Em toda manhã, a primeira coisa que Fang, o lobo, fazia era esperar em frente ao bueiro pelo grupo de batedores, que não havia tido notícias desde que partiram em missão. Foi na manhã do 4° dia que Fang foi surpreendido ao ver a forma esguia dos dois irmãos aparecer no horizonte neblinoso. 

    De início, o lobo pensou que os outros 3 irmãos estariam logo atrás, mas esse pensamento se provou equivocado bem rápido. Fang se dirigiu até a dupla, e ao perceber a situação em que os híbridos se encontravam, ele soube que missão havia sido um fracasso.

    Ambos os irmãos estavam esqueléticos, surrados e com olheiras gigantescas que se destacavam em seus rostos. O ombro ferido do irmão do meio ainda estava enfaixado com um pedaço de tecido imundo, e fedia a carne podre. O mais velho mal podia permanecer em pé, sua expressão era estática e fria, como se fosse um cadáver ambulante. 

    Em meio àquela cena, Fang sentiu um frio percorrer pela sua espinha. Os pelos em sua larga costa se arrepiaram, dando uma leve ilusão de que ele havia aumentado de tamanho.

    “Eu os subestimei” pensou Fang em relação ao inimigo, ficando cara a cara com a dupla. Sem dizer nenhuma palavra, o lobo, que era enorme em relação aos companheiros, pegou ambos os híbridos nos braços, como se fossem sacos de cimento, e os levou até o interior do ninho.

    — Doutor, doutor! — esbravejava Fang, enquanto passava pelos corredores apertados e mal iluminados da base. — Tenho dois companheiros em péssimo estado.

    Após mais alguns passos, o enorme lobo chegou até uma porta branca semiaberta. Seu estado impecável fazia ela se destacar em meio aquele lugar sombrio e cinza. A porta foi aberta pelo lado de dentro, e uma figura estranha, mas acolhedora, recebeu Fang.

    — Ponha os dois naquelas macas — ordenou um ser humanoide bastante semelhante a um humano, se não fosse pelos diversos tentáculos espalhados pelo corpo, em compensação pela ausência de ambos os braços. — Venha, vou precisar de sua ajuda.

    Fang, mesmo tendo um cargo superior, obedeceu às ordens do médico sem hesitar. Após aplicar o soro em ambos os pacientes, o doutor direcionou sua atenção ao ombro ferido do híbrido, que gemeu de dor quando o doutor removeu a faixa usando seus tentáculos super articulados. 

    Assim que a faixa foi removida por completo, o cheiro de carne podre aumentou, tomando conta da pequena sala de operação. A situação era pior do que Fang imaginara: a ferida profunda estava infestada de larvas que se alimentavam da carne podre e sem vida do pobre hibrido.

    — Ah… — suspirou o doutor. — Vamos começar.

    O lobo humanoide assistiu à operação em silêncio, enquanto auxiliava o doutor com qualquer coisa que ele pedisse. O doutor matinha seu rosto sempre coberto por um máscara e óculos escuros, além de um pano branco que cobria sua cabeça protuberante. No início do procedimento, o paciente permaneceu são, gemendo de dor enquanto mordia um pedaço de madeira oferecido pelo doutor, até desmaiar após alguns minutos.

    Após 1 hora, o procedimento estava finalmente finalizado e ambos pacientes estavam em uma situação estável. Ambos o Doutor e Fang estavam escorados na parede branca da sala, de frente para os pacientes adormecidos. 

    — Em que enrascada você meteu eles, Fang? — perguntou o Doutor, sem fazer contato visual.

    — … — Fang ficou em silêncio por um curto período de tempo, pensando em uma resposta que não revelasse a situação catastrófica que eles se encontravam. — Mandei eles em uma missão que aparentava ser simples, mas eu subestimei os desafios que iriam enfrentar.

    — Hump! — O doutro soltou um curto riso, demonstrando sua decepção com a resposta de Fang. — Estamos com problemas, não estamos?

    — Sim, estamos, mas eu vou lidar com isso — respondeu Fang com firmeza, demonstrando a enorme confiança que tinha em si mesmo.

    — Sem querer ofender, mas você sozinho é o suficiente para lidar com esses “problemas”? — perguntou o Doutor com um tom desconfiado.

    Fang virou-se para o Doutor, que mantinha seu olhar fixo no piso branco reluzente. O lobo sentia uma áurea pesada vinda daquele hibrido, sendo o motivo pelo qual ele o respeitava tanto. Se fosse apenas qualquer outro peão que tivesse feito essa pergunta, Fang teria o castigado sem pudor. 

    — Eu não irei sozinho, por mais que eu ache que minhas habilidades já sejam o suficiente para lidar com o problema. Me certificarei de levar uma guarda junto a mim — respondeu Fang, indo em direção à porta da sala, que levava aos corredores escuros. — Cuide bem deles, doutor.

    Alguns poucos dias tinham se passado desde o confronto com o grupo de batedores que atrasou ainda mais a viagem.  Todos do grupo estavam quase que 100% recuperados, mesmo com o andar manco de Aline devido ao ferimento na perna, e a surdez parcial que Maycon tinha sofrido devido às granadas de atordoamento. 

    A neblina havia voltado com toda a força, o que fazia a navegação do rio ser desafiadora mesmo para Poti. O sistema de refrigeração do barco havia sido afetado com o ataque dos híbridos e uma parte considerável do estoque de comida estava apodrecendo com a umidade e calor da floresta, sem contar com as diversas moscas insuportáveis.

    — Eu não aguento mais — disse Vidal, que estava com a camisa branca enrolada em volta do rosto. — Esse lugar é um inferno na terra.

    Poti não deu ouvidos a reclamação de Vidal, seu foco estava quase que 100% direcionado ao horizonte neblinoso do rio e aos obstáculo que apareciam ocasionalmente no meio do percurso, o obrigando a efetuar manobras para desviar desses obstáculos. Além disso, Poti já estava acostumado com o clima voraz da floresta e dentro do paraíso perdido não era diferente. 

    — Eu tenho uma dúvida, mas tenho medo de que seja uma pergunta estupida — disse Aline, enquanto acariciava a harpia, que desde o confronto com o grupo de híbridos tinha se juntado a tripulação, além de ter recebido ajuda com seus ferimentos. — Esse lugar aqui já foi habitado por humanos, não foi?

    — Sim, há muito tempo atrás — respondeu Poti, sem tirar o olho do horizonte. 

    — Então por que não usamos as estradas para chegar até a cidade fantasma que estamos indo? 

    — Tudo aqui foi destruído, incluindo as estradas, que devem terem sido tomadas pela vegetação. Além disso, o rio é a via mais segura de se chegar até a cidade que você viu nas memórias do escavador.

    — Entendi, faz sentido — disse Aline, satisfeita com a resposta.

    — Você estava aqui quando tudo aquilo aconteceu? — perguntou Vidal, demonstrando um certa curiosidade. 

    — Não, eu fui entrar para os vigilantes muito tempo depois — respondeu Poti, enquanto relembrava das coisas boas e ruins daquela época. 

    Mais algumas horas se passaram até que sinais da cidade começaram a aparecer. Estruturas de concreto cobertas por vegetação tomavam forma em meio a neblina, trazendo uma sensação estranha para a tripulação.

    — Chegamos, até que enfim! — disse Poti, aliviado, mas, ao mesmo tempo receoso com relação aos perigos que aguardavam o grupo. — Façam silencio, não queremos chamar a atenção de ninguém.

    — Devo chamar o Maycon? — indagou Aline com relação a seu irmão que estava dormindo no interior do barco.

    — Não, deixe-o descansar mais um pouco — respondeu Poti.

    Devido a péssima visibilidade, era quase impossível determinar em qual parte da cidade o grupo estava, mas Aline tinha um certa noção devido às memórias do escavador. 

    — Essa é a parte mais a leste da cidade, tenho quase certeza. Se continuarmos a seguir o rio, devemos chegar no tal bueiro — cochichou Aline ao lado de Poti, que seguiu os conselhos sem questionar.

    A medida que avançavam, o rio ia ficando cada vez mais estreito, até chegar em um ponto onde o casco da embarcação roçava nas bordas do canal. Em volta deles, um enorme muro de concreto se levantava, os impedindo de ver o que havia do outro lado. Mais alguns metros a frente, eles passaram por debaixo de uma ponte que cortava o canal. 

    — Estamos indo bem, por enquanto — disse Vidal, forcando a vista, tentado ver alguma coisa em sua frente, deparando-se com mais uma ponte, mas esta tinha tombado, bloqueando o canal. — Merda…

    — Você e sua linguinha — disse Poti, suspirando. 

    — Eu já estava estranhando que esta rota estava muito fácil… — comentou Aline, limpando o suor da testa e puxando o cabelo para trás das orelhas. 

    — E agora? — perguntou Vidal. — Tem alguma rota alternativa?

    — Lendo as memórias do escavador, descobri que ele possuia uma mesma rota que usava para chegar até o ninho, mas não sei se ela é segura — disse Aline, tentando caçar mais alguma informação no emaranhado de pensamentos que imundavam sua mente. 

    — Não há como seguirmos um caminho alternativo baseado na rota do escavador? — perguntou Poti, que demonstrava um certo desconforto desde que havia entrado na cidade. O clima daquele lugar era pesado. Diversas vidas haviam sido ceifadas ali e isso perturbava o vigilante profundamente.

    — Talvez, mas a cidade é muito grande e com essa neblina não é difícil nós nos perdemos — respondeu Aline, com uma das mãos segurando a ponta do queixo. 

    — Sendo assim, não nos resta escolha — disse Poti, religando o motor do barco. 

    — O que está fazendo? — perguntou Aline, confusa com a ação do vigilante veterano. 

    — Não podemos nos ariscar mais. Vamos voltar até a base e informar ao diretor sobre tudo que vimos aqui e talvez, só talvez, a organização ira montar um força-tarefa para lidar com esses híbridos — respondeu Poti, voltando pelo mesmo caminho que haviam entrado. 

    Agilmente, Aline conseguiu desligar o motor da embarcação antes que Poti pude-se a impedir. 

    — Depois de tudo o que passamos, eu não vou recuar agora — disse Aline, em um tom carregado que surpreendeu até mesmo Poti. — Essa é a nossa melhor chance.

    — A melhor chance para quê? — indagou o vigilante, não se deixando intimidar pelo comportamento agressivo de Aline. — Você viu o que aconteceu quando lidamos com um grupo de apenas 5 deles, então imagine lidar com uma legião. Não existem possibilidades de sairmos vivos disso. A nossa melhor chace é recuar e-

    — Recuar?! — berrou Aline, interrompendo Poti. — Dois daquele grupo de híbridos fugiram com vida, eles já devem saber que temos noção da existência do ninho e dessa droga chamada de ultra. Se recuarmos agora, quando voltarmos, eles já terão sumido da face da terra e sabe lá quando teremos outra chance como essa. 

    — E você acha que eu não sei disso?! — A força das palavras do vigilante fizeram a jovem recuar. — Não podemos tratar a nossas próprias vidas como se elas fossem descartáveis. Esse é um risco que não podemos correr. 

    Vidal observava aquela discussão totalmente em silêncio, com receio de dar sua opinião e ser atacado por ambos companheiros. Foi quando ele sentiu uma mão tocar em seu ombro, o assustando. 

    — Relaxa, rapaz, é apenas eu — disse Maycon de forma simpática, com um rosto marcado por olheiras. — Que algazarra é essa? 

    Os dois vigilantes pararam de discutir ao perceberem a presença de Maycon. 

    — Maycon, nós finalmente chegamos na cidade e- 

    — É, eu percebi — diese Maycon interrompendo a irmã. — O que estão discutindo.

    — A rota mais segura até o esconderijo do inimigo está obstruída — disse Poti, com a face fechada e inexpressiva. — Não podemos ariscar sermos pegos pelo inimigo. 

    — É melhor ariscar agora do que perder uma chance de ouro — argumentou Aline, controlando o impulso de gritar. 

    — Ok, ok, já entendi todo o ponto da discussão — disse Maycon, enquanto tirava remelas dos olhos. — Pelo jeito chegamos em um impasse, então eu sugiro uma maneira de resolvermos isso.

    — Qual maneira — perguntaram os outros trés vigilantes ao mesmo tempo. 

    — Vamos apelar para a boa e velha democracia.

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