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    A neve castigava Gerhman sem piedade, o vento uivando como um coro de almas perdidas. Ele mantinha a mão erguida perto dos olhos, tentando proteger o rosto das rajadas que pareciam cortar como lâminas de gelo. Do lado de fora da cidade, a tempestade era uma fera indomável, muito pior do que ele havia imaginado. Pior ainda, ele não tinha certeza de para onde estava indo.

    Jonny dissera para seguir na direção sul. Uma instrução simples, mas em meio à vastidão branca, o sul era uma promessa vaga. Dois dias inteiros de caminhada já haviam passado. Duas noites que ele passou encolhido no canto de uma loja destruída, cercado por paredes que mal seguravam o frio e a escuridão.

    Naquelas noites, os sons lá fora o mantinham acordado. Rosnados e uivos, ecoando como se as criaturas competissem pela supremacia em uma guerra interminável. Ele apertava os olhos, tentando afastar os pensamentos de dentes afiados e garras rasgando sua carne. Era como lutar contra sua própria mente. O sono vinha em fragmentos curtos e inquietos, e agora, naquela manhã, o cansaço pesava em seus ossos como uma corrente invisível.

    Ele pegou o cantil e deu um gole. A água, quase congelada, era uma miséria de conforto. O recipiente estava praticamente vazio, e ao seu redor, apenas neve e poças geladas ofereciam qualquer esperança de reposição.

    Gerhman continuou andando, seus passos afundando na neve pesada. Três horas se passaram antes que ele encontrasse algo que interrompesse a monotonia do branco. Um estreito entre ruas surgia à sua frente, com uma inclinação que levava a um nível superior. A rua fazia uma curva para a direita, desaparecendo no manto da tempestade.

    O relógio interno de Gerhman dizia que era meio-dia, mas o céu parecia um crepúsculo eterno. Ele parou, olhando para o caminho à frente, sentindo o frio entrar por cada fenda de suas roupas.

    — Merda. Que ideia idiota a minha de vir até aqui.

    Ele deu um passo adiante, mas o som o fez parar. Algo atrás dele. Ele girou rapidamente, a mão instintivamente alcançando a arma que não tinha. Seus olhos vasculharam a rua, mas era apenas a neve que havia caído de um carro, criando um som metálico que ecoava na desolação.

    Mas o eco trouxe outra coisa. Um ruído baixo, gutural, que crescia como um trovão distante.

    Os Felroz.

    Gerhman sentiu o estômago se contrair. Ele olhou ao redor, procurando desesperadamente um lugar para se esconder. Sua atenção foi capturada por uma entrada de metrô à esquerda. As portas estavam destroçadas, o metal retorcido em formas grotescas, como bocas abertas prontas para engolir qualquer coisa que se aproximasse.

    Ele hesitou. A lembrança das palavras de Leonardo ecoou em sua mente como um aviso.

    “Evite túneis, Gerhman. Evite os metrôs. Nunca vá para debaixo da terra. É onde os Felroz fazem seus ninhos.”

    Ele sabia disso desde criança. O subsolo era um convite para a morte, um labirinto onde as criaturas prosperavam, se multiplicavam, e caçavam. Mas o som dos Felroz estava ficando mais próximo.

    — Droga. — Ele murmurou para si mesmo, os olhos fixos na entrada do metrô.

    Era uma escolha entre o conhecido e o desconhecido, entre a morte que podia ver e a morte que esperava no escuro.

    Com um último olhar para trás, ele apertou os dentes e deu um passo em direção ao abismo.

    A tempestade parecia sussurrar ameaças enquanto Gerhman permanecia de pé, envolto em neve e cansaço. Sua respiração pesada era engolida pelo uivo do vento, mas então, algo cortou o som incessante.

    — Não sei por que veio para cá, mas ir naquela direção vai ser a sua morte, rapaz.

    A voz, grave e carregada de autoridade, fez Gerhman virar-se rapidamente. Seus olhos se arregalaram ao encontrar Dante e Cerberus flutuando no ar, lado a lado. Por um instante, ele pensou que sua mente exausta estivesse pregando peças. Mas não, ali estavam eles, como duas figuras saídas de uma lenda sombria.

    Mesmo tendo ouvido rumores de que Dante havia tirado Cerberus de GreamHachi para recrutá-lo, ver o homem que outrora era uma fortaleza intransponível ao lado daquele que havia destruído o escudo do Aquário Feudal era surreal.

    Mais desconcertante ainda era a aura que emanava de ambos. Não era algo visível, mas sim sentido, como uma pressão esmagadora que parecia pesar sobre seus ombros, tornando cada respiração mais difícil. Como eles estão voando?

    — Meu intuito era apenas te encontrar — disse Gerhman, a voz carregada de desgosto. — Gostaria que me ajudasse, por favor.

    Cerberus inclinou a cabeça levemente, sua máscara de expressão fria e aterrorizante refletindo a tempestade ao redor.

    — Ajuda? — ele repetiu, o tom carregado de incredulidade. — Por que pediu ajuda a ele? Por que saiu de sua casa?

    Gerhman recuou alguns passos, afastando-se da borda e indo para o centro da rua coberta de neve. A tempestade parecia intensificar-se ao seu redor, como se a natureza refletisse sua própria inquietação.

    — Por favor — insistiu ele, sua voz carregada de urgência. — O senhor Leonardo foi preso. Acusado de conspirar contra a cidade. Ele será decapitado.

    Cerberus desviou o olhar para Dante, mas o velho permaneceu imóvel, com os olhos fixos em Gerhman, como se tentasse ler sua alma.

    — Dante… — Cerberus começou, hesitante. — Leonardo foi o homem que me prometeu entrada na cidade. Ele fez um trato comigo, apertou minha mão. Ele queria me apadrinhar anos atrás, mas não pôde.

    Gerhman piscou, surpreso. Aquela era uma informação nova para ele. Ele sabia de Cerberus, mas não desse vínculo com Leonardo.

    — Leonardo Vulkaris é um homem honrado — declarou Gerhman, sua voz mais alta para superar o rugido do vento. — Sei que ele lutou contra você, mas não posso deixá-lo morrer. Pelas leis do Aquário, Leonardo tem o direito de lutar por sua vida e liberdade fora dos muros, mas por ser acusado de conspirar contra a cúpula, foi considerado indigno.

    Gerhman ajoelhou-se na neve, sua postura firme apesar do frio que mordia sua pele.

    — Por isso, Dante — ele continuou, a voz firme e carregada de emoção —, como o homem que foi discípulo de Leonardo e da cúpula, peço sua ajuda. Leonardo Vulkaris é o homem mais honrado que conheço. Por favor, conceda não só a mim, mas a ele, uma chance.

    Houve um silêncio que pareceu durar uma eternidade, até que Dante suspirou e respondeu com uma palavra:

    — Aceito.

    Gerhman levantou a cabeça, incrédulo.

    — Você… aceita?

    Dante deu de ombros, como se a decisão fosse óbvia.

    — Claro. Esse tal de Leonardo foi quem me mandou pegar Cerberus e sair da cidade. Se eu tivesse ficado, ele não estaria preso hoje. Estaria morto. Ele e seu colega, Raver.

    As palavras de Dante deixaram Gerhman perplexo. Leonardo Vulkaris, o maior espadachim que o Aquário Feudal já teve, morto tão facilmente?

    Dante apontou para Gerhman com um dedo firme.

    — Você é o cara do decreto, não é? Aquele cubo que selou a voz foi obra sua.

    — Foi… — Gerhman hesitou, mas assentiu lentamente. — Leonardo pediu que…

    — Não precisa se justificar — interrompeu Dante, com um sorriso de canto. — Estou ciente do porquê ele fez aquilo tudo.

    Dante e Cerberus desceram lentamente até tocar o chão. A neve sibilava ao redor de seus pés, mas eles caminhavam como se a tempestade fosse apenas um incômodo. Dante estendeu a mão para Gerhman, um sorriso despreocupado no rosto.

    — Sou Dante, Recruta da Capital. Você deve estar com frio e fome.

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