Capítulo 163: Criando Paredes
Cerberus parou no coração de um emaranhado de ruínas, onde seis prédios caídos formavam uma muralha acidental. As vigas retorcidas de aço e os arremedos de madeira sustentavam as partes mais frágeis, criando uma estrutura precária, mas resistente o suficiente para desafiar a fúria do inverno. Ali, os telhados colidiam uns com os outros, barrando a maior parte da neve e do vento.
Clara havia apontado o lugar como um potencial abrigo, e Cerberus, após sua inspeção, não poderia discordar. Era um espaço vasto, protegido de forma rudimentar, com corredores improvisados pelas colisões entre os edifícios. As ramificações nos andares superiores formavam um labirinto de portas e janelas, muitas delas destruídas ou fora de lugar, mas ainda úteis.
Do outro lado do complexo, um prédio solitário inclinava-se na direção do Reservatório, como um dedo apontando o caminho para a água. Cerberus avaliou a possibilidade de reformar aquela área e aproveitar o subterrâneo para criar um acesso direto. A ideia era ambiciosa, mas não impossível, especialmente se tivesse apoio.
Abaixou-se para pegar a luminária a óleo que deixara no chão. A chama tremulou ao vento enquanto ele seguia de volta pelo caminho de onde viera. A rua, deserta e silenciosa, era um lembrete constante da solidão daquela cidade devastada. Ainda assim, havia algo no destino final, no abrigo, que acelerava seus passos.
Quando avistou a luz fraca piscando entre a neblina branca do inverno, um sorriso escapou de seus lábios. Não era muito, mas era suficiente para guiá-lo de volta.
Chegando ao fundo do abrigo, Cerberus bateu o pé contra um tapete de pedra, sacudindo a neve. Ele apagou a luminária e empurrou a porta, que rangeu sob o esforço, mas o som foi abafado pela discussão que ecoava lá dentro.
— Estou dizendo que essa ideia é um erro — Clara argumentava, sua voz cortando o ar frio como uma lâmina. — Temos pessoas para cuidar, Dante, e não podemos desperdiçar recursos procurando brigas.
Dante, imóvel como uma estátua, a encarava com olhos semicerrados, mastigando um caule entre os dentes.
— E eu estou dizendo que ter Marcus na torre é um benefício — respondeu ele, com uma calma que parecia mais irritante do que reconfortante. — Ele pode cobrir uma área ampla.
Clara bufou, exasperada.
— Por que você é tão teimoso?
Dante revirou os olhos, desviando o olhar. Foi então que ambos perceberam Cerberus parado à porta, a luminária ainda em sua mão e a outra levantada em um cumprimento hesitante.
— Não quis interromper — disse ele. — Querem que eu dê a volta pela entrada da frente?
— Não é necessário — Clara respondeu, com um tom firme, mas cansado. — Já terminamos.
Ela saiu pisando firme, deixando Dante e Cerberus sozinhos. O velho mascava o caule com uma expressão de desdém velado, que ele logo substituiu por um gesto casual ao tirar algo do bolso.
— Luma deixou isso para nós. — Ele estendeu o caule para Cerberus. — Vai querer um?
Cerberus colocou a luminária em um suporte na parede, observando a pequena ponta de ferro que pendia do objeto com uma curiosidade quase infantil.
— O que foi? — Dante perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Cerberus perguntou enquanto os dois subiam os degraus desgastados da escadaria, suas vozes abafadas pelo eco dos passos.
— Ela acha que precisamos focar exclusivamente na reconstrução do abrigo — respondeu Dante, o tom de sua voz distante, mas não desdenhoso. — Quer que todos fiquem juntos, acredita que isso nos dará mais força para lidar com tudo.
Ele fez uma pausa, ajustando o caule entre os dentes antes de continuar:
— Clara está sobrecarregada. Ela tenta manter tudo em ordem, mas sem alguém para cuidar do lado de fora, nada disso vai durar.
Cerberus assentiu, compreendendo finalmente a lógica de posicionar Marcus na torre de rádio.
— E por que não explicou isso para ela exatamente assim?
— Tentei — Dante respondeu, sem disfarçar o cansaço. — Mas Clara gosta de reclamar. E de discordar.
Os dois chegaram ao segundo andar, mas continuaram subindo, seus passos firmes ecoando pelos corredores quase vazios. No nono andar, as luzes eram mais fracas, piscando de vez em quando devido ao mau estado dos fios. Ali, o ambiente era menos habitado; a maioria dos moradores e trabalhadores preferia os andares inferiores, onde o calor e a luz eram mais abundantes.
Ao atravessarem o corredor, encontraram Magrot, o homem cuja metade era carne e a outra, metal, caminhando em direção ao prédio onde Duna os esperava. Cerberus acenou com a cabeça em cumprimento silencioso, mas Magrot não retribuiu com o mesmo silêncio.
— Estava procurando por vocês — disse ele, direto como sempre. — Podemos conversar lá dentro? Tenho algumas coisas para discutir.
— Claro — Dante respondeu, indicando com um gesto que ele fosse na frente.
O “Império de Duna”, como o próprio Duna chamava seu domínio caótico, era um espaço repleto de quinquilharias espalhadas em pilhas irregulares. Dois dias antes, o próprio Duna havia pedido a Cerberus que erguesse uma parede para pendurar uma tocha e organizar alguns de seus projetos.
Cerberus fizera o que lhe pediram. A parede, sólida e funcional, agora servia como uma galeria improvisada para os inúmeros papéis de Duna. Esboços de armas, esquemas de equipamentos robóticos — semelhantes aos que Magrot usava — e até plantas de casas estavam presos ali.
Enquanto Dante e Magrot começavam a conversar, Cerberus aproximou-se da mesa de Duna, examinando os papéis pendurados na parede. Seu olhar parou em um conjunto de desenhos à direita, suas linhas detalhadas e elegantes capturando sua atenção.
— Interessado em algo? — A voz rouca de Duna cortou o silêncio. Ele surgiu de trás de uma pilha de tralhas, segurando um tubo de ensaio com um líquido azul brilhante que borbulhava suavemente. — Pelo preço certo, posso fazer maravilhas.
— Não estou interessado em nenhuma das suas criações — respondeu Cerberus, sem tirar os olhos dos desenhos. Ele ergueu a mão, apontando para os projetos de casas à direita. — Mas quero saber… De onde você tirou a ideia para construir uma casa nesse estilo?
Duna inclinou a cabeça, um sorriso astuto iluminando seu rosto enrugado.
— Ah, essas? — Ele balançou o tubo de ensaio distraidamente. — São inspirações antigas. Modelos de um mundo que já não existe. Mas se você estiver pensando em algo… especial, posso adaptar para o nosso tempo.
Cerberus não respondeu imediatamente. Seus olhos continuaram presos aos desenhos, enquanto uma ideia começava a tomar forma em sua mente.
— Consegue refazer esse formato triangular em cubos menores?
Cerberus perguntou enquanto sua mão buscava um lápis entre os livros e papéis desordenados na mesa. Ele deu dois passos adiante, circulando um dos projetos com o dedo, apontando para o desenho de uma casa com cinco cômodos, cujas paredes e tetos eram ajustados de maneira peculiar.
— E pode tentar uma casa com dois quartos em um espaço de três metros de corredor?
O interesse de Duna foi imediato. Ele largou a vidraria que analisava com atenção e arrancou o lápis da mão de Cerberus com um movimento rápido, exibindo os dedos metálicos de sua prótese.
— Primeiro, você não desenha nos meus projetos — reclamou, bufando, enquanto começava a rabiscar em outra parte do papel, ajustando as medidas e distâncias. — Segundo, quem você acha que eu sou?
Ele continuou rabiscando, mais rápido agora, enquanto resmungava:
— O que você quer é fácil demais. Ainda mais pra mim. Vai, fala logo. É pro lugar novo? Todo mundo parece cheio de ideias ultimamente.
— Sim, é pra lá — respondeu Cerberus, observando as mãos de Duna trabalharem com precisão quase inumana. — Pensei em criar um sistema de casas menores, unidas lado a lado, mas separadas por um espaço estreito, interligadas por um corredor.
Duna parou de desenhar e ergueu os olhos, lançando-lhe um olhar carregado de ceticismo.
— Você tá falando de apartamento? É isso?
Cerberus hesitou, erguendo as mãos como se não soubesse ao certo.
— Não sei.
Do outro lado da sala, Dante se aproximou da mesa. Ele se sentou na cadeira destinada aos visitantes, o corpo relaxado, mas os olhos atentos.
— Não é uma ideia ruim — disse ele, balançando a cabeça. — Um apartamento é uma construção que normalmente vemos em prédios residenciais. Algo antigo, Heian, mas eficiente. Talvez você não tenha visto antes porque, aqui, tudo era voltado para grandes empresas.
Duna acenou para Dante, o interesse voltando ao seu rosto envelhecido.
— Um lugar desses não é difícil de fazer, se tivermos as medidas certas — explicou ele. — Mas vai precisar de muita mão de obra. Bastante mesmo. E também de alguém que fique responsável por criar os esboços. Aqueles prédios estão há anos sem nenhum tipo de reparo. Vai precisar de ajuda.
Cerberus não respondeu de imediato. Ele já tinha alguém em mente para a tarefa.
— Posso, Dante?
Dante deu de ombros, o canto dos lábios curvando-se em um leve sorriso.
— A casa é sua, rapaz. Só avise a Clara antes de fazer qualquer coisa.
Com um sorriso no rosto, Cerberus virou-se e caminhou em direção à saída, a mente já fervilhando com os próximos passos.
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