Capítulo 126 — Através da janela, sem esperanças...
Ao abrir seus olhos para mais um dia quebrado, Night despertou ao lado de seu amado. Por um momento, talvez quisesse algo, mas ela afastou a perversão das vozes em sua mente.
Já haviam se passado dois dias, e a preocupação de seu príncipe só aumentava. Aycity não podia mais ser ignorada.
Usando-a mais como uma desculpa para explorar a cidade, Night se levantou da cama sem fazer barulho, tentando não despertar seu amado. Caminhou até o banheiro, onde não existia nada além da luz da lâmpada e a sua mente. Após um banho, trocou-se enquanto o vapor quente ainda acariciava sua pele, mantendo seu corpo aquecido.
Antes de sair do quarto, voltou-se para ele. Adormecido depois de tantas coisas. Por um instante, ela permitiu-se observar.
No entanto, aproximou-se e, através de um toque suave seguido de um leve franzir de seus lábios, Night lhe deu um selinho de despedida, momentâneo, assim como o ato cometido.
Agora fora da residência, a demônio caminhou com passos tênues pela trilha de pedras. Uma névoa cobria seu caminho, mas era normal, afinal, era de manhã.
A cada passo, sua sombra se distorcia, um ser infernal vindo do próprio abismo: Absurdness. Sem dizer uma palavra, ajoelhou-se diante de sua mestra, curvando-se em reverência.
Entretanto, Night não interrompeu sua caminhada. Seu olhar seguia o fluxo até a cidade.
— Vá, e se encontrar uma garota de olhos verdes que aparecem em minhas memórias, siga-a. — De maneira inerente, ela levou as mãos até as costas.
Num piscar de olhos, o ser sumiu. Night então seguiu e, na cidade, se viu.
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Tão destoantes seus olhos, criança morta em um tempo tão distante. Kevyn veio a se levantar da cama, seu cabelo tão grande caiu sobre um de seus olhos, o laranja. “Escolher e amar com meu corpo e mente. Se ela tirou sua máscara, por quê ainda sinto uma severa estranheza em suas mentiras?”, guiando sua mão até seu pescoço, ele se levantou e tocou seus pés sobre o carpete que sua amada comprou. Aquilo o fez lembrar que seu sangue mais uma vez foi levado.
“Mentir seria da sua natureza? Mas por quê? Sonho de viver contra querer uma vida normal, mas eu não sou, como ele falou.” Indo até o banheiro, ele olhou para seu reflexo mais uma vez.
— Cortar o cabelo? Se eu fizer isso, vão me reconhecer. Meu cabelo branco reflete isso, meus olhos refletem aquilo.
Lavando seu rosto com a água fria da pia, os traços do sono impregnado escorriam e pingavam na superfície.
Quando ergueu o olhar para o espelho, uma face cansada encarou-o de volta. Mechas de cabelo úmido vieram a cair sobre seus olhos, tapando sua visão por completo. Seu corpo ainda estava pesado pelo dia anterior e reclamava com uma leve lentidão.
Mesmo assim, ele tateou até encontrar a toalha e esfregou seu rosto, secando-se com movimentos lentos. Podendo enxergar de novo, vestiu-se com simplicidade e saiu do quarto, descendo os degraus de madeira.
Lá embaixo, a cena que encontrou trouxe um sutil e raro sorriso em seu rosto: Night, concentrada, estava na cozinha, preparando algo com uma precisão cirúrgica, dedicando-se a ele.
O aroma suave começou a preencher o ambiente, e, por um instante, o tempo pareceu desacelerar. O silêncio, os pequenos sons da rotina quebrando a quietude… algo estava diferente.
“Será que ela ouviu o que eu pensei?”, com certo medo de se aproximar, Kevyn caminhou até ela e envolveu-a com seus braços, agarrando seu corpo com leveza.
Com um susto, ela reagiu. Estava tudo bem? E se aquilo fosse mais uma mentira? A ponta das orelhas dela sofria de um leve rubor como resposta, mas não desistiu de continuar cozinhando enquanto falava com certa timidez:
— Você gosta de quando eu faço comida?
Sentindo-a inclinar seu corpo para encaixar com o seu, o garoto acariciou sua barriga e a respondeu: — Eu amo a sua comida, assim como você. Mas posso te fazer uma pergunta?
— Faça.
— Você… precisa de sangue para se alimentar?
A pergunta escapou com uma inocência desconcertante, tola demais diante de toda a intimidade. Como ele ainda não havia percebido? A resposta estava em tudo.
Night parou por um instante. O vapor das panelas parou de subir quando ela as tampou e… num único movimento, rompeu o abraço dele e, com uma força surpreendente, o lançou contra a parede.
Seus olhos, de um roxo profundo, vívidos como ametistas à luz do luar, cintilavam com desejo. Luxúria que transbordava em um brilho sutil. Ela o pôs contra a parede, prendendo seus braços firmemente pela força que não combinava com sua silhueta. E mesmo naquele domínio e poder que ela exercia sobre ele, uma pequena falha em sua máscara surgiu.
Suas bochechas tingiram-se em um vermelho tímido, denunciando uma vulnerabilidade, como se o próprio desejo a fizesse vacilar por um segundo.
— Acho que eu entendi… — O príncipe se lembrou do quão especial era a mordida no pescoço e, um pouco nervoso, desviou o olhar.
— Não venha com essa, agora você vai ver depois de me provocar!
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Sem a camisa, com seu pescoço nu, Kevyn exibia algumas marcas, pequenas mordidas feitas pela covardia de Night.
Ele passou os dedos pelas marcas com um suspiro e, enquanto levava a colher à boca para experimentar a comida, fechou os olhos brevemente. O sabor estava ótimo, mas não bastava para esconder a vermelhidão em suas bochechas.
“Não gosto quando você faz isso!”, disse, franzindo a testa com um tom entre irritado e embaraçado. “Para de usar meu corpo como se fosse seu brinquedo de satisfação!”.
Night soltou uma sutil risada baixa, provocante, como se divertisse com a raiva dele. Mas, naquele momento, algo mudou. Seu corpo parou por uma fração de segundo, os olhos voltando para um ponto invisível. O cérebro da jovem apitou.
Era Absurdness, que havia localizado a garota. Oculta entre a multidão, camuflando-se com habilidade e se movendo como uma sombra entre os humanos.
Ninguém a percebeu, mas Night viu através dos olhos dela, observando sua caminhada entre os mortais.
De um enorme sobretudo, como uma investigadora demoníaca, a qual os chifres se encaixavam perfeitamente ao chapéu que possuía dois buracos, ela disse para sua mestra através de uma língua que só os demônios entendiam: “¡ɐɥuǝʌ ‘opıdɐ̗ᴚ”.
Devorando seu prato em menos de um minuto, Night se levantou e então disse, um pouco ofegante:
— Preciso fazer uma coisa! Tenho que comprar umas coisas!
Ela então correu e saiu de casa antes mesmo de Kevyn poder perguntar quaisquer coisas. Assim, após vê-la indo, ele apenas continuou almoçando.
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Quando a demônio finalmente encontrou sua subordinada, ela já havia seguido Aycity até sua casa. Ela estava lá dentro. Exausta, Night se deparou com Absurdness, que a observou em silêncio.
— Fuh~… obrigado, agora deixe comigo.
No mesmo instante, o ser demoníaco desapareceu, sumindo em meio às sombras.
Diante da estrutura de dois andares, a garota suspirou, os olhos fixos nela. Era ali… um canto quase isolado na extremidade da cidade, onde os últimos traços urbanos encontravam a vastidão da planície sem incomodar a natureza.
Ela se virou e caminhou lentamente até uma árvore próxima. Entre os galhos, um esquilo se esgueirou e a observou imóvel, após finalmente alcançar sua casa. “Sinto muito, mas vou precisar de você.” Em um movimento tão rápido, a criatura foi dilacerada. Em segundos, os restos se organizaram em mais um dos soldados dela, reanimado perante a sua vontade.
— Vá e investigue a casa.
Ordem dada e obedecida sem hesitar. O pequeno roedor correu, suas garras minúsculas se prenderam à madeira enquanto escalava pelas matérias da casa. Ele continuou subindo em busca de alguma fresta ou janela por onde pudesse espiar.
Assim, não demorou até que conseguisse achar uma abertura no andar superior. Entre as cortinas mal fechadas, o animal teve o vislumbre do interior de um quarto. Night, observando através dos olhos da criatura, viu Aycity deitada sobre sua cama, sozinha e imóvel.
“Ela parece bem… era tudo bobeira dele afinal”, suspirou aliviada. “Mas ainda há aquele homem, não que ele importe muito.”
Através de outro suspiro, Night desviou o olhar e se sentou em um banco próximo, permitindo-se ter um leve descanso.
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Após longos minutos de espera, a garota finalmente se cansou. Ela se levantou pronta para partir. Mas, naquele exato instante, algo quebrou a calmaria e congelou seu corpo para a atenção para…
O som seco de uma porta se abrindo e rompendo o ar, arrastando consigo uma sensação suja, profana. Havia algo errado. Profundamente errado. O estalar do piso, a lentidão do gesto… anunciaram algo, o fim distorcido. Pecaminoso.
O homem que surgiu na soleira era o pai de Aycity.
Através dos olhos do roedor, Night o observou entrar no quarto. Seus passos não tinham pressa, mas cada um carregava um peso.
Assim como havia acontecido com Kevyn, ela não viu humanidade naqueles olhos, apenas escuridão. Um vazio sem fundo em vez de um brilho dourado. Uma alma condenada.
Um mal-estar crescente tomou conta da demônio. Seus punhos se fecharam. Ela se ergueu do banco como se algo materno dentro dela quisesse ir. Seus olhos se fixaram na cena.
O homem se aproximou da cama como um demônio oculto sob a pele de um pai.
Mesmo abafado pela distância e pela janela, Night conseguiu ouvir — não com clareza — o murmúrio do homem, uma voz que carregava algo doentio:
— Usando essas roupas de novo? — a voz dele soou como veneno, carregada de algo mais. — São daquele garoto também? É isso? Será que vou ter que repetir o mesmo de ontem?
Aycity ergueu seu rosto, a voz quase inaudível:
— De novo…?
O homem parou por um momento. A atmosfera ficou espessa como fumaça, assim como ele fedia a cigarro. No entanto, não respondeu, apenas encarou-a com raiva enquanto perguntava:
— Está me respondendo?
Sem dizer nada, Aycity desviou os olhos, encolhendo-se como se quisesse desaparecer. Night, ainda observando através do roedor, sentiu o peso daquela imagem cravar-se em sua mente.
Os olhos da garota… vazios. Sem brilho, verde opaco, sem esperança. Idênticos aos de Kevyn, quebrados por dentro.
Então, uma reação.
Num momento de fúria, o pai a agarrou pela gola da camisa, puxando-a com violência. O som do tecido rasgando foi seguido de palavras cuspidas como tesouras cravadas na pele e puxadas por um carro:
— Não me importa se você gosta ou não delas! Não é uma escolha sua! Você não tem direito de escolher!
A palma dele estalou contra o rosto dela. A cabeça de Aycity tombou para o lado, batendo contra a parede com força, mas… sem reação. O sangue escorreu de seu nariz, tênue, manchando o lençol. Mas ela não se defendeu. Não gritou. Nem chorou. Como se já tivesse aceitado aquilo há muito tempo.
Night sentiu algo dentro de si se quebrar, como se suas ações fossem as mesmas. Uma culpa desnecessária caiu sobre ela.
Enquanto as roupas da garota eram arrancadas à força, marcando sua pele como cortes do tecido se quebrando, peça por peça, o silêncio era tão cruel quanto o ato. Não havia resistência. Apenas resignação. O tipo de dor que se prende a calar.
O homem retirou o chapéu, depois o sobretudo, jogando-os sobre o chão com indiferença. Cada gesto parecia já ter acontecido antes.
— Nunca mais fale com aquele garoto. Você ouviu?! — gritou, agarrando-a pelo pescoço com uma única mão, como se ela fosse nada além de um objeto frágil sob seu controle.
— Certo… — sussurrou ela, quase sem voz.
Night sabia o que vinha a seguir. Sabia como aquilo terminaria. E, mesmo assim, não conseguiu se mover. Não conseguiu correr para impedi-lo. Sentou-se no banco, esmagada por um sentimento que a corroía.
O som metálico de um cinto sendo desabotoado foi a sentença final. Um gesto que não precisava de explicações.
E ela viu.
Night presenciou e sentiu a pior coisa de toda sua vida.

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