Índice de Capítulo

    O vento gelado cortava como lâminas enquanto o pequeno grupo se aproximava do abrigo. A neve rangia sob as botas, cada passo marcado por exaustão e o peso de dias sem descanso. Dante vinha à frente, o rosto endurecido pelo frio e pela responsabilidade. Atrás dele, Leonardo caminhava com dificuldade, apoiado em um dos outros sobreviventes, seu rosto pálido e suado denunciando o quanto estava ferido.

    O abrigo surgia como um farol de esperança no horizonte. As torres improvisadas, feitas de aço enferrujado e madeira velha, pareciam mais imponentes do que nunca sob o céu cinzento. Assim que cruzaram os portões, os olhares cansados de todos se voltaram para eles. Sussurros começaram a se espalhar.

    — Eles voltaram! — alguém murmurou, e logo as vozes aumentaram, chamando outros para testemunharem o retorno.

    Clara estava entre os primeiros a chegar. Seu coração disparava, a respiração acelerada, não pelo frio, mas pela expectativa. Quando viu Dante, um alívio quase esmagador tomou conta dela. Ele estava vivo.

    Ela correu em sua direção, ignorando o frio que queimava seu rosto e os olhares ao redor. Dante ergueu os olhos no momento em que Clara chegou, os braços dela envolvendo-o em um abraço desesperado e apertado.

    — Você voltou — disse ela, a voz abafada contra o casaco dele.

    Por um momento, Dante não respondeu. Sentia o calor dela, tão diferente do mundo gelado ao seu redor. Suas mãos subiram devagar até segurarem os ombros de Clara, como se precisasse ter certeza de que ela estava ali.

    — Eu disse que voltaria — respondeu ele, a voz rouca.

    Clara recuou o suficiente para olhar em seus olhos. Ela viu as linhas de cansaço em seu rosto, as manchas de sangue seco em sua roupa, e algo no olhar dele que parecia mais sombrio do que antes.

    — Você está machucado? — perguntou, quase em um sussurro.

    — Não é nada — disse ele, desviando o olhar para Leonardo, que agora era levado para dentro por outros. — Ele precisa de ajuda. Tivemos problemas… mas conseguimos.

    Clara seguiu o olhar de Dante, observando Leonardo e os outros sendo acolhidos. Mas algo na expressão de Dante a fez parar. Ele não parecia apenas cansado. Parecia carregado por um peso invisível, como se tivesse deixado algo para trás.

    — Dante — ela começou, mas ele balançou a cabeça, como se soubesse o que ela ia perguntar.

    — Depois, Clara. Preciso organizar tudo… explicar o que aconteceu.

    Ela assentiu, embora a preocupação ainda estivesse estampada em seu rosto.

    — Só não se esqueça que não precisa carregar tudo sozinho — disse ela, a voz firme.

    Dante olhou para ela, os olhos escuros avaliando-a por um momento antes de um pequeno sorriso surgir em seus lábios.

    — Eu sei.

    Ela não tinha certeza se acreditava nele, mas não insistiu.

    Quando Dante se afastou para ajudar os outros, Clara ficou ali, observando-o. Sabia que ele não falaria tudo o que havia acontecido, pelo menos não ainda. Mas o importante era que ele estava ali. Vivo. E, por enquanto, isso bastava.

    Outros receberam Gerhman, com sorrisos e acenos, o trazendo para dentro. Somente quando Heian Cerberus passou, Clara ousou piscar para tentar refazer seus pensamentos.

    — Ele está bem — disse Heian. — Fez o que deveria ter feito. Acredito que mais do que Gerhman ou eu seríamos capazes. Eu… — hesitou em olhar para ela, mas tirou a máscara, a jogando do lado de fora —, peço desculpas se algum dia machuquei alguns de vocês. Eu estava cego, mais do que um dia poderia imaginar, mas estou aqui para poder dizer isso.

    Ele abaixou, ajoelhando em uma só perna, chamando atenção das demais pessoas. Cerberus manteve-se ali, soluçando aos prantos.

    — Peço que me perdoe, senhora. Por favor.

    — Heian, calma. — Ela o segurou pelos ombros, o puxando para cima. — Não precisa disso. Dante o considera um aliado, um colega. Você ajudou esse lugar tanto quanto os outros. Não precisa disso.

    Heian não conseguiu se controlar e a abraçou fortemente. Até mesmo homens fortes choram as vezes, Clara sabia disso.

    I

    Clara procurou por Dante nos andares superiores depois de algumas horas. Encontrou Gerhman sentado em uma cadeira, tomando conta de Leonardo que deitava virado para a parede. Ela se aproximou, não querendo perturbar.

    Aquele era o homem que lutaram tanto para trazê-lo. Gerhman sentava na cadeira, mas apoiava a cabeça na cama, no pequeno espaço, de olhos abertos. Quando Clara se aproximou, ele piscou algumas vezes e ajeitou-se na cadeira.

    — Não precisa se levantar — disse Clara. — Apenas vim ver se Dante estava por aqui. Procurei por ele, mas não o vi em lugar algum.

    — Acho que ele foi dar uma volta. Vi ele subindo, mas… acho que ele vai querer ficar sozinho, senhora.

    Clara não gostava daquele tom. Parecia as coisas em GreamHachi realmente tinha sido mais do que havia sentido. Uma batalha sempre era entre vencedores e perdedores. Por que eles, que conseguiram trazer Leonardo de volta, pareciam derrotados mentalmente?

    — O que houve para estarem tão abalados assim? — Ela pegou, suave, uma cadeira, ficando ao seu lado. — O que acontece lá, Gerhman?

    Mesmo amadurecido, ainda parecia um rapaz com seus traços finos do rosto. Aquela parecia ter sido a primeira vez que ficou abalado de verdade.

    — O inimigo do Dante foi Januario, como eu falei antes de irmos. E ele nos fez experimentar nossos medos, mas… não sei o que Dante viu dentro da mente dele. — Gerhman fechou a mão, e mordeu um pouco o lábio. — Quando ele acordou, parecia diferente. Ele nunca tinha feito nada que mostrasse ser tão…

    — Maluco.

    Os dois ouviram Leonardo completar a palavra, ainda com seu corpo voltado para a parede, de costa para ambos.

    — Ele não só mostrou que é uma máquina, como também um monstro. — Sua voz era rouca e firme. — Eu enfrentei ele na primeira vez, mas não esperava isso. Dante, ou seja lá, o que for o nome dele, é um homem que não só venceu o próprio medo, como fez a cidade inteira de GreamHachi se incendiar.

    Clara, então, entendeu aquele clarão que viu no meio da tempestade. Eram chamas.

    — Ele… fez a cidade se incendiar e usou isso para matar Januario e Raver — completou Leonardo, se encolhendo mais. — O último golpe dele… como alguém poderia se defender daquilo?

    Clara engoliu em seco. O que Dante tinha causado era ainda mais trágico do que ela pensou. Muito mais.

    Os passos pesados foram ouvidos pela escada. Dante apareceu, descendo com Cerberus logo atrás, mas não estavam sozinhos. Havia uma mulher e uma criança, que usavam casacos pesados e botas novas. Elas desceram até o andar e Dante apontou.

    Gerhman se levantou na hora.

    — Senhora… Fabiana. Pequena Carly.

    Leonardo deu um espasmo e virou. Clara se levantou e puxou a cadeira. A garotinha voou na direção de Leonardo. Não deu tempo para ele sair da cama, pulou e o abraçou. Fabiana, com olhos marejados, segurou a mão de Dante.

    — Obrigado. Obrigado, senhor. Meu marido… obrigado por tudo.

    Dante assentiu com sorriso de lado.

    — É sempre um prazer.

    Ela correu para Leonardo Vulkaris, abraçando seu marido. Leonardo tinha as duas em seu peito, desacreditado por estarem ali. E quando encarou Dante, o viu acenar com a cabeça levemente.

    Clara não sabia o que tinha acontecido, mas essas duas eram a família de Leonardo. Isso dizia que Dante voltou para GreamHachi, mesmo depois de tudo.

    — Fique aqui com eles — ordenou Dante a Cerberus. — Precisa disso também. Ele é seu amigo.

    Heian pareceu dividido entre ir e ficar, mas o deixou subir novamente. Clara rapidamente foi atrás dele. Subiu as escadas correndo, o vendo virar na porta. Assim que chegou lá em cima, o enxergou encarando a tempestade, no meio da neve e ventos fortes.

    — Está tudo bem? — perguntou Clara chegando mais perto. — O que houve?

    — Não precisa se preocupar. — Ele ainda fitava o céu. — Eu só fiz o que achava ser certo. Eu quero te perguntar uma coisa, Clara.

    — Não mude de assunto. O que aconteceu lá? Por que eles disseram que você parecia um monstro? O que houve?

    Ele manteve o silêncio. Abriu a boca e depois fechou, respirando fundo. Abaixou a cabeça, os olhos vagando ao redor.

    — Perdi o controle, foi o que aconteceu. — Os olhos dele piscavam rapidamente. — Perdi… um pouco do controle e destruí parte da cidade. As coisas saíram um pouco do controle. Mas, eu vi o que faltava, Clara. Eu vi que se eu deixar as coisas aqui fora me limitarem, nós não vamos construir nada.

    — Do que está falando? Nós já estamos fazendo tanto.

    — Mas, não é o suficiente. Temos que fazer valer a pena. Vamos fazer a cidade acampamento. — Ele a encarou, esticando a mão. — Quero que tome a frente disso. E eu serei quem precisa cortar o que é necessário cortar. Serei quem precisa colidir no que é necessário. Alias, foi pra isso que fui criado.

    Clara negou rapidamente.

    — Você foi feito pra ser quem quiser. Por que você tenta esconder essa raiva com um sorriso tão idiota?

    Ele sorriu, novamente, mas os olhos pequenos, como se quisessem chorar.

    — Porque foi desse jeito que aprendi a esconder meus medos.

    Clara não esperou. Passou seus braços por trás das costas de Dante, e o puxou para si, dando um abraço apertado.

    Longe de casa, da família, com medo e raiva, tentando sorrir e dar o melhor para todo mundo ao redor. Ela não podia entender metade daquilo, mas tinha total certeza: Dante era o homem mais forte que ela conhecia, não pela força física, mas pela mental.

    E naquele abraço, Clara pôde ver, mesmo que em um pequeno flash em sua cabeça, o real medo de Dante. Um homem parado, de costas, na outra ponta do telhado. Usava uma estranha vestimenta antiga, que Clara conhecia sendo de uma cidade bem distante. E em suas mão, uma espada lisa e reta.

    Clara abraçou Dante mais forte, forçando um olhar agressivo para aquela imagem. E viu o homem virar o rosto e sorrir, o mesmo sorriso que Dante tinha.

    — Ainda fraco — a voz do homem soou. — Ainda um covarde.

    Ela negou e sentiu Dante se apertar mais ao abraço.

    — Você não é covarde. Nunca foi.

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