Capítulo 18 — Promessa Ardente
O tempo estava diferente.
Lá fora, as águas do porto pareciam se remexer sob um vento inquieto, como se o próprio mar sentisse que algo estava prestes a mudar. Mas ali dentro, na cabine da capitã, o mundo era outro — aquecido pelo cheiro de papel antigo, resina, e um toque de canela vinda de algum incenso esquecido.
Nix empurrou a porta com o ombro e gesticulou para que Echo entrasse. O ambiente era uma mistura viva de mapas dobrados, estandartes velhos, bússolas quebradas e memórias espalhadas. No centro, sobre a mesa redonda, o mapa de Spades repousava como um coração pulsante, coberto por anotações feitas a pena.
— Desculpa a bagunça. — disse ela, puxando uma cadeira para o amigo. — Ainda tô me acostumando a ser… bem, responsável por alguma coisa.
Echo entrou com passos contidos, os olhos verdes explorando cada detalhe com reverência silenciosa. Nino pulou para o encosto de uma poltrona e se enroscou ali, atento.
— É mais acolhedor do que eu imaginava. — respondeu ele, puxando outra cadeira e se sentando com cuidado. — Tem cheiro de lembrança boa.
Nix apoiou os cotovelos na mesa, o rosto mais sério agora.
— Então? O que você queria me contar?
Echo demorou alguns segundos. Passou a mão pela trancinha de sempre, o gesto automático quando pensava demais. Depois, seus olhos encontraram os dela com um brilho que era parte esperança, parte medo.
— Os pequenos grupos nômades… aqueles que ainda vivem entre fronteiras, viajando pelas planícies de vidro e os desertos do sul… eles começaram a se mover.
— Se mover pra onde?
— Para o Ninho dos Dragões. — respondeu, num sussurro carregado. — Vamos destruir o cálice.
O silêncio tomou a cabine como uma sombra espessa.
Nix piscou uma vez. Depois outra.
— O cálice? Aquele que o Templo quer usar pra trazer a deusa?
Echo assentiu.
— Se eles o usarem, não sobra fé pra ninguém. Nem pra nós, nem pra eles. Só dominação, só medo. Então os nossos anciãos tomaram uma decisão. Vamos até o vulcão ancestral, onde dizem que o primeiro dragão dorme desde o início do mundo. Jogaremos o cálice lá dentro. Fim da ameaça.
— E o começo de outra. — murmurou Nix, cruzando os braços. — Eles vão atrás de vocês com tudo. O Templo da Lua não vai deixar isso passar.
— Eu sei. Por isso… — a voz dele baixou, mais íntima, mais difícil. — Por isso eu vim até aqui. A gente precisa de escolta. Precisamos de proteção durante a travessia. Um mês. É tudo o que peço. Que o Semente do Caos vele conosco até o vulcão. Depois… nos viramos.
O pedido pairou entre eles como uma tempestade contida. Nix ficou em silêncio por um instante, escutando as batidas do navio, o som distante da tripulação, o ronco baixo de Jia. Então se levantou, contornou a mesa e parou diante dele.
— Um mês?
Echo assentiu.
— Um mês.
Ela estendeu a mão.
— Então o Semente do Caos navega com vocês. O que vier, a gente enfrenta junto.
A palma dele encontrou a dela, os dedos entrelaçando-se num pacto antigo, como os dos tempos de infância em cavernas ecoantes. O dragãozinho assobiou baixo, como se aprovasse.
— Você tem certeza? — perguntou ele, com a voz embargada por algo entre alívio e receio.
— Não. — disse ela, sorrindo de lado. — Mas quando foi que isso me impediu antes?
O convés do Semente do Caos tremia levemente sob o peso dos pés que corriam, arrastavam caixas ou apenas se reuniam para ouvir. Quando Nix subiu à amurada com os braços cruzados e a expressão decidida, todos os olhares se voltaram para ela.
— Temos uma missão. — começou, sem rodeios. — Os Jïa vão atravessar Spades rumo ao Ninho dos Dragões. Precisam de proteção. E nós… nós vamos escoltá-los.
Houve um momento de silêncio. Então Madoc assobiou, impressionado.
— Escoltar ciganos que desafiam o Templo da Lua? Parece o tipo de loucura que me faz continuar aqui.
Panacéia sorriu de canto, já calculando quantas peças de reposição o navio precisaria para suportar o calor de um vulcão.
— A gente tem quanto tempo? — perguntou Vênus, com o tom sereno de quem só queria saber quantos inimigos precisaria morder.
— Um mês. — respondeu Nix. — Partimos amanhã ao nascer do sol. Mas hoje… vamos até o assentamento Jïa aqui no Porto dos Sussurros. Echo quer nos apresentar a alguns amigos.
Lucius arqueou uma sobrancelha, olhando de lado para Echo, que apenas lhe devolveu um sorriso despreocupado e um leve aceno de cabeça.
— Ah… o namorado da capitã quer nos apresentar a sogra. Entendi.
Nix ignorou, mas as bochechas ganharam um leve rubor.
O assentamento Jïa parecia brotar das pedras como uma flor rara.
Tecidos coloridos tremulavam ao vento como bandeiras de um reino secreto. Entre barracas redondas e carroças transformadas em casas, o cheiro de especiarias, óleo de lamparina e frutas assadas misturava-se com a música alegre de violinos improvisados. Crianças corriam descalças, e dragõezinhos de todos os tamanhos espiavam dos telhados de lona, curiosos.
Assim que Nix e sua tripulação cruzaram o arco de entrada, os Jïa começaram a sussurrar. Em poucos segundos, como fogo em palha seca, o nome dela se espalhou:
— Nixoria voltou.
Uma anciã, os olhos nublados por tempo e sabedoria, foi a primeira a se aproximar. Tocou o rosto da capitã com mãos enrugadas e emocionadas, como se tocasse uma filha que retornava do mar.
— Você cresceu, pequena tempestade. Voltou com cheiro de mundo e olhos de capitã.
Logo, outros vieram. Abraços, risos, palavras em meio a lágrimas. Alguém tocou um tambor e, de repente, o assentamento inteiro se encheu de cor e calor. Panacéia ficou encantada com os tecidos; Madoc foi levado para um concurso de bebida; Vênus encontrou um cachorro com um olho só e decidiu adotá-lo por dez minutos.
E então, entre uma dança e outra, Nix ouviu a voz que a fez congelar no lugar.
— Niiix! — gritou uma garota de tranças grossas e sorriso impossível de ignorar.
Elena veio correndo, os braços abertos, os olhos verdes faiscando como os do irmão. Pulou no pescoço da capitã com tanta força que Nix deu dois passos para trás, rindo, antes de conseguir recuperar o equilíbrio.
— Caramba, você tá maior! — exclamou a garota, afastando-se só o suficiente para encarar Nix como se estivesse vendo um sonho antigo diante de si. — Mais alta… com cara de gente perigosa agora.
— Você também cresceu. — respondeu Nix, sorrindo. — Tá uma moça… com jeito de quem manda em todo mundo.
Elena ergueu o queixo com orgulho teatral.
— Alguém tem que manter o Echo na linha. — piscou. — Vou fazer dezesseis mês que vem, acredita?
Nix assentiu. Havia algo familiar e reconfortante em estar com ela. Como se por um instante, os anos entre elas desaparecessem. Como se o mundo ainda fosse simples.
— E você… vai fazer dezessete, né? — continuou Elena, inclinando-se mais perto. — Já devia estar pensando em se casar.
— Casar?! — Nix quase engasgou com a própria saliva. Tossiu, espantada, e arregalou os olhos.
— Ué. — respondeu a outra com toda a naturalidade do mundo, dando de ombros. — Tá em idade. E aí? Algum daqueles bonitões do seu navio é seu namorado?
Nix deixou escapar uma gargalhada surpresa, levando a mão ao rosto.
— O quê? Claro que não!
— Sério? — Elena ergueu uma sobrancelha desconfiada, virando-se sutilmente para observar a tripulação espalhada pela festa. — Hm… e aquele loiro meio sinistro que não tira os olhos de ti? Ou o moreno que parece um príncipe disfarçado?
— Nenhum deles. — disse Nix, já corando visivelmente. — São só meus amigos.
— Ah… — murmurou Elena com um sorrisinho matreiro. — Então o Echo ainda tem chance.
— Elena! — Nix cobriu o rosto com as mãos, a voz embargada entre o escândalo e o riso.
— Que foi? — disse a garota, fingindo inocência. — Vocês dois combinam. Viviam grudados na adolescência. Todo mundo aqui sabe que isso é amor!
Nix espiou por entre os dedos. Do outro lado da praça, Echo falava com Lucius, gesticulando com calma, a expressão relaxada. A luz das tochas desenhava sombras douradas nos traços dele, e por um segundo, ela se pegou olhando por mais tempo do que pretendia.
— A gente era só amigo. — disse, baixinho, como se tentasse convencer a si mesma.
Elena se jogou ao lado dela em uma almofada forrada de lantejoulas coloridas. Ficaram ali, as duas observando a festa à sua volta.
Os Jïa dançavam em círculos largos, as roupas esvoaçantes desenhando mandalas no ar. Havia crianças brincando com cinzas brilhantes, riscando o chão de terra com dedos manchados de tinta. Um homem tocava um violino de duas cordas, e outro acompanhava no tambor, criando um ritmo que fazia os pés se moverem mesmo sem permissão.
Um cheiro doce e amadeirado vinha das fogueiras. Chá de erva-mel, talvez. Espetinhos de carne giravam sobre brasas, e frutas caramelizadas tilintavam em bandejas de cobre.
— Parece que nada mudou aqui. — murmurou Nix, os olhos marejando sem que ela percebesse.
— Algumas coisas nunca mudam. — disse Elena, com um tom mais suave, quase adulto. — Tipo o quanto a gente sente sua falta quando você some.
Nix sorriu, sem resposta. O coração doía um pouco, como uma lembrança boa demais para caber no peito.
A capitã observava tudo sentada sobre uma almofada, um copo de chá adocicado entre as mãos, enquanto o calor do povo, do riso e das chamas parecia dissolver, só por agora, o peso da guerra que se avizinhava.
E quando Echo se sentou ao seu lado, sem dizer nada, apenas dividindo o silêncio com ela, Nix pensou que talvez aquele fosse o último momento de paz antes da tormenta.
Mas que paz bonita era.
O sol ainda bocejava no horizonte quando começaram a embarcar. A névoa do Porto dos Sussurros subia preguiçosa, tingida de dourado, envolvendo o cais como um véu de despedida. As águas cintilavam calmas, refletindo os cascos dos barcos dos Jïa, que balançavam ansiosos pela partida.
Nix ajudava os últimos a subir a bordo. Puxava cordas, amarrava nós, ria com as crianças e se despedia dos mais velhos com um beijo na mão. Lucius, ao lado dela, trabalhava em silêncio, mas seus olhos registravam tudo — o cuidado, os gestos, o jeito como Nix parecia pertencer àquele lugar.
— Não fazia ideia de que você já morou com eles. — disse, com um leve sorriso, amarrando um cesto de provisões à amurada.
— Não era exatamente o plano. — respondeu Nix, limpando a testa suada com a manga da blusa. — Depois que o rei fez aquela proposta absurda… pra que eu me tornasse princesa herdeira… — ela fez uma careta, ainda incrédula com a lembrança — Morfeus e Andréa brigaram feio. Gritos, portas batendo, aquela coisa toda.
Ela puxou uma corda com mais força do que precisava, o nó rangeu.
— Então a gente fugiu. Eu, Morfeus e Andréa. Pegamos qualquer barco que encontrássemos e fomos parar em Hearts. Uma tempestade de areia nos pegou no meio da estrada, daquelas que cega até a alma. Achei que a gente ia morrer ali mesmo, engolidos pelo deserto.
Nix parou por um instante, os olhos perdidos no movimento das velas inflando.
— E aí… eles apareceram. A família de Echo. Nos encontraram quase desmaiados, cobertos de areia. Nos deram abrigo, água, comida… e um lar por um tempo.
Antes que Lucius pudesse responder, uma voz calorosa e firme interrompeu:
— E que bela confusão essa menina trouxe junto.
A mãe de Echo apareceu com um sorriso orgulhoso nos lábios rachados, os cabelos presos num lenço bordado de girassóis. Subiu no convés com a graça de quem conhece cada tábua do barco e segurou o rosto de Nix entre as mãos.
— Uma verdadeira força da natureza, era o que você era. — disse, apertando as bochechas da capitã como se ela ainda tivesse doze anos. — Impagável, curiosa, e mais teimosa do que uma mula cega.
Nix riu, tentando escapar do carinho apertado, mas sem sucesso.
— Eu não era tão teimosa assim…
— Ah, era sim. — retrucou a mulher, rindo. — Mas era impossível não amar você. Chegou feito furacão e, de alguma forma, fez a casa parecer viva de novo. O Echo… — ela olhou para o filho, que ajudava Elena a erguer uma vela maior — …ele tava tão calado depois que o pai morreu. Aquele menino que adorava cantar parou de falar por dias.
A voz dela suavizou.
— Mas aí veio você. Com suas perguntas demais, suas ideias malucas, suas botas sujas no tapete da sala… e trouxe o riso de volta pra eles. Pro Echo, pra Elena… pra mim também.
Nix baixou o olhar, sentindo o peito aquecer. As palavras da mulher foram como um cobertor morno ao redor das cicatrizes esquecidas.
Lucius observava em silêncio. O jeito que Nix apertava os dedos ao ouvir aquilo, o brilho úmido que ela tentava disfarçar nos olhos. Era raro vê-la assim — vulnerável, mas em paz.
— Obrigada. — murmurou a capitã, abraçando a mulher com força. — Por tudo.
O navio dos Jïa deu o primeiro impulso. Cordas foram soltas, velas subiram como asas, e as crianças acenavam do convés, seus rostos pintados com carvão e esperança. O cais se esvaziava aos poucos, e o mundo recomeçava a girar — mais uma despedida para a coleção.
Nix ficou ali, de pé, observando os barcos sumirem pela névoa dourada. Lucius se aproximou, mas não disse nada. Não precisava. Às vezes, o silêncio era o único gesto que respeitava a saudade.
— Eles são minha segunda casa. — disse ela, enfim.
Lucius assentiu.
—E você foi a luz na tempestade deles.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.