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    Clara sentia o peso do silêncio de Dante, que parecia ter se tornado parte dele desde aquela conversa. Era como se, junto com as palavras que havia confessado, ele tivesse perdido algo essencial de si mesmo. Por quase uma hora, ela ficara ao lado dele naquele dia, tentando oferecer sua presença como uma âncora. Não sabia se tinha ajudado, mas ele não a afastou, e isso já era algo.

    Duas semanas haviam se passado desde o retorno do Centro de Pesquisa, e o comportamento de Dante parecia mais distante do que nunca. Clara o viu pela primeira vez desde então no terceiro andar, sentado em um canto próximo a uma janela improvisada. A luz pálida do dia nublado entrava, iluminando suas feições endurecidas. Ele observava o lado de fora com um olhar vazio, perdido em pensamentos que Clara não conseguia alcançar.

    Ela queria falar com ele, queria dizer que Kappz poderia ser seu novo lar, que ele poderia encontrar uma nova família ali. Mas sabia que as palavras eram insuficientes. Ele estava consumido por algo maior do que ela conseguia compreender.

    Enquanto isso, notícias começaram a se espalhar pelo abrigo. Juno e Marcus contaram a Clara que os Felroz haviam mudado desde a incursão ao Centro de Pesquisa. Dante, ao quebrar uma das seções mais antigas e isoladas do prédio, havia libertado algo — algo que não deveria estar lá. Agora, criaturas estranhas rondavam as ruas da cidade.

    A confirmação veio de Luma, que quase perdeu a vida ao encontrar uma dessas criaturas. Segundo ela, apenas a intervenção rápida de Marcus, que conseguiu camuflá-los na neve, impediu o pior. Quando Clara ouviu o relato, seu coração apertou. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, Dante ouviria a história também.

    E ele ouviu.

    Quando Luma relatou o incidente, Dante não demonstrou reação. Seu rosto permaneceu impassível, como se as palavras não o alcançassem. Mas, em silêncio, ele saiu do prédio, ignorando os olhares preocupados de Clara e dos outros.

    A tempestade de neve ainda castigava a cidade, tornando qualquer saída perigosa. Mas Dante caminhou por horas, desaparecendo na vastidão branca. Clara não conseguia pensar em outra coisa enquanto esperava por seu retorno. O medo de que ele não voltasse era esmagador.

    Quando finalmente o viu cruzando as portas do abrigo, estava exausto, coberto de neve e sangue seco. Na mão direita, segurava uma das Pedras Lunares. Na esquerda, arrastava o corpo inerte de uma criatura deformada, com membros retorcidos e olhos que pareciam brilhar fracamente mesmo na morte.

    Ele largou a criatura no chão diante de Luma, que estava na entrada.

    — Perdão por ter causado certo problema — disse ele, entregando a Pedra Lunar a ela.

    Antes que alguém pudesse reagir, Dante entrou no prédio, caminhando para o interior sem dizer mais nada.

    Os dias seguintes foram um desfile de tentativas frustradas de reanimar o espírito de Dante. Clara viu os outros tentarem de tudo: conversas casuais, piadas, comida, até mesmo demonstrações de habilidades que poderiam facilitar as operações no abrigo. Mas ele respondia com o mesmo sorriso curto e um aceno de cabeça, como se não quisesse desanimar ninguém, mas também não conseguisse se envolver.

    Clara o observava de longe, sentindo a distância crescer. Dante estava ali, mas não estava presente. Ele havia erguido um muro ao seu redor, e Clara não sabia como atravessá-lo. Mas, no fundo, ela sabia que precisava encontrar um jeito. Não só pelo bem dele, mas pelo bem de todos no abrigo. Dante era a força que os mantinha unidos, mesmo quando ele próprio estava à beira de se desfazer.

    Foi então, que Jix se aproximou dele. O velhinho não disse nada ao outro. Eles apenas esticou o braço e Dante o puxou para seu ombro. Os dois ficaram olhando a tempestade rondar do lado de fora, em silêncio.

    Perder a esperança era pior do que perder uma pessoa, Clara conhecia bem a sensação. Não lembrava quando começou a estar sozinha no mundo, mas antes de Dante aparecer e mudar tudo, seus sonhos eram apenas sonhos.

    Não queria mais ficar observando. Tempo demais havia passado.

    Ela caminhou na direção dos dois, mas quando chegou no meio do caminho, ouviu Jix falar.

    — Perdi minha filha faz cerca de três anos.

    Clara parou na mesma hora.

    — Perdi meu segundo filho faz cinco anos — continuou o velhinho. — Perdi meu terceiro e quarto filho faz dez anos. Minha esposa um pouco antes deles todos. Perdi muita gente, Dante. Mais do que a justiça divina deveria ter feito.

    Jix falava em um tom baixo, mas cada palavra parecia carregar o peso de uma vida inteira de perdas. Clara congelou no meio do caminho, sentindo o impacto daquelas palavras como se fossem dirigidas a ela.

    Dante permaneceu em silêncio, olhando fixamente para a tempestade lá fora. Jix continuou:

    — Quando perdi minha esposa, pensei que fosse morrer junto com ela. Não via propósito algum em continuar. — Ele balançou a cabeça, como se revivesse o momento. — Mas então vieram meus filhos. Eu continuei, por eles.

    O velhinho ajeitou a bengala, usando-a para se apoiar enquanto seu olhar também se fixava no horizonte branco e desolador.

    — E então os perdi também. Um por um. Cada vez, pensei que fosse a última, que nada mais poderia ser tirado de mim. Mas sempre havia algo mais. Sempre.

    Clara percebeu que suas mãos estavam tremendo. A voz de Jix era dura, mas não amarga. Havia algo além da dor em suas palavras — uma aceitação amarga, mas resoluta.

    — Você sabe o que me mantém de pé agora, Dante? — Ele perguntou, virando levemente a cabeça para o homem ao seu lado. — Não é esperança de um futuro melhor, porque sei que esse mundo não é gentil. Não é justiça, porque há muito tempo deixei de acreditar nisso.

    Dante finalmente desviou os olhos da janela e olhou para Jix.

    — O que me mantém de pé — disse Jix, com a voz mais firme — é a escolha. A escolha de continuar. Não porque espero algo em troca, mas porque não vou deixar esse mundo decidir por mim quando vou cair.

    O silêncio que se seguiu parecia mais denso do que a própria tempestade. Clara sentiu as lágrimas se acumularem em seus olhos, mas não ousou interromper.

    Jix deu um leve tapinha no ombro de Dante.

    — Sua casa não morreu, sua família está viva. Tudo o que você tem ainda está aqui nesse mundo. Mas, longe demais para chegar. Você está triste porque acha que nunca mais vai voltar. Está matando a ideia de procurar uma solução enquanto pensa que talvez, aqui em Kappz, nunca será sua casa. Você tem medo, medo de não conseguir.

    — Não desisti de nada ainda. Vou morrer algum dia, mas não antes de voltar a ver meus pais e minha irmã. — Ele sorriu, os lábios erguidos em uma só ponta. — Depois, quem sabe eu não pare de ser tão teimoso pela vida.

    — Somos cercados por tantos problemas, meu amigo. Você sempre sorriu para os problemas, então quando as pessoas começam a te ver jogado pelos cantos, elas pensam que tudo está piorando. — Jix suspirou. — Nunca gostei de alguém carregar o peso das pessoas nos ombros, mas nunca fui forte o suficiente para fazer isso. Eu quero poder te ajudar, mas quero que me ajude também. Juno e Marcus estão por ai sem uma direção, Meliah e Degol precisam estar na linha. Os suprimentos devem ser bem distribuídos. Lembra do que eu disse uma vez pra você? Clara seria a representação da liderança, Marcus o respeito, e você carregaria a sensação de invencibilidade. Seu pai te ensinou tanto a apanhar que quando você enfrentou seus inimigos todos, nunca mostrou nenhuma cara de derrota, mas agora, se algum deles vissem o que eu estou vendo, aposto que iriam rir da sua cara. Como que o poderoso Dante decaiu tanto?

    A cabeça do Recruta da Capital pendeu mais um pouco. Clara viu que aquelas palavras o tocaram, mais do que qualquer outra antes. Mais do que ela poderia ter feito.

    — Essa pode não ser a sua casa — continuou Jix. — Mas é onde todos que você salvou se sentem seguros. Então, que tal ter um pouco mais de respeito?

    Clara esperava que ele ficasse em silêncio.

    — Desculpe se fui desrespeitoso. — E quando sua cabeça se levantou, ele sorriu de orelha a orelha. — Vou tentar ser mais otimista a partir de agora.

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