Capítulo 164: A Proposta
A neve caía suavemente, cobrindo as ruínas da cidade com uma camada fina e brilhante. Dentro do abrigo, Cerberus ainda sentia o fraco e frio vento adentrando pelas janelas. Mesmo tendo sido reparadas, ainda não eram suficientes para tapar completamente o esguio frio.
Ele desceu até o sétimo andar, com uma certa pressa, mas parou quando girou no próprio eixo na direção da sala de reunião.
À sua frente, Gerhman e Leonardo Vulkaris discutiam. Os dois pareciam próximos demais, ainda mais próximos do que Leonardo um dia tinha sido de Cerberus. Não conversava com ele normalmente, nem tocava no seu passado ou no que um dia foi prometido a ele.
De certa forma, seu coração ainda não havia perdoado os anos que passou sendo feito de carrasco na hidrelétrica.
Cerberus pigarreou, chamando a atenção dos dois.
— Precisamos conversar.
Leonardo foi o primeiro a erguer os olhos, estudando o homem à sua frente com curiosidade.
— Sobre o quê?
Cerberus respirou fundo, buscando a coragem que tantas vezes lhe faltava.
— Sobre um prédio residencial… ou algo assim. Duna falou que é possível criar um, e Dante me deu a liberdade para fazer. Eu estive indo checar o lugar todo dia.
Gerhman cruzou os braços, interessado.
— Estávamos falando sobre isso recentemente com Clara, mas não conseguimos nenhuma ideia boa.
— Estive pensando — começou Cerberus, a voz mais firme agora. — Há muitos prédios desabados, materiais espalhados por toda parte. Isso é um problema, mas também pode ser a nossa solução. E se construíssemos algo em forma de cuba, uma estrutura que pudesse ser reforçada com os restos dos prédios caídos?
Leonardo arqueou uma sobrancelha.
— Uma cuba? Por quê?
Cerberus deu um passo à frente, os olhos brilhando com uma ideia que parecia crescer dentro dele.
— Porque é eficiente. As paredes inclinadas da estrutura ajudariam a distribuir o peso de forma uniforme. Já vamos ter uma base de toda a estrutura montada, e não vamos precisar nos preocupar com o clima. É quase nulo lá dentro. Poderíamos usar os destroços como cobertura, criando camadas que ajudassem no isolamento térmico.
Gerhman estreitou os olhos, considerando.
— Foi naquele lugar que fomos encontrar o pessoal novo na semana passada?
Cerberus apontou para o horizonte, onde uma série de prédios semidestruídos formava uma espécie de corredor natural.
— Exato. Daqui dá pra ver toda a forma dele. Eles caíram bem encaixadas. Vai dar para alocar essas placas solarem que me explicaram outro dia em cima, talvez criar um tipo de cobertura.
Cerberus parecia bem agitado, e reparou nisso também. A ideia, somente essa pequena ideia, de construir um lugar que seria considerado seu lhe enchia de ansiedade.
Lutar tanto tempo do lado de fora por algo que nunca veio. Nove anos, nove malditos anos, e nada além de uma mentira contada a tempestade. Ainda ficava com vergonha de lembrar. Precisou que Dante o surrasse para lhe trazer de volta a realidade.
— E o propósito? — perguntou Gerhman. — Vai ser um agrupamento geral ou só um tipo de estalagem? Precisamos de lugares para fornalha, pelo que Degol disse. E também um armazém. Talvez, uma oficina.
Cerberus balançou a cabeça.
— Eu… pensei apenas no abrigo por agora. E tenho mais outra ideia.
— Diga – Leonardo pediu. — Coloca tudo que está na sua mente pra fora agora.
Cerberus encolheu sua felicidade e falou com mais calma. Ele comentou sobre o prédio que fazia ligamento com o Reservatório, e que se fosse expandido, também seria um caminho bem usado para terem água, mas que o correto seria criar uma espécie de túnel onde a água deveria vir para terem mais contato.
Ele disparou todas as três ideias. O rosto dos dois não foram das mais apreensivas, mantendo um tom mais pensativo. E houve um momento de silêncio, apenas o som do vento batendo nas lonas nas janelas. Leonardo finalmente falou, sua voz grave, mas não desprovida de interesse.
— É uma ideia ambiciosa. E perigosa. Atrairia atenção, tanto boa quanto ruim.
— Sei disso. Mas, se não fizermos nada, só esperaremos pelo fim.
Os dois ponderaram juntos, como se estivessem praticamente buscando a solução para um problema que ainda estava distante.
— Vai precisar de muita mão de obra. E recursos.
— Temos gente disposta. E os recursos estão ali, nos destroços. É só questão de organizar — rebateu Cerberus.
Leonardo deu um pequeno sorriso, cruzando os braços.
— Você está aprendendo rápido, garoto.
— Não sou garoto — respondeu Cerberus, sem humor.
Gerhman riu baixo, balançando a cabeça.
— Vamos pensar nisso. Se você estiver disposto a liderar esse projeto, podemos considerar.
Não esperava por isso. Ele tinha selecionado por ambos? Não. Queria apenas que um deles pudesse ter um papel mais fundamental, isso faria com que as coisas fluíssem melhor.
— Nunca… fiz nada disso antes. Não sei fazer.
Leonardo e Gerhman trocaram um olhar breve, antes de Gerhman dar um aceno afirmativo.
— Isso não é difícil de aprender, Heian. O difícil é não aprender nada de novo quando a chance está na sua frente. Se quer ajuda para desenvolver, nós podemos fazer isso. Mas, você precisa definir tudo que pode e o que deve acontecer. Primeiro de tudo, você deve convencer Clara.
O nome dela era bem falado, sempre. Mesmo não a encontrando muitas vezes durante o dia, tudo passava por ela. Tudo. Então, ela a última pessoa. Que fosse, ele iria.
O vento assobiava como um espírito inquieto sobre as alturas de Kappz, chicoteando o topo do prédio mais alto.
Juno estava lá, observando a paisagem de destroços que se estendia até onde a vista alcançava. Das alturas, ela podia avistar as estruturas tombadas que marcavam o horizonte como os ossos expostos de uma criatura morta. Estava ali há horas, rastreando um dos Felroz, mas tudo o que encontrou foram pequenos animais selvagens e rastros apagados pela neve. Nem no Leste, nem no Norte.
A voz de Veronica veio como um sussurro venenoso, surgindo sem aviso em sua mente.
— Ainda vai seguir as ordens dele de se limitar a esse espaço?
Juno virou o rosto instintivamente, e lá estava ela. Sentada ao seu lado, com a mesma expressão zombeteira de sempre. O corpo parecia sólido, real, mas quando Juno estendeu a mão, as oscilações familiares apareceram, distorcendo os contornos de Veronica.
— Sabe que não estou aqui, idiota — disse a figura, o tom de voz carregado de sarcasmo.
— Mesmo assim, fico impressionada sempre que faz isso — murmurou Juno, recostando-se contra a parede de concreto frio.
Há uma semana, Juno havia despertado em seu colchão para encontrar Veronica encarando-a friamente. Sua reação foi rápida: desferiu um soco na direção dela, apenas para acertar o vazio e bater o cotovelo na parede. Desde então, a figura aparecia com frequência, mais sólida, mais presente, sempre com um comentário ácido ou uma provocação velada.
— Impressionada por ver a IA que vive na sua cabeça? — Veronica cruzou as pernas, o olhar fixo em Juno como uma lâmina afiada. — Sabe, é uma bela maneira de passar o tempo: te observar fazer merda ou nada o dia inteiro. Vai continuar seguindo as ordens daquele velhote ou prefere que eu te ensine algo útil? Não é pra isso que estou aqui, afinal?
Juno apertou os lábios. Desde que Veronica havia se instalado em sua mente, conversar com ela era como andar sobre cacos de vidro. Cada palavra podia ser um ataque ou uma verdade dolorosa. Nos primeiros dias, a IA era quase muda, uma presença fantasmagórica que mal se manifestava. Mas desde o retorno de Dante de GreamHachi, Veronica se tornara mais ativa, mais incisiva. Havia algo escondido em suas intenções, disso Juno tinha certeza, mas ainda não conseguira decifrar.
— E o que quer me ensinar? — perguntou finalmente, mantendo o tom neutro.
Veronica riu, uma risada curta e afiada, antes de se inclinar para frente, os olhos brilhando como brasas.
— O que você acha, sua garota estranha? — Ela a fitou com um fervor que parecia queimá-la. — Conheço tudo o que esse mundo já passou. Cada técnica, cada detalhe sobre como caçar. Mas você ainda procura um Felroz como se fosse um coelho esperando ser encontrado.
— Se quisesse me ensinar, teria falado antes — retrucou Juno, tentando esconder o desconforto.
— Por que eu ensinaria alguém que mal sabia segurar uma arma? — Veronica puxou o joelho para perto do rosto, os lábios curvados em um meio sorriso cruel. — Se tem tanta confiança em se proteger, então, vamos fazer isso, só nós duas. Quer aprender a caçar? Então vou te mostrar como se caça um Felroz.
A promessa pairou no ar como um desafio. Veronica estava sempre no limite entre a provocação e a manipulação, mas, pela primeira vez, Juno sentiu uma fagulha de curiosidade e… esperança. Talvez, apenas talvez, houvesse algo que ela pudesse realmente aprender. Mas, não queria confiar nela totalmente.
Ainda existia um pingo de desconfiança quando a IA tentava ser produtiva. Juno teria cuidado, muito mais do que estava tendo aquele dia.
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