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    A segunda batida na porta foi acompanhada por um bufar audível.

    — Sei que está aí, — chamou uma voz familiar. Era Dante. Ele surgiu na janela improvisada, um sorriso despretensioso no rosto. — Não queria te assustar antes, por isso bati na porta. Estou atrapalhando?

    Heian ergueu os olhos, um tanto surpreso.

    — Não, só estava… ajustando meu quarto.

    Dante empurrou a porta e entrou, deixando o ambiente pequeno ainda mais preenchido por sua presença. O quarto era simples, discreto, mas de alguma forma carregava a essência de Heian. Tudo ali parecia montado para passar despercebido, sem excessos ou extravagâncias. Até a escrivaninha afastada, vazia, parecia refletir a personalidade contida de seu dono.

    — Fico feliz que tenha feito algo para você, — comentou Dante, observando ao redor. — Esse é o seu quarto agora?

    Heian hesitou antes de responder, surpreso pela rapidez com que Dante havia entendido.

    — Tentei fazer algo do meu jeito, mas… nunca tive um quarto antes. — Seu olhar recaiu sobre um quadro pendurado na parede, um vazio branco que parecia ecoar o espaço em sua mente. — Ainda não sei o que colocar aqui, mas organizei como achei melhor.

    Dante se aproximou da parede e deu um leve soco. O som abafado confirmou a solidez da construção.

    — Você pensou em tudo, hein? Até uma lâmpada. — Ele apontou para o teto, rindo. — Aposto que já notou o problema do disjuntor lá embaixo.

    — Sim, exatamente. — Heian animou-se com o comentário. — Queria falar sobre isso. Podemos conversar? Tenho algumas ideias que podem funcionar. Jix mencionou um moinho, e pensei em construir pelo menos um no topo da Cuba.

    Dante balançou a cabeça, discordando.

    — Lá em cima? O lugar ainda é instável demais. Você precisa começar do lado de fora, com um moinho de, pelo menos, seis ou sete metros. Não quero abusar da sua habilidade de construção, mas… ela é impressionante.

    Heian absorveu o elogio, deixando-o aquecer seu espírito por um breve momento.

    — E imagino que esteja enfrentando problemas com a bateria, — continuou Dante. — Estou considerando trazer o gerador da hidrelétrica. O que acha?

    — Com um gerador, não precisaríamos nos preocupar com falhas. E a bateria poderia ser carregada junto. Claro, se você quiser trazer ela também.

    Dante negou com um gesto firme.

    — Heian, acho que você está se enganando quanto a uma coisa.

    — O quê?

    Dante aproximou-se, colocando a mão sobre o ombro de Heian.

    — Não sou o responsável por construir nada disso. Sou apenas um ajudante, alguém para facilitar o que você precisar.

    Havia cansaço em sua voz, algo que não passava despercebido. Dante se deixou cair em uma cadeira, exalando o ar preso em seus pulmões, como se a confissão tivesse custado mais do que deveria.

    — Tenho feito muito, mas é difícil assimilar tudo ao mesmo tempo.

    Heian sentou-se à sua frente, atento.

    — O que está acontecendo? Ouvi falar da briga, mas não achei que fosse tão sério.

    Dante fez uma careta amarga.

    — Não é Clara. Ela não me estressa. Na maioria das vezes, ela está certa. O abrigo precisa de paz, e entendi isso. Mas, para que haja paz aqui, precisa haver caos em outro lugar.

    Ele fez uma pausa, deixando o peso de suas palavras se assentar no ar entre eles.

    — Quero implementar uma comunicação confiável, algo que nos permita estar em lugares diferentes e ainda assim nos manter conectados. Sem preocupações desnecessárias.

    — Está pensando em voltar a GreamHachi?

    A pergunta pairou como um fantasma no ambiente. A ideia parecia absurda, quase suicida.

    — Espero nunca mais pisar lá. Bom… esperava. — Dante esticou a mão sobre a mesa, os dedos tamborilando suavemente na madeira. — Você sabe o que aconteceu com as pessoas no portão? Parte delas veio para cá, mas a outra… simplesmente desapareceu. Sobrevivendo, sabe-se lá como, no meio do nada. Mas, deixando de lado, eu não consegui ter uma noção muito grande de como fazer isso. E estou pensando em usar as torres de Rádio que tínhamos. É um projeto bem distante, mas que Duna ficou pra me explicar se vai ser possível.

    As ideias de Dante sempre tinham uma solidez difícil de ignorar. Ele possuía um talento peculiar para enxergar possibilidades onde outros apenas viam ruínas e limitações. Não era surpresa que, com o tempo, ele tivesse se tornado uma figura tão respeitada. Parecia sempre em busca de melhorias, mesmo nos lugares mais estéreis de esperança.

    Uma rede de comunicação, por exemplo, era uma ideia que Heian não podia deixar de admirar. A possibilidade de manter contato entre a Cuba e o abrigo, ou mesmo com qualquer ponto da vasta cidade de Kappz, parecia algo essencial. Afinal, Kappz ainda era um monstro adormecido de concreto e aço, com áreas inteiras — como o Oeste e o Sul — que Dante sequer tinha explorado.

    — Entretanto, contudo e todavia… — Dante soltou uma risada leve, os olhos brilhando com uma energia quase irreverente. — Acredito que o seu projeto seja o mais importante. Quero te ajudar, se precisar. Se as baterias e o gerador forem o que falta, eu posso cuidar disso.

    — E o redemoinho?

    Dante deu de ombros, um sorriso enviesado ainda no rosto.

    — Se quiser fazer, faça. Algumas coisas ficaram bagunçadas desde que o abrigo começou a receber mais gente. Mas você não precisa de permissão para fazer algo que vá ajudar os outros. Mesmo que digam que é perda de tempo ou que vai desperdiçar recursos, confie no seu instinto.

    — E o que o seu instinto diz, Dante?

    Por um momento, Dante hesitou. O sorriso deu lugar a algo mais sério, mais humano.

    — Que preciso proteger este lugar, mesmo que eu não pertença a ele. Queria ter essa mesma vontade que você, sabia?

    Heian arqueou as sobrancelhas, surpreso pela honestidade.

    — Você fala de vontade, mas precisou me dar uma surra para que eu entendesse o que estava fazendo. Não vou entrar em detalhes, mas o que você realmente procura não é convicção. Você vê Kappz como um lugar temporário. Para você, isso aqui é apenas uma parada, não um lar.

    Dante assentiu lentamente, como se não tivesse forças para negar.

    — Acho que é isso mesmo.

    — É, eu também sou um visitante, — disse Heian, os olhos fixos no homem à sua frente. — Vim de Rapier. Quer mesmo comparar nossas histórias, quando na verdade você está apenas cansado? Desde que chegou aqui, você não parou. Reconstruiu o abrigo, trouxe comida, eletricidade, limpou o reservatório… Está lutando todos os dias porque acredita, no fundo, que foi criado para isso.

    O silêncio entre os dois se tornou denso, pesado. Era o tipo de silêncio que não exigia palavras, apenas a aceitação do peso do momento.

    — Não posso te dizer que as coisas vão melhorar, — continuou Heian, a voz baixa, mas firme. — Mas sei que posso confiar em você. Continua lutando, mesmo que pareça em vão. Porque, no fundo, tudo o que você está tentando fazer aqui é dar a essas pessoas o que você, na sua verdadeira casa, já teve um dia.

    Dante desviou o olhar, os lábios apertados em uma linha fina. As palavras de Heian haviam atingido algo profundo, algo que ele talvez tentasse evitar desde o dia em que colocou os pés em Kappz. Por um momento, ele parecia menor, menos o líder que todos viam e mais um homem comum, lutando contra um fardo que ninguém deveria carregar sozinho.

    E então, ele respirou fundo, como se estivesse tomando fôlego antes de mergulhar novamente no caos.

    — Obrigado, Heian.

    Era tudo o que ele conseguia dizer, mas, para ambos, era o suficiente.

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