Capítulo 123: A Cidade Sem Nada (II)
Magrot inclinou a cabeça, o brilho metálico de seu pescoço denunciando a rigidez de seus movimentos. Sua voz era um eco metálico, como se viesse de um homem preso dentro de uma máquina.
— Duna foi quem nos criou, de certa forma. — Ele pausou, sua expressão endurecida. — Nos deu abrigo, nos deu propósito.
As palavras saíram de sua boca como engrenagens rangendo, cada sílaba carregando o peso de suas cicatrizes. Desde que Dante o derrotara, mais partes metálicas haviam sido integradas ao seu corpo, como uma reconstrução grotesca de algo que nunca deveria ter sido quebrado. E, ainda assim, ele era pateticamente inferior ao que Verônica havia sido.
— Quando chegamos até ele, Duna nos recebeu. — Arsena interveio, sua voz um pouco mais humana, mas não menos desgastada. — Ele sempre mostrou uma afinidade incrível com a tecnologia, mas também nos ensinou a lutar. O homem mais inteligente que já conhecemos. — Ela hesitou, o olhar perdido. — Mas o chefe dele é o nosso chefe.
Dante observou os dois, seu olhar clínico captando os detalhes: o cansaço em seus olhos, o jeito como suas palavras carregavam não apenas respeito, mas também medo. Quando Magrot finalmente falou, o nome saiu como uma lâmina, cortando o silêncio.
— Havok. — A palavra parecia envenenada, rasgando-o de dentro para fora. — Ele nos ensinou a sobreviver aqui fora. Ele nos treinou com os melhores soldados. Sempre foi mais forte, mais rápido, mais esperto que nós dois juntos.
Dante franziu o cenho, a curiosidade momentânea dando lugar ao ceticismo.
— E onde está o seu chefe agora?
Magrot balançou a cabeça lentamente, como se a resposta fosse um peso que ele não conseguia carregar.
— Não sabemos. Perguntamos a Duna várias vezes, mas ele nunca disse nada. Só dizia que Havok estava em uma missão mais importante do que qualquer outra coisa. Agora, Duna está ferido, Havok está desaparecido, e nós estamos aqui… pedindo ajuda.
— Não vamos abusar da hospitalidade. — Arsena tentou, sua voz um pouco mais firme. — Só queremos que curem o velhote. Ele é… importante pra nós.
Dante estreitou os olhos, sua expressão endurecendo como pedra.
— Juno também era importante pra mim. — A voz dele saiu baixa, mas carregada de um peso que encheu o vazio ao redor. — E você veio atrás dela, querendo um pedaço. Clara foi jogada de um prédio por pessoas como vocês. — Ele deu um passo à frente, sua Energia Cósmica escapando como um vento invisível que pressionava os dois, esmagando-os em suas cascas de inferioridade. — Pessoas importantes pra mim teriam morrido se eu não estivesse lá. Vocês entendem a diferença agora?
O silêncio era esmagador. Arsena e Magrot não ousaram levantar os olhos. Até Marcus, normalmente seguro e confiante, recuou um passo, como se sentisse a gravidade que emanava de Dante.
— Vocês estão perdendo alguém, e ainda assim colocam a culpa em outra pessoa. Havok, esse chefe que vocês veneram, não significa nada pra mim. — A voz de Dante tornou-se mais fria, cortante. — Se ele aparecer aqui, a única coisa que receberá será uma proposta. E ele não terá como recusá-la.
Os dois abaixaram a cabeça, derrotados. A tensão na sala era palpável, e Dante sabia que os havia dobrado. Ele suspirou, diminuindo a pressão. Os dois soltaram o ar preso, como se fossem balões desinflando.
— Quero poder dizer que seu amigo será salvo pelos meus. — A voz dele suavizou, mas ainda era dura como pedra. — Eu quero que ele melhore. Mas vamos ser claros: por enquanto, somos desconhecidos. — Ele deu um passo para trás, seu tom assumindo um ar final. — Clara acha que eu posso manter vocês dois sob controle. Vamos ver. Não façam besteira, ajudem quem precisa, e talvez, se tiverem sorte, possam ficar um pouco mais.
Magrot, ainda com a cabeça baixa, murmurou:
— Obrigado. Sei que abrir as portas de sua casa para estranhos como nós é uma escolha difícil. Só quero que meu amigo viva.
Dante deu um aceno curto, virando-se para sair. Quando Marcus olhou para ele, viu um leve sorriso curvando o canto de sua boca, algo quase imperceptível, mas lá.
Antes que Dante pudesse dar outro passo, Arsena ergueu a voz.
— Eu… — Ela hesitou, as palavras parecendo um fardo. — Gostaria de falar sobre algo que sei. Algo que pode ajudar Duna… e também vocês.
Dante parou, mas não se virou. O silêncio que se seguiu foi quase insuportável, até que ele falou, sua voz fria como gelo.
— Fale. E não me faça perder tempo.
É sobre GreamHachi. — Arsena finalmente disse, sua voz um fio tenso prestes a se romper. — Eu sei que conhecem aquele lugar, sei que sabem o que eles fazem com as pessoas. — Suas mãos se fecharam em punhos, os dedos tremendo de raiva contida, mas um olhar de Magrot a silenciou por um instante. — É necessário falar. Uma hora pode ser eles… e também a gente.
Marcus estreitou os olhos, um brilho inquisitivo cruzando seu olhar enquanto apontava um dedo acusador para ela.
— Fale. — Sua voz era ríspida, cortante. — O que aquela merda de cidade está aprontando agora?
— É a tempestade, atiradorzinho. — Arsena respondeu, sua voz carregando uma nota peculiar, que parecia zombaria, mas era apenas o jeito direto de quem tinha pouco a perder. — Está tudo errado ultimamente. Você também é daqui, não é? Já deve ter percebido. Está longo demais, está forte demais. Os ventos nunca param. As colheitas estão morrendo. As águas congelando.
Dante virou-se abruptamente. Aquelas palavras o atingiram como um soco. Ela estava falando de algo que ele também vinha ponderando há semanas, talvez meses. Nunca antes ele vira um inverno tão prolongado, tão implacável. As tempestades deveriam cessar após quatro meses, um ciclo conhecido por todos. Mas agora, indo para o quinto mês, não havia sinal de alívio. Na verdade, parecia que a fúria do inverno apenas crescia a cada dia.
— Continue. — A palavra de Dante saiu dura, quase um comando.
— Sempre busquei informações, andando por onde podia. Havok me ensinou a fazer isso. — Arsena respirou fundo, como se preparar para o que estava por vir. — Então, fui até aquela cidade. GreamHachi. Eles têm um acesso pelos túneis que passam perto de onde moramos, mas nunca vieram até nós. Eles não gostam dos impuros, detestam a gente. — A amargura em sua voz era cortante. — Mas eles usam andarilhos e moradores perdidos como cobaias.
— Controle mental, não é? — Marcus interrompeu, suas palavras carregadas de uma certeza desconcertante.
Arsena ergueu as sobrancelhas, surpresa.
— Você já viu?
— Claro que já. — Marcus cruzou os braços, o tom dele ficando mais ácido. — O que mais vejo são pessoas indo até o Reservatório pegar água. Mas andam de um jeito esquisito, desengonçado, como marionetes. Quando pegam o que querem, saem em direção a uma parte da cidade onde não há nada.
— Sim, eles vão até a Zona Cega. — Magrot finalmente interveio, sua voz metálica pesada como ferro. — Lá, deixam tudo em um bueiro. — Ele fez uma pausa, a respiração ofegante enquanto olhava para o chão, como se a memória pesasse em seus ombros de aço. — Quando eu vim de lá, ouvi das pessoas que GreamHachi não tem mais nada. Nem água, nem comida.
O silêncio se abateu como um golpe, até que Magrot ergueu a cabeça, seu único olho humano cintilando em um amarelo doentio, encarando Dante e Marcus com uma intensidade quase predatória.
— E eles vão vir. Para onde ainda tem isso. — A voz dele era uma profecia sombria. — Eles já sabem sobre a bateria, sobre vocês, sobre a comida. Eu sabia… mas achei que fossem só um bando de gente esperando a morte.
Dante deu um passo à frente, os olhos fixos em Magrot.
— E bateu de frente com esse velhote, hein. — Marcus zombou, mas sua voz carregava um tom de alerta.
Magrot soltou um sorriso quebrado. Arsena sabia que eles tinham lutado e do mesmo jeito que ela ficou desnorteada, viu Magrot também acabado. Ele tinha uma missão que era voltar sem perder para ninguém, uma promessa que havia feito a Magrot, e falhou.
Uma promessa que não valia nada para alguém que nem mesmo estava ali.
— Eles vão vir — disse Dante, confiante. — E vão ter a cara arrastada no chão. Quero que saibam, estamos quites. A criatura que disseram que atacou seu colega foi criada por uma escolha pessoal minha. E isso causou problemas.
Os dois não souberam o que falar. Dante não precisava ter falado aquilo, mas fez justamente para que pudessem ter confiança em suas palavras. Marcus achava inteligente, mas um tanto quanto brutal.
— Se seu colega morrer, podem colocar a culpa em mim.
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