Capítulo 159: Para Afins
Depois de dias enfrentando a fúria do inverno, Juno finalmente avistou o abrigo.
Não era uma visão grandiosa. As estruturas precárias e as cercas reforçadas contra a neve davam uma aparência modesta, mas para Juno, era um monumento de esperança. Cada passo que dava em direção àquele refúgio parecia aliviar o peso de sua jornada. Ela não pôde evitar o sorriso que se formou em seus lábios rachados. Estava de volta a casa.
Atrás dela, Magrot e Arsena puxavam um trenó improvisado. Cordas resistentes prendiam caixas repletas de armas e suprimentos, um saque tirado do arsenal de Duna. Apesar do sucesso da missão, as expressões de ambos eram sombrias, e o silêncio que carregavam era mais pesado que o trenó.
— Não diga nada — ordenou Jix, caminhando atrás de Juno. Sua voz era baixa, mas firme. — Não é da nossa conta, e eles não querem conversar.
Juno assentiu sem questionar. Não era o momento de insistir em respostas.
À medida que se aproximavam, o som abafado de vozes chegou até eles, sobrepondo-se ao uivo do vento. A tempestade ainda obscurecia a visão, mas conforme avançavam, o cenário se revelou, e até mesmo Jix, sempre reservado, não conseguiu conter sua surpresa.
Diante do abrigo, mesas estavam dispostas em fileiras ordenadas, protegidas por uma lona improvisada que se estendia por, pelo menos, vinte metros. Uma parede de pedra fortificada, recém-construída, cercava a área, oferecendo abrigo contra o frio cortante. Degol e Meliah moviam-se entre as mesas, organizando pratos e talheres, enquanto refugiados aguardavam, sentados, o que parecia ser uma refeição comunitária. Mais ao fundo, Sindra e Rebirth comandavam uma fornalha improvisada, de onde saíam os aromas tentadores de pão assado e caldo quente.
Juno apertou o passo, sua curiosidade despertada pelo inesperado espetáculo. Assim que os viram, uma criança correu para dentro do abrigo, gritando com a empolgação inocente que o inverno ainda não havia apagado.
— Tia Clara, a Juno voltou!
Jix arqueou as sobrancelhas e murmurou:
— Tia Clara? Nesse caso, acho que sou um avô…
A porta do abrigo se abriu, revelando Clara. Mas não era a Clara que Juno lembrava. Onde antes havia um casaco surrado e calças desgastadas, agora estava uma figura imponente. Clara vestia um colete preto sob um casaco azul-escuro impecável, com botas novas que pisavam na neve com confiança. Seu cabelo, normalmente despenteado, estava trançado com perfeição, dando-lhe um ar de elegância e autoridade.
— Vocês voltaram! — Clara os saudou, envolvendo Juno em um abraço caloroso. Juno ficou rígida, surpresa com o gesto. — E então, como foi?
Enquanto Degol ajudava Jix a descer do trenó e o acomodava em um banco próximo, Juno encontrou a voz para responder:
— Muita gente envolvida, mas conseguimos. Pegamos tudo do Duna.
Meliah e Degol pegaram as caixas e as levaram para dentro do abrigo. Magrot seguiu silenciosamente para o interior, enquanto Arsena se jogava em um banco próximo, suspirando antes de pegar uma fruta do cesto mais próximo. Os refugiados ao redor a cumprimentaram com sorrisos e acenos, algo que ela devolveu com um olhar desconfiado.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Arsena, gesticulando para a cena ao redor. — Alguma festinha?
Clara riu, um som raro e sincero.
— Na verdade, sim. Estamos celebrando os aniversários do mês.
Juno permaneceu onde estava, observando a alegria que irradiava das pessoas ao redor. Apesar da tempestade incessante, havia calor ali — nas conversas, nos sorrisos, no trabalho em conjunto. Por um momento, ela desejou permanecer ali, junto a Clara e Arsena, longe do peso que carregava.
Mas então, a voz em sua mente se fez ouvir, fria e desprezível:
— Humanos e suas distrações patéticas. — Era Veronica, a presença indesejada que nunca deixava de oferecer suas opiniões ácidas. — Celebrar o giro de um planeta em torno de uma estrela… Que profundidade, que relevância.
— Talvez você devesse aprender a respeitar o que é importante para eles — Juno retrucou em pensamento.
A entidade bufou.
— Essas trivialidades apenas criam laços frágeis. — Veronica fez uma pausa, e sua voz assumiu um tom de escárnio quando Dante apareceu na porta, carregando uma mesa pesada com aparente facilidade. — E esse homem? Ainda tentando encontrar um lugar ao qual pertença… Que piada patética.
Juno não respondeu. Apenas observou Dante, o rosto sério, mas os gestos cuidadosos enquanto posicionava a mesa no lugar. Ele não parecia ouvir os risos ou sentir o calor ao redor. Mesmo assim, estava ali, parte da cena, como se tentasse provar a si mesmo que pertencia.
— Ele parece diferente.
As palavras de Juno foram simples, mas carregadas de uma inquietação que ela ainda não sabia nomear.
— Não apenas diferente — respondeu Veronica, a IA que habitava sua mente, com seu tom usual de desdém. — Eu enfrentei esse monstrinho antes. Aquele sorriso dele não era só estranho; era perturbador. Mas o fogo que ardia nele… Esse, sim, me deu calafrios.
À distância, Dante estava no centro de uma roda de moradores. Sua risada ecoava entre os refugiados, uma raridade que parecia iluminar o ambiente tanto quanto o fogo nas fornalhas. Ele trocava piadas e comentários, mas seus olhos vagaram até encontrar os de Juno. Ele acenou para ela, um gesto casual, acompanhado de um sorriso que parecia quase fraternal.
Juno se afastou de Clara e Arsena, sentindo os olhares das duas enquanto atravessava o pátio. Quando alcançou Dante, ele a conduziu para longe do burburinho, os braços cruzados, seu semblante mais sério agora.
— E então? Como foi? Encontraram o Felroz?
— Não, senhor. — A decepção era clara na voz dela. — Parece que ele fugiu. Achei que encontraria algum rastro, mas a neve apagou tudo. — Ela hesitou, lembrando-se da sensação amarga de um confronto perdido antes mesmo de começar. — Mas havia soldados de GreamHachi lá. Muitos. Eles estavam atrás do velho Duna, da Arsena e do Magrot. Foi estranho lutar contra alguém que não fosse você.
Dante riu, um som curto, quase abafado, como se compartilhasse de uma piada privada.
— Isso vai se tornar mais comum, Juno. — Ele balançou a cabeça, como se lamentasse por ela. — Eu deixei que fosse justamente para isso: sentir o perigo, a adrenalina de uma batalha real. É algo que nenhum treino pode replicar. Tenho certeza de que viu algo novo. Não se assuste; sempre haverá algo assim, algo que desafiará o que você conhece.
— O senhor também passa por isso?
Dante fez uma pausa, o olhar se perdendo por um instante, como se visse algo além das paredes do abrigo.
— Sempre. — Sua voz carregava uma gravidade que fez Juno estremecer. — Quando fui a GreamHachi, encontrei alguém que podia fazer meu maior medo tomar forma diante de mim. — Ele sorriu, mas havia algo doloroso naquele sorriso. — E demorei mais do que gostaria para vencê-lo.
Juno sentiu uma ponta de vergonha surgir.
— Eu preciso melhorar.
— Sempre precisamos. — Dante deu um leve tapinha no ombro dela. — Por isso treinamos. Agora, vá comer.
Na mesa, Juno encontrou rostos familiares. Simone estava ali, ao lado de Clerk, cuja esposa segurava nos braços um bebê recém-nascido. A visão trouxe um calor inesperado ao coração de Juno, uma lembrança do que ainda havia para proteger neste mundo. Mas outros rostos eram novos.
Gerhman estava em conversa com Cerberus e um homem chamado Leonardo. Este último chamou a atenção de Juno. Havia algo nele, uma energia diferente, que a fez sondá-lo instintivamente. Quando os olhos dele encontraram os dela, Juno recuou, como uma criança pega em flagrante. O olhar penetrante de Leonardo a fez corar de vergonha.
— Idiota — murmurou Veronica, sua voz um veneno escorrendo pela mente de Juno. — Você precisa aprender a identificar os mais fortes dos mais fracos. Pare de ver com os olhos, garota. Use a Energia Cósmica.
E descobriu logo em seguida que Leonardo era mais do que somente um novo morador, era um que veio diretamente de GreamHachi. Ouviu de Gerhman, contando na mesa de forma casual, como era a vida das pessoas dentro do Aquário Feudal.
E todos os moradores pararam para ouvi-lo. Juno, entretanto, ficou fascinada como uma cidade tão grande tinha tantos problemas ao mesmo tempo. Então, procurou por Dante, o encontrando parado na porta com Clara.
Os dois conversavam baixo, com a mulher explicando algo de maneira mais firme, e Dante concordando com o papiro que ela segurava.
— Eles estão falando sobre água e energia – ouviu de Veronica. – E querem tentar criar uma colonia. Precisam de cabos e também de uma fonte de energia. – Ela fez uma pausa. Juno não conseguia ler os lábios deles, mas Veronica sim. – Ah, e também querem forjar casas no meio dos prédios destruídos. Entendi. Faz sentido. Essa humana não é tão idiota assim.
— Clara é inteligente e forte.
— Você fala isso de todo mundo, e sempre está errada.
Não. Juno tinha certeza de que Clara era muito mais do que só uma mulher qualquer. Ela era inteligente, e queria ser parecida com ela quando a via falar com Dante daquela forma. Ele sequer contrariava.
Veronica deu uma risada.
— Você precisa correr muito pra chegar até aqueles dois, garota.
— Eu sei disso. Sei muito bem disso.
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