Capítulo 140: Alta Cidade
A carroça atravessava os portões de Kappz com rangidos lentos, cada volta das rodas soando como um lamento. A cidade, envolta em uma neblina gélida, era uma ruína de seu antigo esplendor. As torres, uma vez símbolos de progresso, erguiam-se como ossos desgastados pelo tempo. Nos becos estreitos, o vento carregava o cheiro azedo de esgoto misturado ao carvão queimado, e os poucos transeuntes caminhavam com passos apressados, envoltos em mantos que mal os protegiam do frio.
Gerhman sentiu o impacto de cada solavanco da carroça, mas não reclamou. O desconforto era uma constante que ele aprendera a ignorar. Estava ali por um propósito, e o peso desse propósito era o que o mantinha alerta. Ele olhava ao redor, os olhos buscando algo, ou talvez alguém, que pudesse ser uma ameaça.
— Bem-vindo a Kappz. — Jonny disse, com uma risada seca que parecia mais um escárnio. — Se o inferno tivesse uma irmã mais nova, seria aqui.
Gerhman não respondeu. Uma das portas foi aberta por dentro e estava concentrado demais na paisagem ao redor, nos rostos pálidos e nas janelas fechadas, nos murmúrios abafados que pareciam desaparecer assim que ele passava.
Aqui está a cena reescrita no estilo inspirado por George R.R. Martin, com maior profundidade nos diálogos e nos detalhes sensoriais:
— Vou te dar uma dica. — Jonny quebrou o silêncio, a voz rouca soando como um aviso mais do que um conselho. — Saia antes dos catadores passarem. Se eu estiver certo, há um abrigo ao sul. Caminhe sempre na mesma rua. Nunca se desvie. Essa cidade é uma armadilha. Metros de concreto e aço, todos iguais. Vai se perder fácil.
Gerhman assentiu, o rosto fechado, mas a mente girando. Ele sabia que conselhos assim não eram dados à toa.
— Mais alguma coisa?
Jonny o observou por um momento, como se decidisse se valia a pena dizer algo mais. Por fim, balançou a cabeça.
— Boa sorte. Pessoas como você, que se arriscam, é que permitem que tipos como eu possam se aposentar. Então, acho que devo agradecer.
Gerhman soltou uma risada curta, um som que soou quase deslocado naquele lugar. Ele achou a frase divertida, talvez até irônica, mas Jonny não o acompanhou. Seu rosto permaneceu sério, os olhos analisando o ambiente como se buscassem algo que só ele podia ver.
— Sul, então. — Gerhman murmurou enquanto saltava para a rua, seus pés tocando o chão com firmeza.
Jonny permaneceu na porta da carroça, observando-o com uma expressão que misturava curiosidade e ceticismo. Quando Gerhman começou a se afastar, Jonny inclinou a cabeça, lançando um último olhar à estrutura em ruínas que os cercava.
— Boa viagem de volta.
Sem esperar resposta, Jonny puxou a porta da carroça, o som das dobradiças ecoando pela rua deserta. O silêncio que se seguiu foi opressor.
Gerhman não olhou para trás. Seus passos ressoavam contra o pavimento, um som solitário que se misturava ao vento frio que cortava as vielas. Ele ajustou o casaco e olhou para o sul, a rua estendendo-se diante dele como uma promessa vazia.
A porta da carroça fechou-se com um estalo, e Jonny desapareceu, trancado novamente em seu pequeno mundo móvel. Para Gerhman, restava apenas a escuridão crescente da cidade e o peso de cada decisão que o trouxera até ali.
I
O vento soprava como um uivo constante, açoitando a neve contra as estruturas metálicas e corroídas do prédio mais alto de Kappz. Dante estava de pé na borda, o casaco escuro tremulando como uma bandeira esquecida em meio à tormenta. Ao seu lado, Cerberus hesitava, a figura robusta parecendo pequena diante da vastidão que se estendia abaixo. A cidade inteira se espalhava sob eles, uma massa desordenada de concreto e aço quebrado, engolida por neve e sombras.
— Por que me trouxe até aqui hoje? — Cerberus perguntou, os braços cruzados como se quisesse se proteger do frio, ou talvez da própria vulnerabilidade de estar tão exposto.
— Queria que visse a cidade. — Dante respondeu sem desviar o olhar. Ele se sentou na beirada com a naturalidade de quem não temia o abismo, deixando as pernas penduradas no vazio. Quando notou a hesitação de Cerberus, bateu a mão no concreto ao seu lado. — Não vou te empurrar, se é o que está pensando. Até porque, com essa sua habilidade, você voaria antes de cair.
Cerberus resmungou algo inaudível, mas se aproximou. Ele se sentou ao lado de Dante, o olhar ainda cauteloso enquanto seus olhos percorriam o horizonte. Dali, podia ver tudo: os escombros do Centro de Pesquisa, a Ala Hospitalar, as ruas que serpenteavam como veias mortas até desaparecerem na neblina.
— Daqui dá pra ver tudo o que Jix e eu imaginávamos. — Dante apontou para o sul, os olhos semicerrados contra o vento. — Mas é uma visão vulnerável. Um único erro, e tudo desmorona.
Ele começou a indicar os pontos importantes, o tom de sua voz frio e pragmático.
— O Centro de Pesquisa ainda guarda recursos importantes, mas está inacessível sem energia. Precisamos de uma rede mais estável. A Ala Hospitalar está cheia de Felroz, mas Veronica acredita que há uma farmácia intacta lá dentro. E, lá atrás, no fundo… Sharm.
Dante fez uma pausa, os olhos fixos em algum ponto distante. Cerberus esperou, mas o silêncio se prolongou, pesado como a neve que se acumulava ao redor.
— Por que está me mostrando tudo isso? — Cerberus quebrou o silêncio, a voz carregada de desconfiança.
— Para que você saiba o que não defendeu todos esses anos.
As palavras de Dante cortaram como uma lâmina fina, precisas e cruéis. Cerberus estreitou os olhos, esperando por mais, mas Dante não disse nada. Ele continuou observando a cidade, o rosto inexpressivo, como se cada ruína carregasse um peso que só ele compreendia.
Cerberus olhou ao redor novamente. Tudo o que via era destruição, morte e histórias enterradas sob a neve.
— Não vejo nada disso. — Ele finalmente respondeu.
Dante soltou uma risada baixa, mas sem humor.
— Sei que não. Por isso passou nove anos defendendo uma hidrelétrica, achando que um dia seria aceito aqui. — Ele virou-se para encará-lo, o olhar direto e sem raiva. — Mas tudo o que conseguiu foi perder tempo. Tempo que poderia ter usado para reconstruir algo importante.
Cerberus o fitou em silêncio, mas não havia como negar a verdade amarga nas palavras de Dante.
— Eu te perguntei se queria fazer parte do que estou planejando. Não é para mim. É para os que virão depois. Para pessoas como você… e para pessoas como Clerk.
— Clerk?
— Não percebeu que ele vai ter um filho? — Dante acendeu um charuto com um estalar de dedos, a chama pequena tremulando contra o vento. Ele deu uma longa tragada antes de continuar. — Onde essa criança vai viver? No meio disso? — Ele apontou para a cidade. — Que futuro vai ter?
Antes que Cerberus pudesse responder, um som de gritos subiu das ruas abaixo. Ambos olharam para baixo, onde um Felroz se chocava contra um caminhão abandonado, esmagando-o com uma força grotesca. O monstro ergueu a cabeça, farejando o ar, como se buscasse algo invisível.
— As pessoas daqui queriam o mesmo que você. — Dante murmurou, a voz carregada de um peso quase palpável. — Marcus perdeu tudo para GreamHachi, mas quando soube que você os estava protegendo, ficou calado. Sabe o que isso significa?
— Que ele não tem coragem de me matar.
Dante soltou uma risada inesperada, genuína dessa vez.
— Você realmente pensa dentro de uma caixinha. Se Marcus ouvisse isso, colocaria uma bala na sua cabeça antes que terminasse a frase.
Cerberus ignorou o comentário, mas não pôde evitar a sensação de que Dante tinha razão. Enquanto o vento uivava ao redor deles, ele começou a observar a cidade tentando, mesmo que pouco, de encontrar certa construção.
Cerberus tinha medo. Mais do que o frio que o vento trazia, mais do que a fome que corroía seus ossos. Era um medo que se escondia nas sombras de sua mente, sussurrando lembranças dos Campos Minados de Rapier. Aquelas planícies traiçoeiras onde a morte era certa, onde o chão poderia devorá-lo a qualquer passo. Ele fechou os olhos, sentindo o peso daquela cidade grotesca ao seu redor. Nove anos para nada. Foi isso que ofereceu a si mesmo.
Então a voz ecoou em sua mente, fria e precisa, como um punhal cravado em um mapa.
“Rastros de movimento em uma área remota” – Vick, a entidade que Cerberus ainda não compreendia, anunciou com sua tonalidade metálica. “Nenhuma movimentação de retorno de Juno e Jix. Sem identificação.”
Cerberus franziu o cenho, a testa marcada por rugas de confusão. Aquela voz, aquela coisa, era uma presença constante em sua mente. Não humana, não viva, mas sempre ali.
— O que isso significa? — Ele perguntou, a voz saindo mais áspera do que pretendia.
— Significa que tem gente nova na cidade. — Dante respondeu, o olhar fixo em algum ponto distante. Ele se levantou, o charuto entre os dentes, e falou com a naturalidade de quem já sabia o que vinha a seguir. — Vick, consegue identificar rastro de Energia Cósmica?
“Positivo. Energia Cósmica identificada em numeração alta. Rastro da entidade GreamHachi, conhecido como Aquário Feudal. Encontrou com ele antes, Dante.”
As palavras de Vick caíram como pedras. O nome que ela mencionou trouxe um frio diferente ao corpo de Cerberus, algo que nem a neve podia causar.
— GreamHachi? — Ele murmurou, quase para si mesmo, mas o nome soou alto o suficiente para alcançar Dante. Ele se virou para encará-lo, o olhar firme como uma lâmina polida.
— O que vai fazer? — Cerberus perguntou, embora já soubesse a resposta.
Dante colocou o charuto de volta à boca, o brilho vermelho da brasa iluminando por um instante o canto de seu rosto. Ele deu uma tragada longa antes de soltar a fumaça em um sopro lento, como se ponderasse a pergunta.
— O que acha que vamos fazer? — Ele finalmente respondeu, a voz calma, mas com uma ferocidade latente. — Esses caras vieram até aqui.
Havia algo naquelas palavras, uma determinação que fazia até o vento parecer menos cruel. Dante não esperava outra opção. Para ele, a chegada de GreamHachi não era um acaso, mas um chamado. E naquele momento, Cerberus percebeu que, quer quisesse ou não, estava preso ao mesmo destino.
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