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    Dante entrou no abrigo e seguiu até onde a cozinha estava sendo preparada. Novas paredes foram erguidas e uma chaminé ligava as fornalhas para o lado de fora. Dante sabia que Clerk trabalhava bem, mas que não podia se esforçar tanto. O homem seria pai em alguns dias, sua esposa daria luz a uma criança ali mesmo.

    Uma ala seria preparada para isso, foi o que Clara queria. E quando pensava que mais pessoas além de Clerk teriam uma vida ali, mais a situação de manter não só Cerberus, como Arsena, Magrot e Duna ali pesavam.

    Ter deixado Juno para ajudar eles foi uma decisão difícil. Jix foi com ela, era mais tranquilo ter um velho rabugento ao lado do que ninguém para tomar conta. Mas, o peso da decisão também caía em cima de Marcus que tinha que tomar conta de Degol e Meliah Jones.

    Os dois não eram mais teimosos e orgulhosos, ouvindo Clara e Marcus sem muita dificuldade de aceitar certas decisões. O problema era o avanço dos prédios sendo uma grande responsabilidade, o que tornava Meliah e Degol mais ativo em decisões onde normalmente deveriam ter somente Clara.

    Dante tinha esses problemas consigo, mas também tinha GreamHachi agora.

    Ao abaixar a cabeça, sentiu o peso de cada decisão que podia tomar e as que já tinha sido feitas em seus ombros. Segurou um pouco a borda e reclinou, respirando fundo. Não era para eu ser protagonista, não é, mãe?

    — Está tudo bem?

    Ele concordou com a cabeça levemente, mas não ergueu. A voz de Clara alimentava o desejo de permanecer apenas mais um pouco em silêncio. Ouvir ela o chamando era melhor do que até mesmo o som da cozinheira dizendo que o prato do dia estava pronto.

    Dante sorriu para si. Nenhum som atualmente lhe dava mais conforto do que Clara.

    — Está pensando no quê, então?

    — Muitas coisas. Tem gente demais para cuidarmos, e problemas demais para ser cuidado.

    Clara ficou de costas e pulou, sentando na bancada nova.

    — Verdade, tem muita coisa acontecendo. A gente queria melhorar o prédio onde seu novo amigo está. Deixar mais iluminado. Acharam muitos colchões também. — Clara parou por um segundo e riu. — Mas, os seus problemas são bem diferentes dos meus. Eu não queria discutir sobre, mas mexer com a GreamHachi agora não foi das melhores ideias.

    — Era a única forma que eu tinha de preservar o Reservatório — explicou Dante. — A limpeza da água é feita a partir de eletricidade. Vick e Veronica falaram que deve ter, pelo menos, cinco meses de água potável, mas se GreamHachi está passando por necessidade, eles vão querer tudo pra eles.

    — Por isso foi direto pra hidrelétrica. Sabia que aconteceria esse problema, quer antecipar um problema antes mesmo dele acontecer. — Clara tocou seu ombro, fazendo um gesto carinhoso. — Não quero te deixar sobrecarregado, sabe muito bem disso.

    — Eu costumo fazer desse jeito para ninguém passar por nenhuma dificuldade.

    — As dificuldades aparecem todos os dias, mesmo que você não veja diretamente, Dante. No seu caso, você está lidando com algo muito acima do que os outros podem ter, mas se for olhar os pequenos empecilhos, tudo está diretamente ligado a onde moramos. Clerk tem ansiedade por causa do filho, e a esposa precisa de um remédio que não temos mais. Meliah e Degol estão lidando com Antton até hoje porque desfizeram um acordo. Os ajudantes de cozinha não tem mais utensílios pra cortar legumes ou a carne que está estocando. O inverno está ajudando com a própria carne, mas precisamos de um refrigerador para estocar o que temos.

    Muitos problemas, de todos os tamanhos. Dante fechou os olhos, respirando fundo novamente. A mão de Clara ainda repousava em seu ombro, mexendo de um lado para o outro, e quando tocou seus cabelos, ele perdeu a tensão nos músculos inteiros.

    — Consegue ver que está tenso demais com tudo o que está ocorrendo? Precisa relaxar um pouco também e lidar com uma coisa de cada vez, entendeu? É assim que sempre fizemos.

    — Posso resolver mais de um, mas preciso saber também dos que não conheço. As pessoas estão protegidas, bem cuidadas, alimentadas. — Dante fez uma pausa, lembrando da sua casa. — É assim que deveria ser sempre. O problema que eles precisam passar são menores do que os que eu preciso, por isso estou aqui.

    Clara deu uma risada abafada, sem debochar dele.

    — Acha que está aqui para que essas pessoas tenham um bom lugar para viver?

    — Gosto de acreditar que posso fazer mais do que os outros por ter passado por tudo. — Dante queria levantar a cabeça, estava um pouco certo de que encarar o rosto de uma mulher como Clara poderia deixar sua mente mais aberta a outras perspectivas. — Se eu não puder fazer, então não tem motivo de eu estar aqui.

    — Que besteira.

    Dante travou na resposta, e então ergueu a cabeça. Mesmo os traços envelhecidos de Clara lhe dava um aspecto de graça. Ela poderia ser mais velha, e radiava mais do que qualquer outra mulher que Dante já tinha visto em vida.

    Se fosse levar em consideração que Dante nunca tinha se relacionado com ninguém a pedido dos seus pais por conta do treinamento, também achava ter sido uma injustiça na época por conta de uma das garotas do vilarejo que sempre tentava se aproximar dele.

    Nem mesmo ela chegava aos pés do sorriso de Clara Silver.

    — O que foi? — perguntou Clara, sorrindo. — É tão difícil ouvir de alguém que o que fala de vez em quando é besteira?

    — Não. Não é difícil, só achei engraçado.

    Arrumou a postura e sentou-se no balcão. Clara chegou mais perto e os dois ficaram de ombros encostados.

    — Eu sempre penso que as coisas podem piorar de uma hora pra outra, sabia? — Clara apontou para frente, na direção de uma parede. — Ali já foi o lugar onde eu ficava dormindo, chorando enquanto a chuva caía pelo buraco no teto. Me molhava sempre, e eu sempre tive medo dos Felroz entrando e destruindo tudo. Tive medo de virar comida pra eles, de perder minha vida pela fome, de não ter mais esperança. Dante, a vida inteira eu tive medo do que poderia acontecer comigo quando nada estava ao meu alcance. Só que hoje, exatamente hoje, tenho alguém que faz muito mais do que deveria simplesmente porque acha que a vida aqui é precária demais comparado de onde veio.

    — É o mínimo que posso fazer. Tenho uma dívida com todos vocês.

    — Dívida? — a perguntou soou bem debochada. — Se houvesse um pagamento para cada pessoa que salvou, para cada ajuda que fez esse lugar ficar erguido, de pé e bem protegido, nós todos estaríamos em dívida. Não você.

    Dante deu uma risada amarga e negou.

    — Ainda tem muito a ser feito.

    — E o que você quer fazer, então?

    — Sendo bem sincero, tenho muitos pensamentos intrusivos na minha cabeça. — Ele encarou a parede que Clara havia apontado antes. — Eu destruí a barreira de GreamHachi, lutei contra aqueles caras e agora tenho um cara que se acha Puro lá dentro. Eu queria entender melhor porquê as pessoas agem dessa maneira idiota sendo que ninguém tem nada. As cidades inteiras passam fome e não querem se ajudar porque acreditam nessa…

    —… merda de título — completou Clara concordando com tudo. — Não ia ser complicado se todo mundo fosse como você, Dante. Querer ajudar para ser ajudado. Mas, hoje em dia, as pessoas não sabem o que acontece mesmo sendo um lugar relativamente perto.

    Dante concordou. A cidade inteira de Kappz era uma zona destruída com polos importantes afastados, e o abrigo ficava bem no meio.

    — Eu já pensei em trazer o que podemos para mais perto — disse Clara ainda olhando a parede. — Mas, aquela garotinha que chorava em um canto ainda está aqui comigo, bem no meio do meu peito, pedindo que eu pare.

    — Por que… ela pede isso?

    — Porque no momento que tudo der errado — Clara o encarou, num sorriso triste —, ela vai falar ‘eu avisei’.

    Dante deu uma risada e negou com o dedo indicador.

    — Ela não pode falar isso, sabia? Porque no momento que essa garotinha disser uma palavrinha, o garoto que sempre perdeu vai gritar com ela assim ‘ei, cala a boca e levantar o rabo dai’.

    Clara deu uma risada que claramente desfez aquela tristeza que a cercava. Dante tinha que lembrar bem. A situação de Kappz tinha melhorado, mas não era nada além de um pequeno desafogo num oceano tempestuoso.

    Ver o sorriso dela era a certeza de que precisava continuar.

    — Você tem um bom coração, Dante. — Clara saltou da bancada, ficando de pé e esperou que ele fizesse o mesmo. — Precisa seguir o que ele diz de vez em quando, sabia? As pessoas se sentem seguras com você fazendo o que tem feito, então, pense neles também.

    Dante concordou e assistiu Clara dar as costas para descer. Ela ainda tinha outras dezenas de coisas para resolver. Pequenos problemas, mas que ainda eram enormes para as pessoas comuns.

    — Clara — chamou antes dela descer as escadas. O rosto dela se iluminou em curiosidade. — Quero sua permissão para bater em umas pessoas de GreamHachi.

    Ela deu uma risada e balançou a cabeça.

    — Só não traga o problema para dentro de casa, querido.

    Dante deu uma risada. Ela partiu, ouvindo sua voz contra Clerk no andar de baixo. Ela cuidava de muito mais do que Dante ali. Não seria justo trazer mais problemas, nem mesmo um menor.

    Ele fez o caminho de volta para o outro prédio, abrindo a porta e encarando Cerberus sentado de costas na pilastra. Marcus ainda esperava com sua carabina erguida, e assim que Dante se aproximou, ele relatou:

    — Comeu e bebeu. Parece melhor do que antes. Nada de movimentos bruscos.

    Dante encarou os irmãos Jones.

    — Podem ir. Sei que ficaram aqui o dia todo.

    Meliah concordou e Degol acenou, saindo sem dizer nada.

    A cadeira foi puxada, Dante sentou-se novamente, inclinando-se para Cerberus.

    — Então, rapaz, você já teve o que queria. Comeu e bebeu. Eu te trouxe aqui porque acredito que você tenha um valor muito maior do que aqueles idiotas lá fora pensam, mas eu não estou com pique para decepcionar as pessoas que confiam em mim. É o seguinte, vai me responder com um sim ou um não.

    Dante ergueu a mão, a colocando de palma pra cima.

    — Meu plano é fazer essa cidade prosperar, essas pessoas viverem, e eu não quero deixar nenhuma delas inseguras. — A mão rapidamente segurou o colarinho de Cerberus e o puxou para perto. — Você vai querer ser parte disso ou vou ter que devolver para a rua? Escolha agora.

    Marcus respirou fundo.

    — Velho, essa pergunta não tem como ser respondida só com ‘sim’ ou ‘não’.

    Dante o encarou, e cruzou as sobrancelhas.

    — Merda, é mesmo. Bom, não precisa responder só com esses dois. Pode responder. E ai, vai querer fazer parte ou vai voltar correndo com o rabo entre as pernas pra quem quer te matar?

    No olhar de Cerberus, Dante via o questionamento.

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