Capítulo 146: Chegada (II)
Dante encontrou Gerhman no telhado, uma figura solitária contra o horizonte escuro e tempestuoso. O homem estava parado na beirada do prédio, o vento gelado e a neve soprando com força, fazendo seu sobretudo preto balançar violentamente ao redor de suas pernas. Sua postura era firme, mas sua expressão carregava algo mais profundo: um peso que Dante conhecia bem.
Ali estava um homem longe de casa, trazendo um inimigo para dentro dela na esperança de salvar seu mestre. Dante tentou imaginar o que aquilo significava, mas logo desistiu. Em seis meses vivendo em Kappz, aprendera que o mundo era complicado demais para simplificações. As pessoas mudavam de lado, tomavam decisões difíceis, mas quase sempre por um único motivo: sobreviver.
— Ele está ali faz algum tempo. — A voz de Clara o chamou de volta à realidade. Ela estava sob a parte coberta do terraço, a neve se acumulando nos cantos da entrada. — Disse que precisava esfriar a cabeça. Tentei falar pra ele se afastar da beirada, mas ele gosta de estar ali.
— Tem uma bela vista, pelo menos.
Dante olhou para Clara. O sorriso habitual dela não estava lá, substituído por algo mais sério. Antes que ele pudesse dizer algo, Clara segurou sua mão, puxando-o para mais perto da parte coberta. O toque dela era leve, mas firme.
Perto demais, ele podia ouvir sua respiração, mesmo no meio do som constante da tempestade. Dante apertou a mão dela com gentileza, deixando seus dedos deslizarem suavemente sobre os dela. A proximidade dela era quase desconcertante, uma beleza que combinava com sua força, impossível de ignorar.
— Sei que vai ficar lá por pouco tempo… — Clara começou, sua voz baixa, mas carregada de preocupação.
— Prometo não demorar. — Dante levantou a outra mão, tocando delicadamente o rosto dela. Ele afastou os fios brancos que caíam sobre sua orelha, ajeitando-os para trás. — Prometo que vou voltar com eles inteiros. E vou voltar inteiro também.
Clara suspirou, o peso em seus olhos se intensificando.
— Você tem feito muitas promessas, querido. E não gosto de saber que está entrando em um ninho de cobras.
Ela abaixou a cabeça levemente, mas Dante tocou seu queixo, erguendo-o com delicadeza.
— O que foi?
Ele esperou, os olhos fixos nos dela antes de responder:
— Se promessas não são suficientes, faço um juramento. Eu juro que vou voltar inteiro. Isso basta para que eu vá sem ter que ver você com essa carinha tão triste?
Clara sorriu, mas havia um rubor tímido em seu rosto.
— Você foi um milagre que eu pedi. Caiu do céu e tem ajudado tanto a gente… — Ela colocou a mão sobre a dele, inclinando o rosto para descansar na palma de Dante. — Fico apenas preocupada com tudo isso.
Antes que ele pudesse responder, a porta do terraço se abriu com um rangido alto. Heian Cerberus passou por eles sem dizer uma palavra, os passos pesados contrastando com o vento que rugia. Ele hesitou por um momento ao ver os dois, mas logo virou para o outro lado, desaparecendo na direção oposta.
Dante riu baixinho.
— Sabia que descobri que o nome dele é Heian? — Ele sorriu, um brilho divertido nos olhos. — Está começando a se sentir mais confortável. Quando eu voltar, vou mandar Juno bater nele também.
— Tadinho dele, Dante. — Clara riu, um som leve que contrastava com a tempestade ao redor. Ela deu um tapinha no peito dele, endireitando a postura. — Agora, vocês precisam ir. Sabe que não vai ser bem recebido lá. Nenhum de vocês. Então, pode começar a se preparar. E lembre-se…
— Sim, eu sei. Juramento.
Ela passou a mão pelo peito, desenhando um X. Dante repetiu o gesto, sorrindo de lado, enquanto a neve continuava a cair ao redor deles.
Dante permaneceu imóvel, observando Clara desaparecer pelas portas do abrigo antes de finalmente se aproximar dos dois homens à beira do telhado. Cerberus olhava para o norte, o rosto escondido pela máscara, mas sua postura denunciava uma inquietação que nenhuma barreira podia conter. Gerhman, por sua vez, mantinha os olhos fixos no leste, como se procurasse algo além do horizonte gelado. A tensão entre eles era quase tangível, suas mentes envoltas em uma tempestade tão furiosa quanto a que os cercava.
Dante, contudo, não podia permitir que dúvidas os consumissem.
Ele respirou fundo, sentindo o fluxo da Energia ao seu redor. Com um único pisão no chão, converteu aquela força invisível em um impacto devastador. O ar ao redor se contorceu violentamente, e num raio de trinta metros, a neve, o vento e até mesmo a tempestade foram repelidos. O mundo parecia congelar por um instante, deixando uma visão clara e inalterada da cidade adormecida à distância.
Cerberus e Gerhman ficaram alarmados, os olhares instintivamente voltados para Dante. Mas naquele momento de silêncio absoluto, tiveram um vislumbre do que ele tentava mostrar: o caos que enfrentaram, a destruição que evitaram. Aquela era a esperança que se escondia nos sonhos dos desesperados.
— Antes de irmos — começou Dante, sua voz firme, mas sem pressa —, preciso que confiem em mim. Quando chegarmos lá, estaremos em menor número e sendo observados. Então, eu serei o prato principal. Gerhman, você me anunciará, e Cerberus será sua testemunha.
— E como vamos entrar na cidade? — Gerhman perguntou, ainda desconfiado.
Dante virou-se para Cerberus, os olhos firmes.
— As defesas da cidade foram destruídas no impacto que causamos. Mas dessa vez, usaremos isso a nosso favor. Um golpe calculado, algo que os faça temer sem nos deter.
Cerberus assentiu lentamente.
— Posso criar um estalido que rompa a barreira por tempo suficiente para passarmos. Já fiz algo semelhante antes.
Gerhman, porém, parecia menos convencido.
— E Januário? Como vai lidar com ele?
Dante sorriu de canto, mas o brilho nos olhos traía a intensidade de seus pensamentos.
— Não se preocupe com o meu maior medo, Gerhman. Quando a luta começar, você terá sua resposta. — Ele fez uma pausa, a voz baixa, quase sombria. — Quando colocarmos os pés naquela cidade, quero silêncio absoluto. Faremos GreamHachi virar de cabeça para baixo, e nenhum deles verá isso vindo.
Gerhman hesitou antes de murmurar:
— E Maethe? Vai enfrentá-la também?
Dante cruzou os braços, pensativo.
— Clara me disse que GreamHachi não pode ser destruída cortando apenas uma cabeça da serpente. Todas devem permanecer juntas, pelo menos por enquanto. Primeiro, resgatamos Leonardo. Depois, voltamos para lidar com o resto.
Os dois homens assentiram, ainda que Gerhman demonstrasse um desconforto crescente. Voltar àquela cidade, agora como inimigo, parecia pesar sobre seus ombros. Mas não havia outra escolha.
— Primeiro Leonardo — repetiu Gerhman, quase como um mantra. — Depois, voltamos. Droga, isso vai ser um inferno.
Dante riu, pegando um charuto do bolso e o colocando entre os dentes.
— Anime-se, Gerhman. Você pediu ajuda, e a ajuda está a caminho. Agora, segure minha mão. Quanto mais rápido nos movermos, mais rápido Leonardo será salvo.
A hesitação de Gerhman foi breve. Ele estendeu a mão, apertando a de Dante. Cerberus fez um sinal de cabeça, silencioso como sempre. Juntos, os três estavam prontos para enfrentar o que os aguardava em GreamHachi, um inferno que prometia consumir tudo e todos que ousassem se opor a eles.
Dante lançou-se ao ar como um projétil, o corpo imerso na Energia que ele manipulava com maestria. O vento cortava sua pele como lâminas geladas, mas ele não vacilava. A cidade à distância, GreamHachi, era seu alvo, e nada poderia detê-lo. Ele mergulhou por baixo de um prédio em ruínas, usando a estrutura como ponto de apoio para um giro rápido, antes de disparar em espiral ao longo da antiga torre de rádio. Cada movimento era calculado, cada impulso o aproximava do oeste, onde o vento parecia conspirar para impulsioná-lo ainda mais rápido.
Atrás dele, Gerhman lutava para manter o equilíbrio, o corpo balançando como um boneco de pano preso a uma força que mal podia controlar. Seus braços se agitavam enquanto ele gritava palavras que o vento consumia antes que pudessem alcançar Dante. Ainda assim, ele persistia, os olhos fixos na figura à frente.
Cerberus vinha por último, como uma sombra silenciosa, o manto escuro ondulando atrás de si. Ele não disse nada, mas seus movimentos eram precisos, quase frios, como se estivesse alheio à urgência e ao caos ao seu redor.
E então, a voz de Dante rasgou o silêncio do céu, um grito que ecoou sobre a vastidão branca e sombria:
— GreamHachi! — ele rugiu, o som carregado de desafio e raiva. — Estamos indo te ver, desgraçada!
A cidade à frente parecia responder com seu silêncio imponente, as torres e muralhas surgindo como sombras contra o horizonte. Era um lugar que não perdoava fraquezas, mas Dante não trazia fraquezas consigo. Apenas uma determinação ardente, um fogo que queimava mais forte que o gelo ao seu redor.
O voo continuou, a tensão crescendo a cada segundo. GreamHachi esperava. E Dante estava pronto para confrontá-la.
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