Índice de Capítulo

    A lâmpada acima de suas cabeças balançava levemente, lançando sombras vacilantes pelas paredes descascadas do abrigo. Gerhman sentou-se diante de Dante e da mulher ao lado dele. Ela era uma figura impressionante, com cabelos tão brancos quanto a neve, que caíam como se fossem um véu gélido. Sua presença era ao mesmo tempo silenciosa e esmagadora, e ele não pôde evitar sentir-se acuado, como um animal encurralado.

    — Veio aqui pedir ajuda do meu braço esquerdo — disse Clara Silver, sua voz tão calma quanto fria. — E quer levá-lo diretamente para o lugar que odiamos.

    Gerhman respirou fundo, o peso das palavras dela o atingindo como uma pedra.

    — Desculpe.

    — Pelo quê?

    — Descobri que você e Marcus foram vítimas da cidade onde nasci.

    Clara inclinou a cabeça levemente, seus olhos analisando Gerhman com a mesma curiosidade que um caçador teria ao observar sua presa. Então, sem expressão, ela desviou o olhar para Dante, antes de voltar a encará-lo.

    — Estou apenas deixando claro que Dante vai porque solicitou minha permissão. Não quero saber dos problemas da sua cidade, mas estão mexendo no que pertence à minha por direito.

    O Reservatório. Gerhman sabia exatamente a que ela se referia. Ele esperava que Clara fosse mais direta, mas sua calma era perturbadora. Talvez fosse preconceito pensar que as pessoas fora de GreamHachi seriam raivosas por natureza.

    — Vou explicar por que o chamei aqui — continuou Clara, com um tom de voz que mais parecia um juiz pronunciando uma sentença. — Tenho uma quantidade imensa de pessoas para cuidar. Um abrigo para limpar. Comida para estocar. Estamos evoluindo um segundo prédio para trazer mais gente. Sabe o que isso significa?

    — Mais gastos e mais responsabilidade. — Gerhman arriscou. — Você toma conta da cidade inteira?

    Clara soltou um leve sorriso, sem traço de humor.

    — Não. Antes, eu era apenas alguém que ajudava alguns moradores. Mas, graças ao Dante, tenho uma verdadeira casa. E quero que continue sendo assim. — Ela cruzou as pernas com um gesto casual, recostando a mão sobre o joelho. — E por estar aqui fora, será considerado um Impuro quando voltar. Seu amigo Leonardo pode sair porque duvido que Dante perca uma luta. Mas e você?

    — Eu? — A palavra escapou de seus lábios antes que pudesse contê-la, fina e afiada como uma lâmina.

    Desde que recebera a ordem de sair, Gerhman sabia que nunca voltaria à Cúpula como antes. Mesmo que os moradores o aceitassem, as sanções comerciais e os boatos sobre sua “impureza” corroeriam qualquer possibilidade de retorno à vida antiga. Ele já havia visto isso acontecer com outros.

    — Quero saber se tem um lugar para ficar, Gerhman — disse Clara, sem rodeios. — Porque sei que, assim que seu amigo for solto, vocês precisarão de um. Por que não aqui?

    — Aqui? Você quer dizer em Kappz?

    Dante deu uma risada baixa, quebrando um pouco da tensão.

    — Ela está dizendo que precisamos de pessoas capazes para tornar este lugar habitável. Você percebeu que os Felroz não se aproximam daqui à noite?

    — Sim. — Gerhman concordou, lembrando-se do silêncio estranho que pairava ao redor. Não havia os ruídos e gemidos famintos das aberrações que habitavam os túneis e o metrô. — Mas eu estava cansado demais para perguntar.

    Dante assentiu, como se entendesse perfeitamente.

    — Esta cidade já foi um ninho, Clara pode confirmar isso. Alguns meses atrás, conseguimos montar um sistema que impede as criaturas de chegarem perto. Mas ainda temos grandes problemas. Por isso queremos criar um lugar fixo. Um lugar que seja realmente a cidade de Kappz.

    — Estamos criando uma cidade acampamento — resumiu Clara, seu tom prático. — Um prédio é uma casa, mas não é um lar. Queremos trazer beleza de volta a este lugar. E queremos saber: quando sair de GreamHachi, você gostaria de participar?

    Gerhman fitou os dois, a lâmpada balançando novamente, lançando sombras oscilantes. A luz, ele percebeu, era a conquista mais gloriosa que Kappz tinha. GreamHachi, mesmo com todo o seu poder, jamais tivera algo assim.

    A luz simbolizava esperança.

    Ele se lembrou dos dias que passara com Leonardo, lendo no escuro, ouvindo os ruídos distantes das criaturas e questionando se os muros seriam suficientes. Na escuridão, as pessoas temiam mais o desconhecido do que as aberrações que nela habitavam.

    Séculos de escuridão, uma busca incessante por uma pureza que não existia. Impuros eram vistos como maculados, mas ali, fora da Cúpula, Dante e Clara tentavam recriar algo muito maior. Tentavam reconstruir a pureza há muito esquecida.

    — Eu… eu teria que perguntar ao… — começou, mas então lembrou-se da realidade amarga: Leonardo estava preso. As palavras seguintes saíram apressadas, quase tropeçando umas nas outras. — Quero ajudar com o que puder, se meu mestre sair da prisão. Se conseguir tirá-lo de lá, Dante, eu o convenço a vir. Leonardo é uma das pessoas mais fortes que já vi. Ele lutou, provou seu valor em todos os sentidos. Seria um bom conselheiro. Ele tem experiência de sobra. Então, se conseguir tirá-lo de lá…

    A mão de Dante se ergueu, um gesto simples, mas firme o suficiente para interrompê-lo.

    — Acalme esse coração, jovem — disse Dante, a voz serena, mas carregada de convicção. — Não precisa pedir de novo. Eu vou até sua cidade, e vou tirá-lo de lá. Agora, me diga quem será meu oponente.

    As palavras pairaram no ar como uma ordem, e Gerhman hesitou, seu olhar desviando para o chão.

    — Januario Diaz — respondeu finalmente, quase num sussurro. — Foi ele quem derrubou o senhor Leonardo da posição de liderança na Cúpula. Sua habilidade… é aterrorizante. Ele consegue conjurar seu pior pesadelo, dar forma física às visões, e usá-las contra você. Meu mestre… ele não durou nem cinco segundos.

    O sorriso que se formou no rosto de Dante era uma mistura de desafio e entusiasmo.

    — Aceito esse desafio — declarou, como se estivesse aceitando um convite para dançar. — Parece ser um homem formidável. Vai ser bom enfrentá-lo.

    Ele se virou para Clara, tocando sua mão com uma intimidade casual, mas inegável.

    — Creio que estamos decididos. Vou partir com Gerhman agora mesmo e mostrar o espetáculo que a cidade de Kappz pode oferecer.

    O sorriso de Clara era quente, um calor que contrastava com o ambiente frio ao redor. Gerhman não queria tirar conclusões precipitadas, mas havia algo entre os dois, algo que transcendia palavras.

    — Tente não forçar muito a barra — advertiu Clara, sua voz calma como o movimento de uma lâmina deslizando pela carne. — Eles pensam que somos fracos.

    — O que acha de eu apenas humilhá-los um pouco? — sugeriu Dante, o brilho de um sorriso audacioso iluminando seu rosto.

    — Faça o que achar melhor, querido — respondeu Clara, o tom íntimo suficiente para fazer Gerhman arquear as sobrancelhas.

    Dante segurou a mão dela com firmeza antes de se levantar, soltando uma risada que parecia ecoar pelo cômodo, dissipando qualquer tensão restante.

    — Ouviu o que a mulher disse, não ouviu? — Ele estendeu a mão para Gerhman, o gesto convidativo, quase fraternal. — Vamos mostrar àquela gente do que Kappz é feita.

    Clara já estava próxima da porta quando lançou um último aviso.

    — Não se esqueça, Dante. Você é da Capital.

    Dante parou por um instante, como se as palavras dela tivessem evocado algo que ele havia enterrado profundamente.

    — Verdade, verdade — murmurou, como quem se lembra de um segredo antigo. Ele então voltou seu olhar para Gerhman, com um sorriso renovado. — Então, da Capital e Kappz. O que me diz, Gerhman? Vamos sacudir GreamHachi pelo seu mestre?

    A luz oscilante da sala parecia capturar a intensidade do momento. Gerhman sentiu o peso da escolha que se aproximava, mas, diante de Dante e Clara, era difícil não acreditar que poderiam mesmo sacudir o mundo.

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