Capítulo 142: Conversa entre Discípulos
Dante segurou a mão de Gerhman com força e, num único movimento, o arrancou do chão, elevando-o aos céus com a mesma facilidade com que um homem ergueria uma criança. O vento rugiu ao redor deles, chicoteando a neve em redemoinhos furiosos, e Gerhman soltou um grito, um som instintivo de medo e surpresa. Não era natural para ele estar tão alto, tão rápido. Quando se atreveu a olhar para trás, viu Cerberus seguindo de perto, a figura mascarada cortando o ar como uma sombra veloz, sem perder o ritmo.
A tempestade parecia impotente diante dos dois. O vento que fustigava Gerhman como uma fera enfurecida não parecia sequer incomodá-los. Enquanto era arrastado por Dante, ele tentou calcular quanto tempo levaria para alcançar o destino. Pela velocidade em que se moviam, provavelmente mais rápido do que ele jamais poderia imaginar, mas ainda assim… não devia ser um lugar grandioso. A cidade deserta de Kappz não parecia capaz de abrigar algo mais do que escombros reorganizados em uma tentativa desesperada de criar refúgio. Talvez uma loja arruinada ou algum buraco esquecido, apenas o suficiente para manter os Felroz afastados.
— Estamos quase lá — Dante anunciou, a voz firme cortando o som do vento.
Gerhman viu o velho mergulhar em direção a um prédio destroçado, desviando de sua estrutura enfraquecida, antes de voltar a subir. Quando olhou para trás, viu Cerberus. A figura sombria atravessava o prédio, sua forma acinzentada passando pelo concreto sem deixá-lo tocar ou ser tocado. Não era natural, e a visão trouxe um calafrio que não tinha relação com o frio cortante ao redor.
A velocidade diminuiu abruptamente, e Gerhman sentiu a força do impacto. Seu corpo foi jogado para frente, mas a mão de Dante o segurou firme, puxando-o de volta antes que pudesse cair. Sua cabeça girava, a pressão do ar sumindo tão rápido quanto chegara, deixando-o zonzo e tonto.
— Velho… — Gerhman conseguiu ouvir, ainda tentando recuperar os sentidos. — Quem é esse aí?
— Um amigo que veio almoçar com a gente — respondeu Dante, a risada ecoando como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. — Pode ajudar com isso, Marcus?
Gerhman ergueu os olhos e viu o homem chamado Marcus. Um vulto branco destacava-se no meio da neve, como se a própria tempestade tivesse tomado forma humana. Suas vestes eram impecáveis, camuflando-o quase completamente na paisagem gelada, mas a arma que carregava, uma carabina antiga e desgastada, destoava do resto. Apesar de sua aparência simples, Gerhman sentiu algo.
Era uma sombra, algo escuro e inquietante, que pairava sobre Marcus. Era como um olho invisível, sempre observando, sempre vigilante. Gerhman não sabia se aquilo era uma impressão ou algo mais, mas sua garganta secou, e ele engoliu em seco.
— E ele veio de onde? — Marcus perguntou, sem desviar os olhos. — Está tendo muitos visitantes ultimamente.
— Esse aqui? — Dante ergueu Gerhman como se fosse um saco vazio, com um sorriso despreocupado. — Creio que de lugar nenhum, pra ser exato.
Cerberus pousou no prédio, distante de Marcus, mas permaneceu em silêncio, sua máscara voltada para o atirador.
— Lugar nenhum, hein? — Marcus abaixou a arma lentamente, mas o tom de sua voz permaneceu tenso. — Belo lugar para se chamar de nome. Espero que não seja outra surpresa do Aquário Feudal. O cara de máscara já é o meu limite atual.
Gerhman engoliu em seco, mas antes que pudesse responder, Dante deu um leve tapinha em seu ombro, quase fazendo-o perder o equilíbrio novamente.
— Relaxa, Marcus. Esse aqui não é do tipo que dá trabalho. Só precisa de um prato de comida e um pouco de calor — disse Dante com um sorriso despreocupado, embora sua voz carregasse uma firmeza que sugeria que a conversa não deveria ir muito além disso.
Cerberus, que permanecia em silêncio desde que pousara, deu um passo à frente. Sua presença era tão imponente quanto a de Marcus, mas havia algo diferente nele. Ele não precisou falar; apenas o olhar que lançou para o atirador foi suficiente para dissipar parte da tensão.
— Você confia nele? — perguntou Marcus, desta vez dirigindo-se a Cerberus.
O homem mascarado inclinou a cabeça levemente, como se considerasse a pergunta por um momento.
— Confiança é uma palavra forte — respondeu Cerberus, sua voz rouca ecoando na neve. — Mas ele tem algo que muitos aqui não têm: coragem para pedir ajuda.
Marcus bufou, mas abaixou a carabina lentamente.
— Coragem, é? Vamos ver quanto disso ele tem quando a próxima tempestade aparecer rasgando tudo.
Dante deu uma risada curta e virou-se para Gerhman, que ainda tentava se equilibrar na neve.
— Ignore o Marcus, ele é sempre assim com rostos novos. Agora, vamos entrar. Está na hora de almoçar, e aposto que você está faminto.
Gerhman hesitou, mas assentiu, seguindo Dante e os outros para dentro do que parecia ser um antigo depósito convertido em abrigo.
Ao entrar, o calor fraco de um aquecedor improvisado e o cheiro de comida precária o receberam. Era um espaço pequeno e rudimentar, mas, comparado à tempestade lá fora, parecia um pedaço de paraíso.
— Aqui, sente-se — disse Dante, indicando um lugar perto de uma mesa improvisada. — Espero que goste de sopa. Não é a melhor coisa do mundo, mas vai te manter vivo.
Gerhman se sentou devagar, o peso dos olhares de Marcus e Cerberus ainda pesando sobre seus ombros como se fossem lâminas prestes a cair. Mesmo assim, ele aceitou a tigela que lhe foi entregue por Dante e começou a comer. O cheiro era denso e rústico, o sabor ainda mais forte, quase brutal em sua simplicidade. Era carne, disso ele tinha certeza, mas não queria saber de onde vinha. A fome falava mais alto.
Ele devorou a comida com rapidez, o líquido quente descendo por sua garganta como um alívio temporário ao frio e ao cansaço que carregava. Quando ergueu os olhos, porém, percebeu que os dois homens ainda o encaravam, impassíveis.
— Parece faminto demais para quem veio de lugar nenhum, hein? — comentou Marcus, sua voz cortante como o vento do inverno. A carabina repousava em seu colo, mas seus dedos não estavam relaxados. Ele pegou a cumbuca que Dante lhe ofereceu e esperou o velho se acomodar antes de continuar. — Coragem para pedir ajuda.
Cerberus, por sua vez, levantou a máscara, revelando parte de seu rosto. Começou a comer de maneira descontraída, como se o ambiente carregado e os olhares pesados não o afetassem. Gerhman observava com cautela. A presença de Marcus e Dante já era esmagadora o suficiente; ver Cerberus se mover com tamanha naturalidade no meio daquela tensão parecia um mistério que ele não sabia se queria desvendar.
E então havia Leonardo.
A questão que queimava em sua mente escapou antes que ele pudesse pensar duas vezes.
— Como conheceu o senhor Vulkaris? — A pergunta saiu hesitante, mas firme, carregada de uma curiosidade que se erguia acima de seu medo. — Ele nunca mencionou que iria apadrinhar você. Como foi isso?
Cerberus levantou os olhos da tigela, fixando-os em Gerhman. Não havia raiva ali, tampouco irritação. O olhar era pesado, mas vazio de emoção, como uma porta fechada que ninguém tinha permissão para atravessar. Ele mastigou lentamente antes de responder, deixando o silêncio pesar entre eles como uma segunda camada de neve cobrindo a paisagem.
— Leonardo me encontrou muito antes de qualquer outro, quando eu ainda era pequeno, em um lugar longe e cruel demais do que essa cidade. Foi em Rapier.
A pequena cumbuca com a sopa quase caiu de sua mão. Gerhman teve que pegar rápido pelo susto.
— Rapier? Você nasceu na Cidade das Minas?
— Sim, nasci e cresci lá. Isso até Leonardo Vulkaris aparecer. — Cerberus deixou um sorriso escapar. — E onde eu comecei a querer ser igual a ele.
Gerhman olhou para Dante.
— Rapier é uma cidade mais longe do que GreamHachi é da gente. Quase duas semanas de distância.
— Parece ser longe. Bem longe.
Gerhman ainda calado. Um sobrevivente e fugitivo de Rapier. E aqueles dois, sobreviventes de dentro de Kappz. E estavam juntos.
E pensar que eu encontraria tal gente aqui.
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