Capítulo 165: A Caça
O vento cortava como lâminas invisíveis enquanto Juno ascendia pelos destroços da cidade.
As correntes elétricas que ela conjurava dançavam como serpentes de luz, agarrando-se às superfícies desmoronadas. Com cada impulso, ela era lançada para o ar, descrevendo arcos sinuosos contra o céu escuro. O som do vento uivava ao seu redor, abafando tudo, exceto os estalos agudos das descargas que a sustentavam.
Finalmente, pousou sobre o topo de um prédio tombado, agora a quase cinco quilômetros do abrigo. Era um lugar isolado, tão distante que nem mesmo Marcus, com sua visão incomum, seria capaz de localizá-la facilmente. Ainda assim, a lembrança de já ter sido vista a quase um quilômetro de distância por ele a fez franzir o cenho.
— Está sentindo o cheiro? — A voz de Veronica ecoou, fria e casual, como se fosse parte do vento.
Juno respirou fundo, mas tudo que encontrou foi o ar gelado e seco, sem vestígios de algo que pudesse identificar.
— Quando eu estava no Centro de Pesquisa, acostumei-me com o cheiro das Pedras Lunares protegendo o ambiente — continuou Veronica, surgindo à frente como uma figura holográfica. Seus passos eram leves, mas carregavam uma autoridade inegável. — Depois que vim para esse seu corpo, deixei de sentir isso com frequência.
Juno fungou, tentando mais uma vez captar algo.
— Está ventando demais para eu sentir qualquer coisa — murmurou.
Veronica arqueou uma sobrancelha, o desdém evidente.
— Continua tentando cheirar como um humano. — Ela deu um passo à frente, o corpo oscilando levemente com a luz que formava sua imagem. — Esse é o mundo que você conhece: físico demais, preso demais ao que seus olhos podem ver. Diferente de vocês, os Felroz não dependem disso. Eles usam o olfato, o tato, o paladar, a audição…
Juno sabia disso. Sabia que os Felroz não tinham olhos, mas esse era o problema: ela tinha.
— Quer que eu fique de olhos fechados? — perguntou, um tom de desafio na voz.
Veronica girou lentamente, a expressão inalterada, como se a pergunta fosse tão insignificante quanto uma folha levada pelo vento.
— Quero que pare de fazer perguntas estúpidas se já sabe a resposta. — Seu olhar, sempre tão frio, parecia carregar algo mais, uma sombra de impaciência. — Feche os olhos e sinta sua Energia Cósmica. Eu vou te ensinar a caçar como uma verdadeira predadora, não como um verme que se lamenta enquanto se arrasta.
Juno bufou, mas fez o que foi ordenado.
— Belo jeito de me ensinar — murmurou, antes de deixar as pálpebras caírem.
A escuridão a envolveu de imediato, uma cortina pesada e opressiva. No entanto, ela não se intimidou. Havia algo diferente naquela noite. Ali, no alto do prédio, a solidão não a assustava mais. O medo, seu antigo companheiro, parecia um eco distante, incapaz de alcançá-la.
— Sua Energia Cósmica não é apenas uma ferramenta — disse Veronica, sua voz deslizando como uma lâmina afiada. — É um sentido. Algo que transcende o corpo que você tanto se apega. Você a trata como uma marionete, mas deveria deixá-la dançar por si mesma.
Ela se inclinou, aproximando-se do ouvido de Juno, o sussurro quase como um segredo que o vento não deveria ouvir.
— Use-a como um sentido.
Foi como uma ordem direta ao âmago de Juno. Ela sentiu a Energia Cósmica despertar, não como uma força subjugada, mas como uma entidade viva dentro de si. Era um movimento estranho e visceral, um fluxo que subia por sua garganta em um percurso nada natural. Como filamentos de luz líquida, a Energia serpenteava por dentro dela, entrelaçando-se aos canais respiratórios, dançando em cada orifício até alcançar a ponta de seu nariz.
Juno respirou fundo, e o mundo mudou.
Um turbilhão de odores invadiu sua mente. Não era mais apenas o frio cortante, o cheiro metálico da neve ou a umidade das roupas coladas ao corpo. Havia algo mais profundo, mais selvagem: o ferro quente do sangue, a amargura do queimado, e uma nota ácida, cortante, que só poderia ser descrita como medo.
Seus olhos se abriram abruptamente. O que antes era apenas a visão comum de uma cidade devastada, agora se revelava em um mosaico pulsante, uma sinfonia de estímulos que ela nunca havia percebido. A escuridão da tempestade de neve tornou-se translúcida, como se a Energia Cósmica que escapava de seu peito desenhasse um mapa invisível no ar. Era um sonar, uma teia viva conectando-a ao mundo.
— Seu olfato está mais apurado agora — comentou Veronica, observando-a com um misto de orgulho e desdém. — Deve ser capaz de sentir o sangue, e onde há sangue, há os Felroz.
Juno olhou para o fio dourado que escapava de si, cintilando como um raio capturado. Ele se estendia, serpenteando pelo ar, até se misturar a um vermelho escarlate que pulsava no horizonte. Era um traço vibrante, quase palpável, que cortava a escuridão como um farol na tempestade.
Ela não precisava de mais instruções. Na outra ponta daquele rastro, esperava seu alvo. Sua verdadeira caça.
Juno apertou os punhos, o frio esquecido, os medos silenciados. A caçada havia começado.
Novamente, Cerberus parou no meio daquele amontoado de prédios. Ficar no meio dele com sua lamparina não era tão solitário quanto quando protegia a hidrelétrica. Ali, pelo menos, havia reconhecimento.
Ele fechou os olhos, respirando profundamente. Precisava… não era essa palavra. Queria, isso, ele queria uma habilidade na qual pudesse entregar o planejamento dos prédios. Só não podia deixar essa sensação ir embora, a mesma sensação de quando começou, anos atrás, a lutar pela vida que queria poder proporcionar aqueles que se foram.
E por todos aqueles que morreram pelas suas mãos. Essas mesmas pessoas que procuraram uma foram de se abrigar num dos poucos lugares que a civilização humana ainda se mantinha de pé. E a poça de sangue se formava pelos seus lamentos, em cada uma das vidas que tirou quase por uma década completa.
Quantos Dante poderiam ter surgido de lá? Quantas Simone, que sempre cuidava dos mais fracos e enfermos? Quantas mentes vibrantes como Duna? Quantos líderes como Degol e Meliah? Quantas pessoas gentis como Clara Silver morreram apenas por quererem um lugar para se manterem vivos?
Essa conta, somente essa conta, pertencia completamente a ele. Por ser sua própria dívida, sua própria alcunha.
Todos os dias, quando acordava, Cerberus sentia o peso nos seus ombros. Ele queria criar um lugar para que ninguém mais sofresse. E se ele perdesse a vida por isso…
— Por que está aqui fora sozinho?
Ele abriu os olhos rapidamente. Procurou pela voz, mas não a encontrou. Pegou a lamparina a óleo, erguendo na tentativa de ver mais adentro do breu.
— Quem está ai?
— Eu quem deveria perguntar o porquê você está aqui. — De um canto, Marcus surgiu com sua carabina, na tonalidade da própria neve. E mesmo assim, Cerberus não o notou nem em presença e nem em voz. — Por que está querendo se matar?
Não esperava essa pergunta do nada.
— Por que acha que quero isso?
— Sempre que vem aqui, você fica olhando para as paredes, para o teto. Pode querer mudar esse lugar, mas quer fazer isso de uma só vez. — Marcus subiu em cima de uma grade, e sentou-se colocando as pernas na direção dele. — E quando fecha os olhos, seu coração diminui o ritmo, esperando que acontecesse algo. Está esperando ele parar de bater?
— Não estou querendo morrer — afirmou Cerberus, sério. — E nem te devo satisfações do porquê eu estou aqui.
— Não deve? — O atirador fez a pergunta em um tom solene. — É dessa forma que quer jogar? Então, me responde, por que está aqui? É pra ter um lugar?
— Estou aqui por Dante.
Ele ouviu o seco som da trava da carabina desarmando. E por algum motivo, o ruído era alto o suficiente para lhe dar certo calafrio. Marcus era o braço direito de Clara, e poucas vezes se encontrava no abrigo. Juno e ele preferiam ficar do lado de fora, mas já tinha ouvido, até do próprio Magrot, que o atirador era um homem difícil de lidar.
— Resposta errada. Dante pode ter te tirado daquele lugar de merda, mas você faz suas próprias escolhas. Soube que quer reformar, então, vou perguntar de novo, e caso diga mentira, eu vou acertar uma bala bem no meio da sua testa.
A carabina foi se erguendo, lentamente.
— Por que você está querendo se matar?
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