Capítulo 137: Conte
Dante sentou-se em uma cadeira frente a frente com Cerberus, os olhos fixos no homem que parecia carregar o peso de um mundo inteiro em silêncio. Fazia um dia inteiro desde que Cerberus havia dito qualquer palavra a Degol ou Meliah. Ambos tentaram, sem sucesso, extrair algo dele — perguntas sobre sua história, suas motivações para querer tanto entrar na cidade, até mesmo qualquer fragmento de explicação para suas ações. Mas ele permanecia como uma rocha, impenetrável e fechado.
Embora Dante preferisse passar o tempo dentro do prédio com Clara Silver, a questão de Cerberus ainda pairava como uma nuvem pesada. Ele sabia que aquilo precisava ser resolvido, mas o silêncio do homem era exasperante.
— Não te tirei daquele lugar para descobrir que vai voltar pra lá na primeira oportunidade — disse Dante, colocando um copo de água no chão, bem diante de Cerberus. Seu tom era firme, mas havia uma pitada de cansaço na voz. Ele desviou o olhar brevemente para Meliah, indicando as correntes que mantinham o homem preso. — Pode cortar.
Meliah hesitou, franzindo o cenho em um misto de incredulidade e preocupação.
— Tem certeza? Você mesmo disse que ele era perigoso, especialmente por causa da habilidade dele.
Dante permaneceu impassível, esperando que Cerberus finalmente erguesse a cabeça. A tensão no ar era palpável, cada segundo arrastando-se como uma eternidade. Quando o olhar de Cerberus finalmente encontrou o de Dante, a intensidade no silêncio parecia gritar mais alto do que qualquer palavra.
— Vou ter que bater mais pra você criar juízo ou posso confiar em você pra beber um pouco de água? — Dante perguntou, a voz cortante como uma lâmina, mas com um fio de provocação que desafiava Cerberus a reagir.
O homem respondeu com um leve movimento de cabeça, um gesto quase imperceptível, mas que não passou despercebido. Sem dizer mais nada, Dante deu um sinal para Meliah, que finalmente cedeu e cortou as correntes.
O som metálico ecoou pelo espaço. Cerberus rapidamente pegou o copo, puxando a máscara branca para cima com um movimento apressado e desajeitado. Bebeu toda a água em um só gole, deixando-a escorrer pelo rosto e pelo pescoço. O som seco da respiração ofegante misturava-se ao gotejar no chão, enquanto ele segurava o copo vazio como se fosse um troféu de sobrevivência.
Dante, sem olhar, fez um sinal com a mão. De um canto do ambiente, Marcus surgiu, carregando uma garrafa de água que estendeu para ele. Dante aguardou pacientemente até que o copo fosse devolvido e o encheu novamente, repetindo o gesto mais três vezes enquanto Cerberus bebia com a mesma urgência, cada gole parecendo um pequeno triunfo contra a fome e a sede acumuladas.
Após o quarto copo, Dante finalmente quebrou o silêncio.
— Está satisfeito?
Cerberus respirou fundo antes de murmurar, a voz quase inaudível, como se cada palavra custasse um esforço imenso.
— Obrigado… — Ele fez uma pausa, engolindo seco. — Não como… faz dias.
Dante arqueou uma sobrancelha, o tom prático e direto contrastando com a gravidade da situação.
— Bom saber. Degol, pode pegar o prato do dia, por favor.
Sem questionar, Degol saiu em direção à cozinha improvisada, deixando os outros para trás. Cerberus olhou ao redor, seus olhos vasculhando a penumbra do local. O ambiente estava abafado, com sombras que pareciam engolir cada canto. Mas então, quando a porta foi aberta, uma luz diferente invadiu o espaço, fazendo Cerberus erguer a mão instintivamente para proteger os olhos.
— O que é aquilo? — Ele perguntou, a voz carregada de curiosidade e desconforto.
Dante seguiu o olhar do homem até a fonte da luminosidade.
— Aquilo é eletricidade — respondeu, o tom carregado de um leve sarcasmo. — Deve conhecer bem esse termo, já que você protegia uma hidrelétrica bem antiga.
Cerberus desviou os olhos, visivelmente desconcertado, mas Dante continuou, aproveitando a brecha para pressionar.
— E fico me perguntando, por que você gosta tanto de dificultar as coisas? — Ele observou a expressão confusa de Cerberus, uma mistura de dúvida e culpa. — Essa cidade nunca teve nada e poderia ser tanta coisa. Aquele lugar que você queria tanto entrar te prometia mundos, mas nunca te deu nada. Então por que não tentar fazer algo pelas pessoas aqui fora em vez das de lá?
Cerberus abriu a boca, mas sua voz falhou. Seus lábios tremiam como se palavras não fossem suficientes para responder à acusação. Após alguns instantes, ele finalmente murmurou, quase para si mesmo:
— Dez anos… não são nada comparados com a vida inteira.
Dante inclinou a cabeça levemente, absorvendo as palavras. O peso do que Cerberus havia carregado durante tanto tempo parecia finalmente emergir, ainda que em fragmentos. Ele tinha derrotado um homem que nunca tinha perdido, e viu o sonho sendo destruído de duas maneiras diferentes.
— Sabe por que temos eletricidade, Cerberus? — A voz de Dante era baixa, mas carregada de intensidade, como se cada palavra fosse cuidadosamente medida para atingir o homem sentado à sua frente.
Cerberus levantou os olhos, seu rosto marcado pela exaustão e descrença.
— Não.
Antes que qualquer explicação fosse dada, a porta rangeu ao se abrir novamente. A luz invadiu o espaço escuro e mal-acabado, iluminando os cantos do prédio em reforma. As sombras dançaram nas paredes, trazendo uma clareza desconfortável ao ambiente.
— Aquele reservatório de água, conhece? — Dante perguntou, sem esperar uma resposta. Ele gesticulou com a cabeça na direção de Marcus, que permanecia imóvel, quase como uma estátua de vigilância. — Esse aqui do meu lado é o Marcus. Não é de muitos amigos, detesta mais coisas do que gosta. E sabe o que ele detesta mais? — Dante fez uma pausa, os olhos fixos em Cerberus. — Aquele povo que você queria tanto fazer parte.
Cerberus lançou um olhar desconfiado para Marcus, que permaneceu em silêncio, e depois voltou para Dante, os olhos apertados em ceticismo.
— Não acredito.
Dante soltou uma risada curta, seca, antes de responder.
— Está no seu direito de duvidar. — A voz carregava frieza. — Mas nós fizemos. Limpamos aquele reservatório sozinhos. Montamos uma bateria, puxamos fios, organizamos o pessoal. Temos comida. Temos esperança. E tudo isso em menos de seis meses.
Ele se inclinou para frente, aproximando-se de Cerberus, os olhos fixando-se nos dele como se quisesse perfurar qualquer defesa que ainda estivesse erguida.
— Me diga, Cerberus, em seis meses, o que você fez? O que eles fizeram por você? Nada. Absolutamente nada.
As palavras pairaram no ar, afiadas e inescapáveis. Cerberus desviou o olhar, mas Dante continuou, sem deixar espaço para respostas ou desculpas.
— A mulher que está lá dentro, cuidando de pessoas que nem conhece direito, acabou de me dizer que uma das moças está prestes a ter um bebê. E sabe o que mais? Mesmo no meio dessa tempestade, mesmo com tudo que enfrentamos, as pessoas estão animadas. Porque elas têm algo que você não tem.
Cerberus olhou de relance para Dante, mas evitou sustentar o olhar.
— Esperança. — A palavra de Dante veio como um golpe final, cada sílaba carregada de uma gravidade quase palpável. — Você realmente acredita que, quando sair daqui, vai ser bem recebido por alguém? Por algo? Lá fora?
— Não tenho um lugar para ir. Mesmo que eu voltasse… mesmo que… — A voz de Cerberus vacilava, entrecortada por hesitação e resignação, como se as palavras pesassem mais do que ele conseguia suportar.
Antes que pudesse terminar, Degol entrou no cômodo, carregando um prato simples, mas bem servido. O aroma quente se espalhou pelo ambiente frio e úmido, uma lembrança distante de conforto. Ele estendeu o prato para Cerberus, mas não o soltou imediatamente.
— As pessoas que prepararam essa refeição estão lá dentro — disse Degol, a voz firme. Ele avançou um passo, segurando o braço de Cerberus com uma força calculada. — Elas são minha gente também. Então, quando estiver comendo essa maldita refeição, pense bem no que vai escolher. Porque eu não sou piedoso, nem tenho pena de quem fode com o meu pessoal.
Dante soltou uma risada curta, quebrando um pouco da tensão, mas antes que a situação escalasse, Meliah interveio, puxando o irmão para trás.
— Está bem, Degol. Ele entendeu.
Cerberus permaneceu com o prato nas mãos, os dedos tensos ao redor da borda. Ele olhou para o chão, como se as palavras de Degol tivessem deixado um peso adicional sobre seus ombros já cansados. Com um movimento lento, ele se sentou, recostando-se contra uma pilastra. A postura era a de um animal acuado, alguém que carregava cicatrizes invisíveis tão profundas quanto qualquer ferida física.
Dante observava em silêncio, um misto de pena e pragmatismo passando por sua mente. Ele sabia que Cerberus havia suportado anos de sofrimento, moldado pelo medo e pela sobrevivência. Ainda assim, sua habilidade era algo que GreamHachi deveria ter visto antes, mas que por sorte, não levaram a sério por ele ser um Impuro, mas era algo que poderia fazer a diferença para todos ali.
Mas a dúvida permanecia: as pessoas daquela cidade aceitariam Cerberus? Ou viriam atrás dele, movidas por ódio e desejo de retaliação? Dante não tinha respostas. Tudo que sabia era que precisava manter o homem ali, pelo menos até o inverno cruel lá fora dar sinais de trégua.
Cinco minutos se passaram em um silêncio tenso, quebrado apenas pela respiração irregular de Cerberus. Dante finalmente se levantou, esfregando as mãos para afastar o frio.
— Marcus, sei que vai ser complicado, mas pode ficar de olho nele sem apontar uma arma na cabeça?
Marcus, que até então permanecera imóvel, puxou a carabina ISE para a frente. O som do destravamento, um clique seco, ecoou pela sala.
— Claro, velho. Só não prometo nada se ele tentar correr.
Dante soltou um sorriso leve, quase irônico, antes de dar um passo em direção à porta.
— Vou ver se Clara tem algum lugar para ele dormir.
Ele saiu, deixando Cerberus com o prato nas mãos.
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