Capítulo 143: O Preço da Liberdade
— Rapier já foi um centro de poder militar, uma potência, ou, pelo menos, assim era conhecida em outros tempos — começou Marcus, sua voz grave e firme, dirigindo-se a Dante. — Deveria ser uma cidade em melhores condições do que a nossa, mas sempre esteve à beira do colapso por causa da sua cadeia de comando. Quando eu era mais jovem, conheci um homem chamado Bit Bork. Um antigo general… exilado.
A menção do nome fez Gerhman erguer os olhos de imediato, sua curiosidade o empurrando para a conversa.
— Você conheceu Bit Bork?
— Conheci, faz muitos anos. — Marcus não demonstrou nenhuma hesitação ao falar do homem. — Ele me ensinou algumas coisas, mas deixou claro que queria distância de tudo que cheirasse a Rapier.
Dante soltou uma risada curta, quase desdenhosa.
— Então Rapier é um lugar ruim?
— Se fosse um lugar bom, Leonardo não teria que ir até lá — interveio Cerberus, seus olhos ainda fixos em Gerhman, como se estudasse cada movimento seu. — Rapier é um ninho de problemas. Sempre foi, sempre será.
Ele fez uma pausa, a neve sibilando ao seu redor enquanto sua voz continuava, mais sombria agora.
— Morei lá até os meus dez anos. Trabalhei em uma mina de carvão e cobre, um trabalho mais de escravo do que de trabalhador. A sobrevivência lá não era como aqui. Em Rapier, você tinha o que comer e beber, mas vivia enterrado em trabalho. A única coisa que podia desejar era o momento de deitar e dormir, se é que conseguia dormir de verdade.
Cerberus virou a cabeça ligeiramente, como se lembrasse de algo distante, um detalhe que ainda pesava em sua mente.
— A comida era pouca, mas havia um comércio improvisado com um vilarejo a oeste. Eles trocavam mão de obra e serviços por comida das fazendas. Mas quando perceberam que podiam tomar o vilarejo, mandaram soldados para pegar tudo. Rapier nunca agiu por necessidade, mas por poder. E quando podiam, eles tomavam.
Ele parou por um momento, e Gerhman percebeu um brilho distante em seus olhos, algo entre raiva e melancolia.
— Quando eu tinha nove anos, vi um dos maiores golpes que já fizeram. Na época, eu não entendia, mas depois de ouvir as histórias e observar o que diziam, percebi a extensão da destruição que eles traziam onde quer que marchassem.
A neve pareceu cessar por um instante, mas apenas para Gerhman.
— Havia um homem chamado Vinigo. Ele não era jovem, nem velho, mas cruel. Um dos chefes da mineração foi visto batendo em uma criança, e Vinigo o matou ali mesmo, sem hesitar. Sentenciou-o na frente de todos. Nenhum tenente ousava desafiá-lo. Ele era o mais forte entre os soldados, um homem de respeito.
Cerberus fechou a expressão, sua voz agora fria como o vento que cortava o grupo.
— Mas Rapier podia ter um bom homem… e ainda assim, ser um inferno.
Dante ponderava, os pensamentos um redemoinho enquanto olhava para as ruínas da cidade ao longe. Havia algo de fascinante e ao mesmo tempo deprimente na ideia de construir uma cidade, moldar um refúgio para a humanidade. Mas, na prática, o que parecia ser uma utopia era apenas um amontoado de problemas, e quase sempre os problemas vinham das próprias pessoas. Era tão difícil assim construir algo que funcionasse?
E se fosse realmente impossível, por que as pessoas simplesmente não tentavam a vida do lado de fora? A pergunta surgiu em sua mente como uma pedra atirada em águas calmas, o pegando desprevenido. Não, ele sabia a resposta. Ele mesmo sentia saudades de casa, daquilo que havia perdido. Deixar tudo para trás para começar algo novo era assustador.
Seus olhos recaíram sobre Cerberus, e por um breve momento ele o compreendeu. O apego à hidrelétrica, o desejo quase obsessivo de defendê-la. Não era apenas um capricho ou orgulho. Cerberus tinha mais medo de falhar do que de ser rejeitado.
— Me fale da promessa que esse Leonardo fez pra você — disse Dante, quebrando o silêncio, sua voz carregada de curiosidade. — Como aconteceu?
Cerberus ergueu os olhos, um brilho distante neles, mas não era heroísmo que refletia ali.
— Não foi nada heroico, se é isso que está pensando. — Ele pausou, os lábios se curvando em algo entre desdém e melancolia. — Foi só um encontro. Eu já tinha visto como as coisas funcionavam. Naquele dia, apanhei até quase desmaiar porque não carreguei o suficiente na escala. Quando Leonardo apareceu, Vinigo achou que seria apenas mais um homem com ideias de libertação. Mas a liberdade sempre tem um preço.
Marcus, que estava quieto até então, arqueou uma sobrancelha, a desconfiança evidente em seu olhar.
— Esse Leonardo que falam, ele está onde agora?
Dante soltou uma risada curta, batendo no ombro do atirador.
— Preso em GreamHachi.
O gesto de Marcus foi instantâneo, a mão descendo até o coldre, mas antes que ele pudesse fazer algo, Gerhman ergueu a própria mão, o gesto apressado, quase suplicante.
— Olha, eu não sei o que aconteceu — começou Gerhman, a voz tremendo levemente —, mas tenho certeza de que não fiz nada que pudesse prejudicar vocês. Vim pedir ajuda porque Leonardo precisa. Ele vai ser morto por ter ajudado seus dois amigos.
Marcus não respondeu de imediato. Ele apenas olhou para o velho, os olhos avaliando, julgando. Então, ele virou-se para Dante, sua voz baixa, mas carregada de desdém.
— Se tivesse me levado, não teria que ficar trazendo gente daquele lugar imundo para cá.
— Eu não sabia que você odiava GreamHachi – disse Gerhman abaixando a mão. — E eu entendo o motivo. Bem mais do que você pode imaginar. Eu soube da história do Cerberus depois que ele e o senhor Dante caíram lá.
— Bom, Cerberus não caiu — disse Dante, com uma risada abafada. — Foi jogado, na verdade.
Gerhman balançou os braços em um gesto irritado, descartando o comentário com impaciência.
— Não importa se foi jogado ou caiu. O que importa é que, da mesma forma que Cerberus entrou na cidade, Leonardo também conseguiu.
Marcus, que até então mantinha o olhar fixo em Dante, virou-se abruptamente para encarar Gerhman. Seu rosto era uma máscara de frieza, os olhos estreitados em descrença e desprezo. Dante, percebendo a tensão que se formava, manteve a mão no ombro do atirador, apertando levemente, como se tentasse conter uma fera prestes a atacar.
— Está me dizendo que um Impuro entrou na cidade e não foi morto? — A voz de Marcus era carregada de sarcasmo, mas havia uma nota de fúria mal contida. — Ah, essa é a melhor piada que já ouvi desde que Dante chegou em Kappz. E o que ele fez para ser aceito no amado Aquário Feudal, o lugar que mais mata e usa Impuros ao bel prazer? Ficou dez anos do lado de fora, como Cerberus? Ou foi usado até os ossos por todo mundo? Vai, me diz. O que ele fez de tão grandioso que garantiu um lugar em uma cidade que odeia gente como ele?
O ar pareceu ficar mais denso. Gerhman respirou fundo, o peito subindo e descendo devagar, como se controlasse a própria raiva. Dante notou o brilho de tensão no olhar de ambos e soube que as próximas palavras do velho seriam cruciais.
— Ele fez algo que só ele poderia. — Gerhman levantou o olhar, encarando Marcus sem vacilar, sua voz firme. — Matou toda a antiga Alta Cúpula da cidade. Cada membro corrupto, cada maníaco. Cortou as cabeças de todos eles e reconstruiu o conselho com aqueles que compartilhavam seus ideais.
O silêncio que se seguiu era ensurdecedor. Marcus não respondeu imediatamente, mas o músculo em sua mandíbula se contraiu, e seus dedos pairaram perigosamente perto do coldre.
— Isso foi antes mesmo de eu nascer — continuou Gerhman, a voz ganhando intensidade. — Por isso, quando ele apertou a mão de Cerberus e disse que faria, eu acreditei. Porque ele já fez antes.
Dante não disse nada, mas sua mão no ombro de Marcus permaneceu firme, uma âncora silenciosa para impedir que a tensão explodisse em violência.
Cerberus manteve os olhos fixos em Gerhman, a expressão impenetrável como uma máscara esculpida em pedra. Marcus, por outro lado, soltou um suspiro pesado e balançou a cabeça em negação.
— E ainda assim, continuam matando pessoas que não servem mais. — A voz do atirador era cortante, carregada de um rancor antigo. — Como fizeram com o meu pai.
Sem esperar resposta, Marcus se levantou, os passos ecoando no piso de concreto enquanto ele desaparecia pelas escadas, mergulhando nas sombras do prédio. Dante permaneceu no lugar, seus olhos acompanhando a figura do amigo até que ela sumisse. Então, virou-se para Gerhman, que parecia visivelmente incomodado, o peso das palavras de Marcus evidente em sua expressão.
— Ele perdeu o pai no portão da cidade — disse Dante, quebrando o silêncio.
Gerhman soltou um suspiro cansado, seus ombros curvando-se ligeiramente, como se carregasse um fardo invisível.
— Eu já esperava que fosse algo assim — respondeu, sua voz marcada por uma mistura de tristeza e resignação. — Leonardo e eu estávamos lutando contra o controle mental das pessoas do lado de fora. Tínhamos um plano, mas faltava uma testemunha. Agora, ele está preso, e eu estou aqui fora.
Cerberus, até então calado, colocou a tigela vazia ao seu lado, sua voz grave e direta cortando o ar frio.
— Agora, você é um Impuro. — Ele encarou Gerhman sem desviar os olhos. — Leonardo também foi um. O problema não está em quem escolheu ajudar, mas contra quem estamos lutando.
Gerhman bufou, sua expressão endurecendo.
— Raver? — Ele riu sem humor, um som seco e amargo. — Ele é só outra marionete. Quem manda lá dentro é outra pessoa, alguém que ninguém, nem mesmo Leonardo, quis enfrentar quando assumiu a Cúpula.
Dante sentiu a tensão crescer, sua curiosidade ardendo, mas foi Cerberus quem perguntou, sua voz baixa e cheia de desconfiança:
— E quem é esse?
Por um momento, Gerhman hesitou, como se pesar as consequências de dizer o nome em voz alta. Então, ele finalmente respondeu, sua voz mal passando de um sussurro:
— Maethe, a Maga.
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