Índice de Capítulo

    Leonardo Vulkaris estava sentado no banco desgastado da pequena praça, uma ilha de tranquilidade em meio ao caos que pairava sobre GreamHachi. A luz da manhã, pálida e hesitante, filtrava-se pelas copas das árvores cobertas por uma fina camada de neve, iluminando o lugar com uma suavidade quase melancólica. Ao seu redor, as pessoas pareciam dançar entre risos e conversas, como se fossem alheias à tempestade invisível que ele carregava nos ombros.

    Um comerciante ambulante passou perto, oferecendo algo que Leonardo não registrou. Ele recusou com um aceno educado e um sorriso breve, a cortesia mascarando a exaustão que sentia. Com um gesto automático, arrumou os fios brancos do cabelo longo, que pareciam ainda mais pesados naquele dia. Ao olhar para as próprias mãos, as rugas marcadas pelo tempo o fizeram rir baixinho. Era estranho como o peso da idade nunca parecia realmente proporcional ao que se carregava na alma.

    Ele esperava há mais de uma hora. Quando finalmente avistou Gerhman, endireitou-se no banco, deixando a postura formal de lado. Levantou-se para cumprimentá-lo, estendendo a mão com um aperto firme.

    — Achei que não viria.

    — Quase não vim, para ser sincero. — Gerhman respondeu enquanto devolvia o cumprimento e tomava assento ao lado. — Reuniões e mais reuniões. Elas me esgotam. Passei metade da manhã debatendo petições sobre Kappz e tentando ver se Maethe faria algum movimento.

    Leonardo arqueou uma sobrancelha, esperançoso.

    — E?

    — Nada. — Gerhman suspirou, esfregando as mãos para afastar o frio. O vapor de sua respiração formava nuvens cinzentas no ar gelado. — Nem mesmo uma testemunha sobre o caso da água. Os que estão do lado de fora… estão sendo usados como um escudo contra nós.

    Sua voz estava baixa, mas carregada de frustração.

    — Para ser honesto, estamos perdendo terreno. Qualquer ameaça que podíamos oferecer aos Romancers está sendo eliminada. Raver, Trinity, Harrow… todos desapareceram sem deixar rastros. Nem sabemos se estão vivos.

    Leonardo fechou os olhos e soltou um longo suspiro.

    — Queria poder fazer mais.

    Gerhman inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. O palito de dente que sempre mascava foi retirado com um gesto quase mecânico, girando entre seus dedos antes de ser descartado.

    — Você já está fazendo bastante, Leonardo. Seu nome, sua história… são o suficiente para manter esses bastardos afastados dos experimentos com os moradores do lado de fora.

    A menção às fazendas perdidas pairou entre eles como uma sombra. Gerhman continuou:

    — Está ficando complicado. Entre lidar com eles e a falta de recursos… as fazendas eram nosso pilar, e agora estamos de mãos atadas.

    Por um momento, nenhum dos dois falou. O silêncio foi quebrado apenas pelo som de passos apressados e pelo vento que trazia o cheiro metálico do frio.

    — Sua esposa sabe de tudo isso? — Gerhman perguntou de repente, enquanto um dos soldados da cúpula passava perto, lançando-lhes um olhar breve, mas atento.

    Leonardo demorou a responder.

    — Ainda tento manter as coisas sob controle. Tem muita gente dizendo que a comida vai acabar lá fora, e eles não têm nenhum plano de contingência. — Ele fez uma pausa, o olhar fixo na neve acumulada. — Essa tempestade… esse inverno… está durando muito. Se continuar assim, ficaremos sem escolha.

    Gerhman olhou para ele, a seriedade marcando seu rosto.

    — O que Maethe está fazendo é errado, concordamos nisso. Mas se chegarmos a esse extremo, Leonardo, o que faremos?

    Leonardo não respondeu de imediato. O peso da pergunta parecia mais frio que o próprio inverno ao seu redor. Finalmente, com um tom amargo, admitiu:

    — Para ser sincero, estou ficando sem opções. Se Maethe continuar com essa autorização máxima sem fazermos nada, vai chegar uma hora que toda a cúpula vai atrás dos moradores da cidade. Já não basta termos que manter todos eles lá fora porque acham divertido, agora vamos ter que ficar aturando esse tipo de ditadura mental? Havok também estava lá fora, o que aconteceu?

    — Maethe é um caso bem peculiar para resolver. Sem provas, sem prisão. — Gerhman estreitou os olhos, as rugas em sua testa ficando mais profundas. Fechou a mão lentamente, como se tentasse medir sua própria força. — Acredito que ninguém na cúpula vai querer mexer com ela por causa da habilidade… mas, se eu pudesse decretar verdade ou morte, talvez ganhássemos algum tempo.

    Havia um peso no tom de sua voz, um eco de frustração que Gerhman compreendia. Leonardo queria acreditar que era possível fazer algo. Porém, Maethe, Raver e Trinity eram uma tríade peculiar. Jovens, com pouco mais de vinte anos, haviam provocado uma revolução na cúpula que mudou a estrutura de poder de maneira irreversível.

    Até mesmo Leonardo, que era uma figura estabelecida dentro da cúpula, foi forçado a se aposentar. Novos membros foram escolhidos — um empreiteiro, alguns comerciantes — para “modernizar” a administração da cidade. Mas a verdade era outra. A experiência dos mais velhos fora descartada, substituída por uma crença cheia de preconceitos e pragmatismo brutal.

    Agora, a cúpula usava os desafortunados — aqueles sem casa, sem esperança — como ferramentas para obter recursos. Era um ciclo de desespero que corroía a moralidade da cidade.

    Gerhman interrompeu os pensamentos sombrios de Leonardo.

    — O que me impressionou foi como eles conseguiram água potável.

    Leonardo ergueu uma sobrancelha.

    — Água potável? Onde?

    — O único lugar que conhecemos e que não deveria estar congelado é o Reservatório. Mas é longe demais, e os Felroz dormem lá dentro.

    Leonardo cruzou os braços, ponderando.

    — Pode ser que tenham encontrado outro lugar.

    Gerhman balançou a cabeça, o olhar fixo no chão coberto de neve.

    — Não. Maethe disse que foi até o Reservatório. O contato dela afirmou que aquele era o único lugar possível para obter água. Mas ela também disse que deveria tomar cuidado, porque…

    Ele hesitou, como se avaliasse o impacto do que estava prestes a dizer.

    — Porque há alguém causando uma bagunça em Kappz.

    Leonardo franziu o cenho, sua curiosidade despertada.

    — Que tipo de bagunça?

    Gerhman inclinou-se para frente, o tom de sua voz se tornando quase conspiratório.

    — Não sei os detalhes, mas dizem que ele não é como os outros. Ele está caçando coisas… coisas que ninguém mais ousaria buscar. Alguém mencionou a Pedra Lunar.

    O nome pairou no ar, carregado de implicações. Leonardo endireitou-se no banco, sua mente correndo com possibilidades.

    — A Pedra Lunar? Isso não passa de um mito.

    — É o que eu pensei. Mas se ele realmente está atrás dela… e se conseguiu mesmo alguma vantagem com isso… — Gerhman fez uma pausa, seus olhos se estreitando. — Isso muda tudo.

    Leonardo ficou em silêncio por um momento, absorvendo a informação. O vento frio cortava a praça, mas ele mal sentia.

    — Se for verdade, talvez ele seja exatamente o tipo de pessoa que precisamos. Ou… — Ele deixou a frase no ar, mas Gerhman entendeu o que ele não disse.

    — Ou ele pode ser mais uma ameaça que não podemos lidar.

    Os dois pararam, deixando o silêncio reinar entre seus pensamentos. Leonardo não tinha muito a se pensar por um homem que procurava por mitos e lendas. A Pedra Lunar tinha um retoque diferente para aqueles que viviam dentro de GreamHachi, era um minério perdido no tempo, antes mesmo da destruição do lado de fora, mas que seria suficiente para manter a eletricidade que eles tanto buscavam na hidrelétrica anos atrás.

    Um sonho que nem mesmo eles poderiam tocar ultimamente.

    Leonardo ergueu a cabeça, e no entanto, quando o fez, viu a barreira.

    — Você está vendo o mesmo que eu?

    Todos na rua encaravam aquela azulada barreira que os protegia sendo ondulada. Ela sempre tinha sido firme e reforçada, era raro algo a não ser um choque físico do lado de fora ocorresse. Nunca houve algo nos últimos trinta anos que se chocou ao ponto de criar esse tipo de ondulação.

    Os dois levantaram juntos. Soldados e homens da cúpula passaram correndo já gritando, e um deles reconheceu Leonardo e Gerhman. Ele parou, respirando fundo.

    — Senhores, parece que o Cerberus está preso na barreira. Alguma criatura deve ter jogado da hidrelétrica.

    Leonardo cogitou a distância e rapidamente negou.

    — São praticamente dez quilômetros de cavalo até aqui, quase um dia de viagem.

    — Raver e Luterio foram convocados — o soldado disse apontando. — E eu tenho certeza que Maethe e Trinity vão chegar para ver o que houve.

    Leonardo levou a mão a cintura, mas não sentiu sua antiga companheira esperando seu chamado. E no entanto, ainda assim, manteve a postura para os dois.

    — Me mostre onde ele está e…

    Outro estrondo, dessa vez, dentro da camada interna da barreira. Uma segunda ondulação balançou o ar dentro da cidade, fazendo algumas tochas se apagarem e o frio da tempestade se instalar. A roupa deles balançaram juntos.

    E então, houve a quebra. Eles observavam a imensa barreira se destroçando em fragmentos, decaindo como se fosse uma parte da neve, e a tempestade que antes era controlada pela própria proteção de Energia Cósmica, penetrou pelas ruas, lançando a neve e apagando as tochas.

    Gerhman rapidamente chamou pelo soldado.

    — Dê sua arma para Leonardo e volte para pedir que as pessoas sejam levadas para longe.

    Antes de receber a espada, Leonardo não pôde ficar observando o que havia acontecido.

    — Não tem como…

    — Leonardo! — gritou Gerhman à frente, a voz quase sendo engolida pela tempestade. Ele lutava contra os elementos, os passos firmes sobre o solo escorregadio. — Alguém quebrou a barreira! Vai entrar na cidade… é um Impuro!

    Leonardo Vulkaris parou por um instante, os olhos arregalados em descrença. Segurava firme a espada com uma mão, enquanto na outra empunhava uma arma mais leve. Um Impuro? A ideia parecia absurda, mas a realidade estampava-se à sua frente.

    Os dois correram juntos, o som das botas ecoando entre as ruas, até o local onde o estrago era visível. Uma das torres de defesa jazia no chão, seus escombros esmagando o que restava de um antigo armazém inutilizado. A destruição se estendia pela rua principal, onde carroças despedaçadas e entulhos criavam um caminho tortuoso. Soldados e moradores haviam parado, estáticos, com os olhares fixos no céu.

    Leonardo seguiu o mesmo olhar. No alto, um homem de idade avançada, vestido em uma farda vermelha desbotada, observava a cidade. Sua expressão carregava uma tristeza profunda, quase sufocante. Mas não era isso que chamou a atenção de Leonardo. Ele sentiu. A Energia Cósmica que emanava daquele homem o fez estremecer.

    — Gerhman, não se envolva agora. — Sua voz saiu baixa, quase inaudível, mas carregada de tensão.

    Gerhman se virou para ele, confuso, apenas para vê-lo desembainhar a espada com uma lentidão calculada.

    — Esse homem não é comum — murmurou Leonardo, os olhos fixos na figura imponente. Ele deu um passo à frente, passando por Gerhman, o corpo inteiro em alerta.

    Foi então que avistaram mais movimento. Raver e Trinity surgiram, correndo pelas telhas das casas com a destreza de caçadores. No mesmo instante, um estrondo ecoou quando os escombros do armazém foram arremessados para trás.

    Dali emergiu uma figura mascarada, coberta de poeira e visivelmente ferida. Um dos braços pendia em um ângulo grotesco, claramente deslocado. Mas antes que pudessem reagir, uma aura intensa, de um verde pulsante, envolveu o homem. A energia reajustou seus ossos com um estalo horrendo, arrancando-lhe um grito gutural de dor.

    — É Cerberus! — exclamou Gerhman, a voz carregada de choque. Ele se aproximou de Leonardo, os olhos arregalados diante do que acabara de presenciar. — Ele foi… ele foi arremessado aqui?

    Leonardo não respondeu de imediato. A mão que segurava a espada estava firme, mas seus olhos brilhavam com uma mistura de fascínio e cautela.

    — Seja o que for… não abaixe a guarda. — Sua voz era fria, calculada, enquanto ele se preparava para o que estava por vir.

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