deu um sorriso leve, tentando soar calmo. — Mas agora… já pode parar, certo? Já está bom.


    Eu não respondi.

    Nenhuma palavra.
    Nenhum som.
    Nada.

    Era como se eu tivesse esquecido como falar. Como respirar. Como existir.

    Kael não percebeu de imediato…
    Mas já não era eu ali.

    O que estava de pé diante dele… era apenas uma casca.

    Sem voz.
    Sem alma.
    Sem emoção.
    Como um boneco que perdeu o fio que o sustentava.


    Kael estreitou os olhos. A expressão dele ficou tensa. A dúvida virou certeza.

    — Lucas…? — sua voz saiu mais baixa. — Você está bem?

    Seu tom tinha medo. E ele estava certo em temer. Porque, naquele momento, eu não sabia mais quem — ou o que — eu era.


    Então meu corpo começou a balançar.
    Era como se algo dentro de mim se agitasse em desespero, pressionando meus músculos, empurrando meus ossos, tentando se libertar. Primeiro, um leve tremor nos dedos. Depois, os braços sacudiram. O tronco. As pernas. Até que tudo em mim se movia sem controle.

    Minhas articulações se dobravam de forma irregular, grotesca. Meus músculos se esticavam e contraíam como se estivessem sendo manipulados por cordas invisíveis — mas não havia dor.

    Nada.
    Nem uma fisgada.
    Nem mesmo um desconforto leve.

    A ausência de dor tornava tudo ainda mais aterrorizante.
    Eu não sentia nada além do vazio.
    O vazio absoluto.


    Minha cabeça começou a girar para os lados com uma velocidade absurda, os olhos arregalados e fixos no nada, como se eu estivesse tentando enxergar alguma coisa que não estava neste mundo.
    Parecia loucura.
    Parecia possessão.

    Como se eu fosse um boneco quebrado, tomado por uma força maligna que movia cada parte do meu corpo sem o mínimo de lógica ou piedade.
    Minha boca se abria e fechava, os dentes rangendo, os lábios se mexendo de forma frenética, enquanto sons inumanos escapavam por entre eles.

    E então… veio a voz.

    Mas não era minha voz.

    — Xala… slaxha… slxvia… — balbuciava meu corpo, repetidamente, rápido demais, como um disco riscado.

    Palavras estranhas.
    Profanas.
    Linguagens que não pertenciam a nenhum idioma conhecido, mas que mesmo assim fluíam com naturalidade da minha garganta, como se estivessem presas ali há séculos… esperando para serem libertas.


    Kael apareceu atrás de mim.
    Ele observava em silêncio, a respiração presa, os olhos arregalados pela confusão e pelo medo.

    Ele hesitou por um segundo. Talvez esperasse que eu parasse sozinho.
    Mas então percebeu que não havia mais volta — que eu já não estava ali.

    Em um movimento preciso, rápido e decidido, Kael ergueu sua mão direita.
    Com a palma aberta, ele desferiu um golpe certeiro na minha nuca.

    O som seco do impacto ecoou no ar como o estouro de uma corda sendo rompida.


    Meu corpo desabou no chão como um peso morto.

    Braços soltos.
    Rosto virado para o solo.
    Respiração lenta.

    Sem controle.
    Sem resistência.

    Por dentro, algo em mim suspirou.
    Não com os pulmões — mas com a alma.

    Eu não conseguia demonstrar nada, mas sentia. E o que eu sentia era puro alívio.

    Alívio por, finalmente, ter sido arrancado daquela prisão sufocante.
    Por ter deixado de ser um refém no meu próprio corpo.
    Por não precisar mais observar, impotente, cada movimento feito contra minha vontade.

    Era como se correntes pesadas tivessem sido quebradas dentro do meu subconsciente.
    Como se eu tivesse sido libertado de um cativeiro escuro, onde só existia angústia e silêncio.


    Tudo ficou escuro.
    Minhas pálpebras se fecharam sozinhas, como cortinas se fechando ao fim de um espetáculo macabro.

    E, no instante seguinte…
    Eu estava dormindo.

    Não um sono leve. Não um descanso passageiro.

    Mas um sono profundo.
    Silencioso.
    Sem sonhos.
    Como se meu corpo e minha alma tivessem finalmente encontrado paz… mesmo que por um breve momento.

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