— Finalmente te achei! — A voz de Aiza cortou o silêncio da biblioteca, aguda como um grito. Ela estava na entrada, ofegante, o vestido sujo de terra e os cabelos bagunçados, como se tivesse acabado de sair de uma briga com o jardim. — Então era aqui que você tava se escondendo?

    Fechei o livro com um tapa que ecoou nas paredes de pedra. As letras miúdas já tinham feito meus olhos doerem, e a aparição dela só piorou a dor. O livro era pesado, com a capa de couro desgastada e as páginas amareladas, cheirando a mofo e tinta velha. “Por que eu insisto em ler essas coisas?”

    — Não é da sua conta, enxerida — grunhi, evitando olhar para ela.

    O silêncio que seguiu foi curto, mas dava pra sentir o calor do olhar dela furando minha nuca. Quando levantei os olhos, Aiza estava com as bochechas vermelhas, os punhos cerrados e os lábios tremendo, como se estivesse prestes a explodir.

    — O QUE VOCÊ DISSE?! — berrou, a voz estridente fazendo meus ouvidos zumbirem.

    Antes que eu pudesse cuspir outra resposta, algo frio e úmido me atingiu no peito. A esfera de água explodiu contra minha camisa, encharcando-me num segundo. O choque gelado me fez engasgar, e a água escorreu pelas costas, molhando até as meias. A camisa grudou na pele, e o ar gelado da biblioteca fez meu corpo tremer instantaneamente.

    — Aiza! Que raio foi isso?! — gritei, levantando tão rápido que a cadeira capotou com um estrondo. Minhas mãos tentaram espremer a camisa, mas só consegui respingar água no chão. A poça se espalhou pelo mármore, refletindo a luz fraca das velas.

    Ela cruzou os braços, o sorriso de satisfação estampado no rosto redondo.

    — Ninguém manda ser mal-educado — cuspiu, girando no salto. Os passos dela ecoaram pelo corredor, cada clique das botas me fazendo ranger os dentes.

    Fiquei parado, pingando. A biblioteca cheirava a mofo e papel velho, e a luz fraca das velas projetava sombras nas estantes. “Por que ela sempre tem que estragar tudo?” Aiza, com seus seis anos e a magia que brotava dos dedos como se fosse brincadeira, era o centro das atenções desde que aprendera a conjurar água. Enquanto isso, eu ainda estava tentando sentir a magia no ar, sem sucesso.

    Meu pé chutou a cadeira caída, e o rangido metálico das dobradiças me arrepiou. “Até o mobiliário aqui é velho…” Olhei para a porta semiaberta, onde o reflexo do mármore molhado brilhava como um espelho. A vontade de correr atrás dela e esfregar terra em seu rosto perfeito era forte, mas meus joelhos tremeram. “Não. Melhor não.”

    Apertei os punhos, sentindo a água escorrer pelas pernas. O cheiro de papel úmido começou a subir das páginas do livro caído. “Ótimo. Agora vou ter que explicar pro bibliotecário…”

    Saí arrastando os pés, as botas encharcadas fazendo barulho a cada passo. No corredor, o vento frio que entrava pelas frestas das janelas me atingiu como um soco. Arrepiei, os dentes batendo. “Tá bom assim, universo? Mais uma humilhação?”

    A sombra de Aiza já tinha sumido, mas suas risadas ecoavam lá longe, junto com o barulho de passos correndo. “Deve ter ido pra cozinha, pra se gabar pra mãe…” Menti pra mim mesmo, fingindo que não me importava.

    Parei na frente de um vitral quebrado, onde o vento assobiava. Lá fora, o céu estava cinza, e as árvores do jardim se balançavam com o vento. “Por que eu vim parar aqui mesmo? Pra ser o irmão inútil da aiza ?” A voz daquele trono negro veio à mente, mas agora parecia uma piada. “Campeão? Só se for de passar vergonha…”

    Um espirro me dobrou ao meio, o corpo todo tremendo. A camisa grudava na pele, e o ar gelado da mansão não ajudava. “Preciso me trocar antes que vire um cubo de gelo.”

    Virei a esquina e quase trombei com Aiza, sentada no chão encostada na parede, balançando as perninhas.

    — Finalmente saiu! — ela disse, pulando de pé com um salto que quase a fez cair. — Vamos brincar!

    Revirei os olhos.

    — Tá maluca, criatura? Tô molhado até os ossos!

    Ela ignorou, puxando minha manga com força surpreendente.

    — Vem! Pega-pega! — gritou, dando um tapa na minha perna antes de sair correndo.

    Fiquei parado, olhando praquele vulto desaparecer. Seu riso ecoava, misturado ao som do vento nas janelas. “Por que eu sempre cedo?”

    — Se eu pegar você, vai se arrepender! — gritei, começando a correr.

    Minhas botas batiam no mármore, cada passo um tum que ecoava nas paredes. Aiza virou a esquina à frente, e quando a alcancei, ela já subia as escadas em caracol, as perninhas rápidas como um raio.

    “Essa pestinha vai me matar de exaustão…” pensei, segurando o corrimão escorregadio.

    Lá em cima, ela sumiu por uma porta entreaberta — o terraço. Quando empurrei a madeira pesada, o vento me acertou em cheio, arrancando um gemido. Aiza estava na beirada, de braços abertos, rindo da tempestade que se formava no horizonte.

    — Olha, Lucas! Vai chover! — apontou para as nuvens negras, enquanto o primeiro trovão rugia.

    Fiquei paralisado. A imagem dela ali, frágil e sorridente, me fez engolir seco. “Ela é insuportável… mas se algo acontecer…”

    — Desce daí, idiota! — gritei, avançando.

    Ela deu mais um passo para trás, os pés no limite do parapeito.

    — Me pega! — provocou, os olhos brilhando com a chuva que começava a cair.

    O primeiro pingente me acertou a testa. “Merda. Merda. Merda.”

    A chuva começou a cair mais forte, encharcando o terraço em segundos. Aiza riu, girando no meio da tempestade, enquanto eu tentava me aproximar sem escorregar.

    — Aiza, isso não é brincadeira! — gritei, estendendo a mão.

    Ela olhou para mim, os olhos cheios de desafio, e deu mais um passo para trás.

    — Confia em mim, Lucas! — ela gritou, e então, sem aviso, pulou.

    Meu coração parou. Corri para a beirada, o vento e a chuva batendo no meu rosto, e olhei para baixo. Aiza estava lá, flutuando no ar, cercada por uma aura que brilhava com a luz dos relâmpagos.

    — Viu? Eu consigo voar! — ela riu, girando no ar como se fosse uma folha ao vento.

    Eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Aiza, com seus seis anos, dominando a magia de uma forma que eu nem conseguia entender.

    — Desce agora! — gritei, tentando manter a voz firme.

    Ela olhou para mim, o sorriso ainda estampado no rosto, e então começou a descer lentamente, pousando suavemente no chão ao meu lado.

    — Você viu, Lucas? Eu consigo! — ela disse, pulando de empolgação.

    Eu só conseguia olhar para ela, a mistura de alívio e admiração tomando conta de mim.

    — Sim, você consegue — murmurei, colocando a mão em sua cabeça.

    Aiza sorriu, e então, sem aviso, me abraçou com força.

    — Vamos brincar mais! — ela disse, puxando minha mão.

    Eu ri, finalmente cedendo.

    — Tudo bem, mas só um pouco.

    E assim, corremos pelo terraço, a chuva caindo ao nosso redor, enquanto Aiza ria e brincava, mostrando mais uma vez que, apesar de tudo, ela era incrível.

    E eu, mesmo molhado e cansado, não poderia estar mais orgulhoso dela.

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