Capítulo 34 — fumaça negra
Estou chegando, Laila.
Tenho que me apressar.
Meus olhos mal conseguem se manter abertos. O vento está tão forte que parece me cortar, como se lâminas invisíveis estivessem passando sobre meu rosto. Tento focar à frente, mas tudo fica turvo. O ar bate contra mim com uma violência absurda. Cada segundo é uma luta para continuar avançando. A velocidade em que estou voando… é insana. Sinto o ar rugindo ao meu redor, como se fosse um trovão contínuo.
Nunca tinha sentido isso antes. Nunca voei antes. Nem por um segundo. Na minha vida antiga, isso seria impossível. Voar? Eu mal conseguia correr. Era gordo demais pra isso.
Desde muito cedo, meu corpo foi grande… pesado. E eu sabia o motivo. Eu comia demais. Comia como se fosse a única coisa boa do mundo. Talvez fosse mesmo. Comida era a minha fuga, meu abrigo contra os abusos do meu pai. Cada tapa, cada grito, cada noite em que eu me encolhia no canto… tudo isso era esquecido por alguns minutos quando eu mastigava alguma coisa.
Naquela época, quando eu dava a primeira mordida em qualquer alimento, algo despertava em mim. Um calor estranho, um conforto que eu não conhecia. Era como se, por alguns instantes, nada mais importasse. Sentia algo parecido com felicidade — algo tão raro dentro da minha casa que parecia um sonho.
Claro, tudo mudou quando meu pai morreu. Mas não para melhor.
Na verdade, as coisas talvez tenham piorado. Ele era quem pagava todas as contas. Era por isso que minha mãe aguentava tudo: os gritos, os socos, os dias de silêncio e os de caos. Meu pai tinha um bom emprego, ganhava o suficiente para sustentar a casa inteira. Isso dava a ele a falsa sensação de poder. Ele se achava o dono de tudo — da casa, das contas, da minha mãe. E isso se traduzia em violência. Surras constantes. Todo dia. Às vezes, sem motivo algum.
O mais revoltante era o silêncio ao redor. Os vizinhos sabiam. Todos sabiam. Até o policial da casa ao lado. Mas ninguém fazia nada. Ninguém quis ajudar. Até o dia em que tudo saiu do controle. Até o dia em que ele matou meu pai.
Depois disso, minha mãe ficou sem rumo. Ela nunca havia trabalhado. Não sabia como manter uma casa sozinha. Precisou arrumar emprego o mais rápido possível. Mas não foi o suficiente.
Houve um tempo em que moramos na rua. Literalmente. Fomos expulsos do aluguel porque ela não conseguiu pagar. E mesmo sendo viúva, mesmo com um filho ao lado, o proprietário não teve piedade. Simplesmente nos colocou pra fora.
Os seres humanos… são cruéis.
Depois que as coisas começaram a se ajeitar, eu não consegui parar de comer. Talvez fosse o trauma. Talvez fosse o medo. A sensação de que, a qualquer momento, tudo poderia desmoronar de novo. Quando se passa fome, de verdade, seu corpo nunca esquece.
Nessa nova vida, eu só não voltei a engordar por causa do meu novo pai, Rike. Ele era distante, mas suas ordens eram firmes. Ele deixou claro: nada de excessos. Os empregados obedeciam. Só o essencial para mim… e para Aiza.
Nesse mundo, pessoas gordas são vistas como aberrações. Não há muitas. E as poucas que existem, vivem isoladas, exiladas. É cruel. Triste. Existe um preconceito enraizado que ninguém se dá ao trabalho de questionar.
Que pensamento inútil agora… o que estou fazendo?
Concentra, droga!
…
Espera. Que som é esse?
Tem algo estranho no ar… um barulho alto. Um estrondo. Parece uma explosão. Não está tão distante.
Forço meus olhos, mesmo com a dor da velocidade, e vejo algo no horizonte. Uma fumaça negra se ergue entre as árvores da floresta, um pouco mais à frente.
Ali! Deve ser lá!
Meu coração dispara. Meu corpo responde com mais mana. Eu me lanço à frente com ainda mais força. Preciso chegar mais rápido. Mais rápido!
Droga! Aguenta, Laila…
Estou quase aí.
Não sei o porquê, mas esses pensamentos da minha vida passada ficam vindo à tona, insistentes como sombras que não querem me deixar em paz.
Merda. Tenho que me concentrar.
Preciso focar em ajudar a Laila, junto com o Kael e a Aiza.
Droga, vamos, mais rápido!
O cheiro de fogo está entupindo meu nariz como um nó apertado que sufoca a respiração. É um cheiro forte, amargo, de queimado, que impregna o ar e parece grudar nas minhas narinas, me forçando a respirar pela boca.
A fumaça se espalha pelo céu, grossa, escura, como uma cortina opaca que cobre tudo.
Cada inspiração é um choque — ar pesado, quente, carregado de fuligem e cinzas que ardem na garganta e fazem meus olhos lacrimejarem.
A sensação é sufocante, como se o próprio ar fosse um inimigo invisível tentando me parar.
Não sei como isso aconteceu. Não entendo o que está acontecendo ali, no meio da floresta. Só sei que está errado.
Merda.
Laila, Aiza e talvez até o Kael… estão em perigo.
Eu preciso me apressar mais.
O vento frio bate no meu rosto, cortando como lâminas afiadas que parecem querer arrancar minha pele.
Nunca senti nada assim antes. Nunca tinha voado. Nunca.
Meu corpo não está acostumado a essa velocidade, a esse esforço. Cada músculo dói, cada respiração é difícil, mas eu não posso parar.
A adrenalina mistura-se com a mana que sinto vibrando forte dentro de mim, empurrando meu corpo para frente, mesmo quando parece que vai desabar.
Estou quase lá.
A fumaça e o cheiro ficam mais fortes.
O chão da floresta parece mais perto agora.
Meu coração dispara, sinto ele martelar no peito, quase querendo sair.
Então, começo a ouvir vozes.
Vozes que não conheço, que nunca ouvi antes.
São vozes ásperas, nervosas, urgentes.
Começam baixas, abafadas pela fumaça, mas vão ficando mais claras.
— Acha que pode fugir de nós, criança estúpida! — diz uma voz rouca e cheia de desprezo, alta e agressiva.
— Vai pelo outro lado, rápido! A menina valiosa está fugindo! Rápido! — outra voz responde, tensa e apressada, vindo de um outro lado da floresta.
Meu peito se aperta.
A menina… Laila.
Minha respiração acelera, o suor escorre pela testa.
Eu estou quase chegando.
E não vou deixar que eles a capturem.
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