Índice de Capítulo

    Clara sentiu o impacto antes de vê-lo.

    Estava no centro do abrigo, suas mãos calejadas trabalhando com a precisão de quem havia aprendido a sobreviver no rigor de um mundo que não perdoava descuidos. Os feixes de lenha estavam amarrados e prontos para alimentar as chamas que dariam vida ao refúgio naquela noite de inverno implacável. Lá fora, o vento rugia como uma fera faminta, mas dentro das paredes de pedra e madeira, havia uma paz frágil, uma ilusão de segurança.

    Então, veio a brisa.

    Quase imperceptível, cortou o ar gélido como uma lâmina quente, carregando um cheiro estranho. Clara parou. O odor não era de gelo nem de madeira úmida, mas algo mais antigo, mais perturbador: ferro queimado e cinzas espalhadas ao vento. Ela ergueu os olhos para a janela quebrada no alto da parede. Lá fora, o mundo parecia o mesmo, mas algo estava errado.

    O silêncio, sempre bem-vindo no abrigo, foi quebrado por um som profundo e distante. Um trovão abafado, talvez, mas com um peso que fazia o chão vibrar levemente. Clara franziu o cenho. Não era o trovão comum das tempestades de inverno; havia algo nele que parecia vivo, pulsante.

    — O que foi isso? — perguntou alguém atrás dela, mas Clara já estava em movimento.

    Lá fora, o ar parecia diferente, carregado de tensão. O céu, sempre escuro e pesado, agora parecia deformado, como se as estrelas estivessem tremendo. No horizonte, um clarão dourado explodiu, iluminando a noite com uma intensidade que não pertencia àquele mundo.

    Então veio o estampido.

    A onda de choque varreu o abrigo. Clara cambaleou, segurando-se na parede de pedra enquanto o vento quente atingia seu rosto. O cheiro de queimado se intensificou, quase sufocante, e os murmúrios de confusão dos refugiados começaram a se espalhar. Clara olhou para eles, mas não tinha respostas. Não sabia o que dizer.

    Um peso estranho se instalou em seu peito, como se o ar ao redor estivesse mais denso, mais opressivo. Cada batida de seu coração parecia ecoar no silêncio que se seguiu ao impacto. Era mais do que medo; era algo primordial, uma sensação que vinha de algum lugar profundo dentro dela.

    Dante.”

    O nome surgiu em sua mente como um sussurro, mas carregava a força de uma certeza inabalável. Ela sabia que aquilo estava conectado a ele, mesmo sem entender como.

    Outro clarão iluminou o horizonte, seguido por um novo som, mais próximo, mais devastador. O chão tremeu sob seus pés, e Clara caiu de joelhos, os olhos fixos na direção do clarão.

    As histórias sobre Dante eram sempre exageradas, ela pensou. Um homem que enfrentava monstros, que desafiava os deuses e sobrevivia onde ninguém mais poderia. Mas as histórias não podiam capturar o que ela sentia agora. Era mais do que poder. Era destruição. Era caos.

    Clara pensou no abrigo, nas vidas frágeis que dependiam de cada gota de calor e de cada pedaço de comida. Se Dante era capaz de sacudir a terra e incendiar o ar a quilômetros de distância, o que aconteceria se ele perdesse o controle?

    Ela apertou o peito com força, como se pudesse conter o desespero que começava a crescer dentro dela. Lá fora, o clarão se dissipava, mas o eco do poder de Dante ainda vibrava no ar, como uma lembrança que não podia ser apagada.

    — O que você fez, Dante? — sussurrou, suas palavras se perdendo no vento que carregava o cheiro da destruição.

    I

    Os braços dela se moveram como um reflexo desesperado, repelidos pela força de um impacto.

    Juno girou no ar, seus sentidos em alerta, e usou a perna para impulsionar um chute direto no peito de um soldado. O homem foi lançado contra a parede com um baque surdo, e antes que pudesse recobrar o equilíbrio, uma descarga de estacas elétricas finas como agulhas perfurou seu peito. Elas brilharam por um instante antes de cravarem profundamente, selando o destino do soldado para sempre.

    Sem hesitar, ela girou o corpo no chão, escapando por um triz do alcance de uma mão disforme, feita de uma gosma azul viscosa que se movia como se tivesse vida própria. A parede metálica da caverna estremeceu quando o braço elástico acertou o ponto onde Juno estivera momentos antes, abrindo um buraco grotesco no metal frio.

    Ela recuou para uma parede próxima, os pulmões arfando enquanto seus olhos buscavam o próximo movimento. A tensão no ar era sufocante.

    — Não os deixem sair! — a voz de um soldado ecoou pela sala onde Magrot havia desaparecido momentos antes. — Havok foi claro: nenhuma testemunha!

    Os olhos de Juno encontraram a mesa no centro do aposento. Um lampejo de decisão atravessou seu olhar, e ela correu. Cada passo parecia um ato de desafio contra a morte iminente. Jix estava na porta, protegendo a lateral com movimentos precisos. Ele encontrou o olhar dela por um momento e acenou com a cabeça, uma permissão silenciosa.

    Juno usou a mesa como impulso, seus pés encontrando firmeza suficiente para lançá-la ao ar. Ao seu redor, os fios elétricos que habitavam seu poder responderam como se fossem extensões de sua própria vontade. Relâmpagos dispararam em todas as direções, uma tempestade furiosa e caótica.

    Mas o ataque foi interrompido.

    Uma muralha de areia ergueu-se diante dela, sólida e intransponível, absorvendo os raios como se fosse um abismo. Juno caiu no chão, encarando a figura que emergia do outro lado da barreira.

    — Seu poder não tem efeito em mim, garota — disse a mulher.

    Ela usava um pano que cobria o nariz e a boca, deixando apenas os olhos à mostra. Mas aqueles olhos eram o suficiente. Eles eram duros como aço temperado, carregados de uma determinação fria e impiedosa.

    — Arsena! — a voz de Jix soou do corredor que ele guardava. — Estamos ficando sem tempo!

    Ele estava certo. Os soldados do outro lado tentavam invadir o aposento onde Magrot havia desaparecido. O som de botas pesadas e gritos de comando enchia o ar, uma lembrança constante de que o tempo estava contra eles.

    Ao apertar os punhos, os fios elétricos em suas mãos tremularam como serpentes inquietas. Sua mente corria, buscando uma solução. Tudo parecia impossível. E então, uma única pergunta surgiu, insistente e inevitável:

    O que o Mestre Dante faria?

    A ideia a consumiu. Ele sempre encontrava um caminho, sempre dobrava o impossível à sua vontade. Mas ela não era Dante. Ela era Juno. E se quisesse sobreviver, teria que descobrir sua própria resposta.

    Com um grito de pura determinação, ela avançou novamente, os relâmpagos brilhando ao seu redor, enquanto o peso da batalha ameaçava esmagá-la.

    A mulher erguia suas paredes de areia com precisão, cinco camadas imponentes prestes a serem lançadas. Mas antes que pudesse agir, o grito de um homem rasgou o ar, um som ensurdecedor que veio de dentro da sala. Então, o clarão amarelado irrompeu, um inferno de fogo que explodiu em todas as direções. O calor intenso foi como um sopro divino, incendiando tudo que tocava, como se o próprio sol tivesse se derramado sobre eles.

    Os soldados, dentro e fora, foram tomados pelas chamas. Seus corpos, marcados pelo calor infernal, se carbonizavam, e o som dos gritos era abafado pelo rugido das chamas, levados junto com a última centelha de suas vidas. Cada pedaço de carne, cada pedaço de alma, queimava de dentro para fora.

    Juno observou, o estômago revirado, seus olhos fixos nas chamas que não cederiam. O fogo consumia tudo, sem misericórdia, sem piedade, até que não restasse nada além de cinzas.

    A mulher e outros três soldados tentaram, desesperados, jogar areia sobre os corpos carbonizados, uma tentativa fútil de salvar o que restava. Mas Juno não se moveu. Não houve compaixão em seu olhar, apenas o silêncio frio da indiferença.

    Ela esticou o braço com um movimento brusco, uma linha de energia saindo dele como uma flecha certeira. A lâmina cortou o ar e entrou na garganta da mulher com precisão mortal. Os olhos dela viraram lateralmente, um último lampejo de consciência, antes de cair sem vida, como uma marionete com seus fios cortados.

    E então, entre as chamas, Magrot surgiu, seu braço canhão se encaixando de forma monstruosa. O metal que compunha seu corpo parecia ignorar o fogo, como se ele fosse parte do próprio inferno. Ele não disse nada ao passar, mas seus olhos, por um breve momento, encontraram os de Juno. A tristeza estava ali, nítida, como uma sombra que se recusava a desaparecer.

    Ele parou onde os soldados ainda se arrastavam, tentando escapar das chamas. Com um movimento quase solitário, esticou o braço e, de novo, as chamas se espalharam. O fogo não se conteve, consumindo tudo em segundos.

    — Eu nunca vou perdoar Havok — disse ele, a voz áspera, mas carregada de uma dor profunda. — Ele vai pagar por tudo o que fez com a gente.

    Juno, que não era dado a palavras vazias, ficou ali, imóvel. O que poderia dizer? O que poderia aliviar aquele sofrimento que não era seu? Tudo o que saiu foi um murmúrio, baixo e certeiro:

    — Ele vai pagar. Com a vida.

    Magrot apenas balançou a cabeça, como se tivesse ouvido aquelas palavras antes, como se não fosse a primeira vez que alguém prometia justiça. Mas isso não fazia a dor passar.

    Foi então que ouviram os passos de Arsena. Ela retornou do corredor, com uma caixa pesada em mãos, cheia de peças de aço e próteses antigas.

    — Encontrei o que o doutor pediu — disse ela, colocando a caixa no chão com um estrondo abafado. — Tem muita coisa aqui. E peguei também os projetos que nunca saíram do papel. Aquele miserável escondeu mais do que a gente imaginava.

    Foi então que o cheiro de carne queimada chegou até ela. E, ao olhar para o meio da sala, viu Magrot, seu corpo ainda envolto nas sombras da destruição que ele mesmo ajudou a causar.

    — Você deveria falar com ele — sugeriu Jix, com um olhar de preocupação. — Ele está mais quebrado do que parece.

    Arsena não hesitou.

    — Não. Havok vai pagar por nos ter mandado para a morte, mas Magrot… ele precisa disso. Ele sempre confiou naquele homem, cegamente. Agora ele vai ter que aprender a andar com as próprias pernas.

    Não havia piedade em seu tom. Arsena nunca foi do tipo que lamentava o destino de outros. Magrot e ela haviam sido feitos para matar, desde o início, desde as promessas vazias de Havok.

    Quantos anos se passaram desde aquelas palavras? Quantas promessas quebradas? Arsena nunca colocou sua mão no fogo por aquele homem.

    Diferente de Magrot, que colocou o corpo inteiro por ele. Agora, ele sofria, tanto no corpo quanto na mente.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota