Capítulo 152: Campeão
Enquanto Dante avançava pelo meio da multidão, esta se dividia diante dele como o mar cedendo à força de uma tempestade. Os olhares eram variados: medo, curiosidade, ódio contido. Mas, acima de tudo, havia uma hesitação quase reverente. Os passos de Dante, firmes e deliberados, soavam altos contra o chão de pedra, ecoando nas vielas estreitas e nos becos da cidade.
Os mais jovens, ignorando o perigo, corriam para segui-lo, suas faces cheias de fascínio infantil. De vez em quando, um deles se aproximava mais do que deveria, mas um único olhar de Dante bastava para afastá-los, fazendo-os recuar como pequenos pássaros assustados.
As casas de dois andares ao longo da rua começaram a se encher de gente. As janelas se tornaram quadros vivos, cada uma emoldurando rostos ansiosos e atônitos. As portas se entreabriam, e figuras sombrias espiavam pelas frestas, murmurando entre si. Era raro um espetáculo tão grandioso em GreamHachi, mas aquele não era um evento para se comemorar.
Atrás de Dante, Cerberus seguia em silêncio, os olhos fixos à frente. Ele segurava o Felroz com um fio dourado de Energia Cósmica, que brilhava como uma corrente celestial. A criatura mancava, o pescoço curvado sob o peso da força que a dominava. Cada passo que dava era marcado por um grunhido rouco, quase um gemido de dor, enquanto suas patas quebradas raspavam contra as pedras.
O Felroz era um monstro que habitava lendas e pesadelos. Nas histórias contadas ao redor das fogueiras, era descrito como invencível, uma besta cujo poder desafiava até os mais bravos guerreiros. E, no entanto, ali estava ele, reduzido a um animal acuado, arrastado como um troféu para o centro da cidade.
O povo de GreamHachi observava em silêncio, e, embora muitos estivessem chocados, havia aqueles que pareciam lutar contra uma faísca de esperança. Se Dante podia subjugar um Felroz, talvez os mitos sobre os Impuros não fossem tão terríveis quanto haviam acreditado. Mas essa esperança vinha misturada com medo, pois, se alguém tinha o poder de dobrar uma criatura como aquela, o que poderia fazer com uma cidade inteira?
As murmurações começaram a se espalhar como um fogo lento:
— É realmente um Felroz? — sussurrou uma mulher na janela.
— Como ele conseguiu derrotá-lo? — perguntou um homem ao lado dela, o rosto pálido.
— Isso não é normal — disse um mercador, afastando-se para evitar o olhar de Dante. — Ninguém deveria ter tanto poder.
Dante ignorava as palavras ao redor. Seu foco estava adiante, no pátio central, onde ele sabia que o duelo seria decidido. Ele podia sentir os olhares perfurando suas costas, mas não se incomodava. O medo e a admiração eram armas tão afiadas quanto qualquer lâmina, e ele sabia como usá-las.
Cerberus, no entanto, sentia o peso do momento. Ele olhou para o Felroz e, por um instante, quase sentiu pena da criatura. Quase. O que o monstro havia feito antes de ser capturado era suficiente para esmagar qualquer empatia. Mesmo assim, era estranho vê-lo reduzido a isso: uma sombra da ameaça que costumava ser, dobrado pela força de um homem que se recusava a ser detido.
Quando chegaram ao pátio, a multidão já se aglomerava em um círculo apertado. Dante parou no centro, seus olhos percorrendo os rostos ao redor. Ele ergueu o braço, apontando para o Felroz.
— Vocês têm medo disso? — perguntou, sua voz grave cortando o silêncio. — Olhem bem para ele. O que veem?
Houve um murmúrio entre os espectadores, mas ninguém respondeu.
— Este é o monstro das suas histórias. A besta que vocês disseram ser invencível. — Dante deu um passo à frente, seus olhos queimando com intensidade. — Agora, ele está aos meus pés.
Cerberus soltou a corrente, permitindo que o Felroz caísse no chão com um baque surdo. A criatura tentou se levantar, mas sua força havia desaparecido.
— Então, me digam — continuou Dante, seu tom mais sombrio agora. — Se um monstro como esse não é páreo para mim, o que acham que eu faria com vocês?
A tensão no ar era sufocante. Mesmo aqueles que odiavam Dante não conseguiam negar a verdade em suas palavras. Ele não era apenas um homem; era um lembrete vivo de que a força bruta, quando bem usada, podia derrubar qualquer crença, qualquer muralha.
E, acima de tudo, ele sabia disso.
— Você julga suas ações como fortes, quando na verdade não são nada além de uma fala simplória – Raver novamente o contrariou, do outro lado do pátio central, acima da casa. – Continua ditando suas próprias ações como sendo o mais alto grau de honraria.
— Nunca falei que sou honrado a esse ponto.
Raver se calou na hora.
— Acredita que honra salva as vidas das pessoas que você pune lá fora? – perguntou Dante. – Acha que a honra que você diz que eu tenho deveria ser entregue para uma cidade que nunca respeitou quem mora do lado de fora. Você diz que eu faço seu solo ser manchado de sangue, que sou um Impuro, então, por que ainda não veio tentar me parar? Esse medo que seu coração carrega é o mesmo daqueles que vivem lá fora, sendo feitos de escravos, esperando uma chance. E ela nunca vai vir porque gente igual vocês são as que matam todos os dias.
— E não fazem o mesmo com os Felroz? – reverteu Raver, ainda se mantendo calmo. – Nós castigamos aqueles que não possuem racionalidade. Punimos quem não deveria sequer ter oportunidades em construir uma civilização. Se diz ser cidadão de Kappz, não é? E desde que chegou, o que construiu de relevante?
Aquela pergunta era ótima.
— E se eu disser que você não tem racionalidade, posso castigar essas pessoas ao redor como se não fosse nada além de insetos? E se eu compará-las a um Felroz, sem nada a oferecer, o que essa cidade faria?
— Lutaríamos até a morte – a voz de Raver se tornou fria e raivosa. – Não tememos nenhum Impuro, nem mesmo um cachorro que late quando acha que está no direito de roer o osso. Nada de bom vem de vocês.
Dante deu uma risada, ecoando no silêncio da cidade. Entre as casas e o povo.
— E mesmo assim, você continua tentando pegar a água do Reservatório, não é? Um lugar que fica fora daqui, para sobreviver. GreamHachi só é o que é porque precisa dos recursos de fora, ou sua Hidrelétrica, que mandou Cerberus proteger, fica aqui dentro? Cadê a sua água? Cadê a sua comida? Nada – Dante berrou, apontando pra frente —, nada disso é de vocês. Se querem mesmo tomar o que é meu, então, nós lutaremos até a morte.
O termo ‘lutar até a morte’ não soou para os ouvintes como algo bom. Eles se afastaram em mais alguns passos dos três. Gerhman, por exemplo, estava sendo observado como nojo e desdenho, e no meio daqueles dois sentimentos, o medo de um povo ignorante.
Sem ao menos pensar, eles tinham medo.
— Bem que ele disse que ia fazer essa cidade virar de cabeça pra baixo – disse Cerberus. – Só não pensei que ele iria declarar uma guerra dessa maneira.
Gerhman encarou o velhote novamente. Dante continuou avançando para a praça, de queixo erguido, e puxou o charuto da boca, exalando sua convicção e superioridade como se nada ali pudesse ao menos tocar seus fios de cabelo.
— Raver, farei uma aposta irrecusável a você. – O homem sorriu com o charuto, criando a visão de um demônio vestido de vermelho, no corpo de um humano. – Se seu campeão perder essa batalha, você morre. E se eu perder, nós todos seremos decapitados aqui bem na sua frente.
Gerhman engoliu em seco na hora. O que ele está pensando em fazer? Isso é loucura.
Os murmuros entre os moradores ecoaram como fogo no óleo, acendendo a visão de que aquele homem poderia ser morto. Não se questionavam sobre Raver morrer, e sim os inimigos serem derrotados.
Mesmo as leis dentro de GreamHachi poderiam ser levadas em consideração quando algo daquela forma era erguida.
Quem quebrou o silêncio foi Cerberus:
— Quando encontrei com ele, achei que fosse maluco. Mas, vendo agora, parece que é mais inteligente do que eu imaginava.
— O que quer dizer com isso?
O povo ao redor começou a gritar para Raver, apontando o dedo e destilando ódio e raiva.
— Aceite a aposta, senhor.
— Mande ele pra debaixo da terra. Esse Impuro maldito.
Outro cuspiu do lado de Dante, fazendo um gesto obsceno com o dedo do meio.
— Seu verme maldito. Quem pensa que é?
Gerhman ficou atônito. A cidade que antes parecia estar calada simplesmente caminhava para onde Dante havia apontado.
— Dante deixou Raver encurralado usando o próprio povo daqui – comentou Cerberus ainda observando as reações explosivas e xingamentos. – Se recusar, estará sendo covarde. E se aceitar, ele morre.
— Você não conhece Januario. – Gerhman se virou para ele. – Aquele monstro venceu Leonardo. Não conhece a habilidade dele. É… irreal.
— Posso não conhecer esse seu colega, mas aquele velho ali. – Cerberus fez uma pausa gesticulando com a mão fracamente. – Enquanto ele estiver vivo, duvido que alguém vença ele no mano a mano.
Que idiotice. Era a cidade de GreamHachi ali. Eles não tinham culhões quando se tratava de inimigos. Matariam mesmo se perdessem.
— Chega!
A bota de Dante bateu contra o chão e uma onda de ar pesada arrastou todas as vozes para longe. A coragem dos residentes se apagou num estalar de dedos quando a voz dele se ergueu. Dante ainda olhava para Raver, com bastante seriedade.
— E então, covarde de GreamHachi, traga seu campeão.
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