Capítulo 124: Protótipo de Si
— Está pior do que imaginei. — Simone murmurou, ajustando o pano que cobria sua boca e nariz. Mesmo assim, o cheiro metálico do sangue e da carne em decomposição parecia invadir seus sentidos. Ela se inclinou sobre o braço ensanguentado de Duna, onde cortes profundos e tecido exposto tornavam cada movimento delicado e urgente.
Clerk, ao seu lado, segurava um balde com água, as mãos trêmulas após horas de trabalho incessante. O chão ao redor deles estava coberto de panos ensopados, manchados de vermelho e um marrom escuro. Dez panos, talvez mais, e nada parecia suficiente para conter o estrago.
— Consegue pegar aquele pequeno jarro? — Simone pediu, apontando com o queixo para a mesa improvisada ao lado. — Vou fazer uma limpeza com ervas densas. Talvez consigamos reduzir a necrose antes de continuar.
Clerk assentiu, pegando o jarro pela alça e entregando-o com cuidado. Simone mergulhou a mão na mistura espessa e fria, sentindo o cheiro pungente das ervas. Quando retirou a mão, ergueu os braços para que Clerk aproximasse a mesinha improvisada. Sobre a superfície irregular, estavam espalhados jarros e potes de tamanhos e cores variados. Cada um carregava substâncias específicas: pós, líquidos, e extratos que Simone sabia usar com precisão cirúrgica.
Com um dedo coberto de pó vermelho, ela começou a desenhar linhas sobre o braço de Duna. O pó reagiu imediatamente, formando uma costura fina e vibrante que se entrelaçava com os músculos expostos. A linha, no entanto, travou em um ponto crítico, onde o tecido estava mais danificado.
— Vai precisar de mais que isso. — Clerk murmurou, inclinando-se para frente. Ele estendeu a mão sobre o ferimento, os olhos se fechando enquanto concentrava sua energia. Um brilho tênue percorreu seus dedos, envolvendo o músculo despedaçado. Aos poucos, o tecido começou a se reformar, fibra por fibra.
Simone observou em silêncio, os lábios comprimidos em uma linha fina. Sabia o preço que Clerk pagava cada vez que usava sua habilidade. O suor já escorria pela testa dele, o rosto começava a empalidecer.
— Já está bom. — A voz dela cortou o ar, ríspida, mas cheia de preocupação. — Se você ficar sem força, sua esposa vai ficar sem marido.
Clerk recuou com um sorriso cansado, limpando o rosto com a manga. Ele se deixou cair em uma cadeira próxima, respirando pesadamente.
— Minha esposa sabe que estou aqui. Não tem problema se…
— Claro que tem. — Simone interrompeu, ainda sem olhar para ele. Suas mãos continuavam trabalhando no braço de Duna, agora cauterizando os pontos mais críticos. — Uma esposa sem marido. Filhos sem pai. — Sua voz endureceu. — Pode ir. Já cauterizamos praticamente todo o braço. Os dedos, eu cuido sozinha.
Clerk hesitou, os olhos ainda fixos na cena diante dele. — Tem certeza, senhora?
— Vai logo. — Simone respondeu sem paciência, mas havia um calor subjacente em suas palavras. — Antes que eu me arrependa de te mandar descansar.
Clerk deu uma última olhada para o ferido e se levantou, a mão apoiada na cadeira para se equilibrar. Ele saiu cambaleando, mas com um leve sorriso no rosto. Sabia que, por trás da dureza de Simone, havia um coração que se recusava a deixar alguém para trás, mesmo que isso significasse sacrificar um pedaço de si mesma.
Quando ele desapareceu pela porta, Simone suspirou, finalmente permitindo que sua postura rígida cedesse por um instante.
— Vamos lá, velhote. — Murmurou para Duna, enquanto seus dedos habilidosos continuavam o trabalho. — Não me faça perder a paciência agora.
Uma risada quebrada e seca ecoou no ambiente silencioso, carregada de dor e cansaço.
— Sabia que eu estava acordado? — Duna murmurou, a voz rouca e arranhada. — Achei que conseguiria ficar quietinho na minha.
Simone o olhou de lado, sem desviar o foco das mãos mergulhadas no jarro viscoso. Quando retirou as mãos, respingos da mistura pingaram no chão já marcado de sangue e ervas.
— Sou velha demais para ser enganada por isso. — Ela respondeu com simplicidade, caminhando até a cadeira próxima à maca. Sentou-se com um suspiro pesado, o olhar fixo no braço destroçado dele. — Então, vamos conversar sobre isso aqui que você chama de braço. Tá acabado, sabe disso, não é?
Duna soltou uma risada amarga, inclinando a cabeça para o lado como se pudesse afastar o peso das palavras.
— É, eu já esperava. A carga do Sakuzi Fezz era alta demais. — Ele fez uma pausa, os dentes cerrados enquanto um espasmo de dor atravessava seu corpo. — Era uma evolução de uma arma que eu estava tentando… — O grunhido que escapou foi involuntário, a dor quebrando sua fala. — Merda… eu só não esperava que fosse acabar com todos os músculos. Fez um ótimo trabalho nisso aqui.
— Era o único trabalho possível. — Simone corrigiu, seca, mas sem hostilidade. — Costurei as veias porque, se isso não fosse a prioridade, você teria que ter esse braço arrancado.
Ela apontou para o membro machucado, agora coberto por linhas costuradas que pareciam um emaranhado de fios vivos, pulsando fracamente com cada batida de seu coração. As áreas mais afetadas estavam envoltas em um brilho opaco, resultado das ervas densas e da energia de Clerk.
— Você entende o que isso significa, não entende? — Simone continuou, a voz carregada de seriedade. — Esse braço não vai ser o mesmo. A força que você tinha… está comprometida. Qualquer esforço desnecessário pode rasgar tudo de novo.
Duna soltou o ar com força, o maxilar tenso.
— É melhor que perder o braço. Já perdi coisas demais na vida. Um braço mais fraco ainda é um braço.
Simone inclinou-se para frente, os olhos duros e analíticos fixos nele.
— Não se trata só de força. — Ela disse, gesticulando em direção ao ferimento. — Se essa infecção voltar… não vou conseguir fazer nada além de amputar. Isso aqui é temporário, entendeu? Se quiser sobreviver, vai ter que fazer sua parte.
— Sim, senhora. — Duna respondeu com um sorriso fraco, mas havia um peso na sua voz que não passava despercebido. Ele sabia que as chances de recuperação completa eram ínfimas, mas também sabia que não tinha outra escolha.
Simone se levantou, alisando o avental ensanguentado com as mãos.
— Agora descanse. Não tente bancar o herói por enquanto. — Ela fez uma pausa antes de continuar. — Você já fez merda suficiente para precisar de outro milagre.
Duna sorriu de canto, um sorriso que não chegava aos olhos. — É… parece que os milagres estão acabando.
— Então não desperdice os poucos que ainda restam. — Simone respondeu antes de sair, deixando Duna sozinho com seus pensamentos e a dor que latejava em cada centímetro do braço ferido.
— Não precisa disso. — Duna murmurou, a voz carregada de determinação apesar da fraqueza evidente. — Eu posso criar uma ramificação metálica. Vou precisar só dos meus equipamentos. Quanto tempo fiquei desacordado?
Simone arqueou uma sobrancelha, limpando as mãos com um pano já encharcado de sangue seco
— Deve ter sido umas quatro horas, antes de começar a fingir que estava apagado. Por quê?
Duna soltou um riso abafado, que logo foi cortado por uma careta de dor.
— Então aqueles dois me trouxeram para cá em menos tempo do que eu imaginei. Bom, pelo menos estão vivos. — Ele olhou para Simone, com um brilho de determinação nos olhos. — Posso pedir pra ver os dois? Tenho quase certeza de que, se eu pedir, eles conseguem o necessário para consertar esse braço.
Simone inclinou-se contra a mesa improvisada, cruzando os braços, a expressão cética. — Acha mesmo que isso tem conserto? Já vi melhores do que isso aí serem descartados como sucata.
— Eu não sou sucata. — Duna respondeu de imediato, o tom firme, mas sem perder o humor amargo. — Só preciso de material e tempo. Não vou desperdiçar o que ainda me resta. Esse braço vai ser funcional de novo, de um jeito ou de outro.
Simone o estudou por um momento, o rosto endurecido por anos de trabalho com feridos que, muitas vezes, não tinham salvação.
— Mesmo que consiga, isso vai custar caro. Não só em material, mas em você. Essas “ramificações metálicas” que você fala tão orgulhoso… elas não vão trazer os músculos de volta. Só vão mascarar a perda.
— Mas é o suficiente. — Duna retrucou, cerrando os dentes enquanto movia levemente os dedos, como se quisesse provar um ponto. — Eu não preciso de um braço perfeito. Só preciso de um braço que funcione.
Simone suspirou, balançando a cabeça.
— E o que garante que você não vai acabar piorando tudo? Não é só sobre consertar o que quebrou. É sobre garantir que isso não te mate no processo.
— E quem disse que eu me importo com isso? — Ele rebateu, a voz ganhando um tom sombrio. — Eu só preciso continuar útil. Se não conseguir fazer isso, então já estou morto de qualquer forma.
A resposta fez Simone apertar os lábios em uma linha fina, os olhos endurecendo enquanto ela se afastava da mesa. — Vou ver o que posso fazer sobre seus “equipamentos”. Mas, se você começar a se deteriorar de novo, não espere que eu conserte sua teimosia. Só tenho tempo para salvar quem quer viver.
— Eu quero viver. — Duna respondeu, sem hesitação, o olhar fixo no dela. — Só não do jeito que estou agora.
Simone não respondeu de imediato, apenas pegou o pano sujo e jogou em um balde ao lado.
— Vamos ver se seus amigos são tão competentes quanto você acha. — Ela disse, antes de sair, deixando Duna sozinho para encarar o braço ferido que ele tanto insistia em salvar.
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