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    — Está falando sério sobre isso? — Heian cruzou os braços, a incredulidade clara no rosto. — Me mataria só porque eu não quero dizer o que estou pensando?

    A carabina de Marcus ainda não estava apontada, mas a simples ideia de que sua trava havia sido puxada era o suficiente para manter Cerberus em alerta. Ele sabia, como todos sabiam, o que aquela arma representava. Magrot o havia avisado com palavras frias e diretas:

    “O Atirador foi quem me derrotou antes do velho me acertar.”

    Cerberus sabia que aquela arma era a responsável por subjugar o homem de aço. Mas não era apenas o objeto que o inquietava. Era a história por trás dele. A lenda de Marcus era tão temida quanto o próprio homem.

    — Um homem que não fala o que pensa guarda até seus piores medos consigo — disse Marcus, a voz tão calma que parecia fora de lugar diante da tensão. — Estou te dando uma chance de tirar qualquer idiotice da cabeça. E, melhor ainda, de entender o que diabos está fazendo aqui.

    — Eu já disse.

    — Não, não disse a verdade. — A resposta veio acompanhada de uma pausa carregada de significado. Marcus não tinha pressa. Ele nunca tinha. — Eu sinto quando alguém está mentindo, quando alguém fala apenas para preencher o silêncio. Se quer seguir com isso, então minta.

    Cerberus respirou fundo. Ele é mais extremista do que eu poderia imaginar.

    — E então? — Marcus insistiu, a carabina ainda repousando nas mãos, mas a ameaça latente. — Por que veio para cá? Qual é a sua intenção?

    — Construir um abrigo.

    Cerberus observava, tentando entender até onde Marcus iria com aquele jogo perigoso. A ideia de apontar uma arma para fazer alguém se abrir parecia absurda, mas, de algum modo, ele sentia que Marcus fazia aquilo não por impulso, mas por método.

    — E por que quer morrer? — Marcus inclinou a cabeça, a pergunta soando quase casual, mas o olhar perfurante. — Acha que morrer vai te salvar desse mundo cheio de merda?

    — Eu acredito que minha vida não vale metade do que as vidas daqueles que estão lá no abrigo. — Cerberus fixou o olhar em Marcus, recusando-se a ceder, mesmo sabendo que o atirador o estudava como um predador estuda sua presa. — Quer saber por que dizem que as boas pessoas acabam se fodendo mais do que deveriam? Porque elas são boas demais. Isso acontece.

    Ele hesitou por um instante, mas continuou:

    — Eu sou um fruto de Rapier, uma cidade que nunca foi nada além de…

    — Me poupe da sua história. — Marcus o interrompeu, cortando suas palavras como uma lâmina.

    Cerberus apertou os lábios, o queixo endurecendo.

    — Como quer que eu seja verdadeiro com você se não conhece minha história? Se não sabe quem eu sou?

    — Uma história é apenas isso: uma passagem do que fomos, não do que somos. — Marcus não se moveu, ainda sentado na grade como um rei observando seu súdito. — Se eu pergunto o que você quer agora, não preciso saber do seu passado.

    A voz de Marcus soava firme, mas havia algo quase filosófico em suas palavras.

    — Um homem pode ter cometido um crime há dez anos, mas hoje pode ser outro. Se alguém assassinou seus familiares para poupá-los da dor, ele pode sentir que deve morrer por isso. Se uma mulher busca a vida eterna, mas agora vive como se já a tivesse alcançado, ela também mudou.

    Ele fez uma pausa, permitindo que suas palavras se assentassem como pedras lançadas em um lago.

    — Você não é o mesmo de ontem, assim como um rio nunca é o mesmo em duas estações diferentes.

    Cerberus permaneceu em silêncio, sentindo o peso das palavras de Marcus. Não era errado pensar que uma pessoa poderia mudar apenas por acreditar que era bom, mas tudo era abstrato demais. Ele não poderia dizer que aquelas pessoas fizeram o mesmo que ele, nem mesmo uma fração do que um dia invocou contra seus inimigos.

    E então, Marcus falou mais uma vez, a voz carregada de um peso que parecia mais velho que ele mesmo:

    — Se naquele dia você tivesse vencido Dante — o que, sinceramente, não consigo imaginar nem nos seus sonhos mais delirantes —, não seria você quem estaria mudado, e sim ele. Entende o que estou dizendo? Suas escolhas determinam quem você é, não sua história. Eu conheço sua história, Cerberus, mas você está jogando seu presente e futuro no lixo porque não consegue se desvincilhar dela.

    Para ele, parecia fácil dizer aquelas palavras.

    — E você? — retrucou Cerberus, o tom carregado de desafio e ressentimento. — Já fez algo que te assombra até hoje, algo de que não consegue fugir?

    O Atirador não respondeu de imediato. Cerberus pensou que ele mentiria, como tantos outros faziam. Afinal, era isso que as pessoas faziam, não? Fugiam da realidade por vergonha ou medo. Era exatamente o que ele mesmo estava fazendo agora.

    Finalmente, Marcus quebrou o silêncio:

    — A história se repete sempre que você tenta crescer. Um homem só se torna um homem quando amadurece. — Ele segurou a arma em seu colo, os dedos deslizando pelo cabo de madeira como quem acaricia uma memória. — E eu amadureci cedo demais.

    Ele ergueu a carabina, mostrando-a a Cerberus.

    — Esta é a arma que meu pai mais usava. Ele a carregava em todas as caçadas, me ensinando a ser como ele. Um caçador, um soldado… o homem que ele nunca pôde ser.

    A carabina ISE era robusta, marcada pelo tempo e pelo uso. Seu entalhe e mecanismo antigos contrastavam com a tecnologia mais avançada que Duna poderia facilmente criar para Marcus. Mas era evidente que aquela arma era mais que uma ferramenta: era uma lembrança.

    — Matei meu pai com esta arma.

    O impacto das palavras atingiu Cerberus como um golpe. Ele piscou, a mente girando como se o peso do céu tivesse caído sobre ele. Fechou os olhos por um instante, tentando encontrar equilíbrio.

    — O que foi? — perguntou Marcus, o tom carregado de uma diversão sombria. — Não esperava ouvir isso?

    — Não. Claro que não.

    Cerberus não sabia dizer por que aquilo o abalava tanto. Talvez porque Marcus Lima, o atirador, não fosse apenas um homem letal, mas também um assassino — e, de algum modo, isso parecia terrivelmente familiar.

    — Todo mundo já matou alguém antes — disse Marcus, com a naturalidade de quem fala sobre o tempo. — Nunca foi uma questão de certo ou errado. Meu pai estava à beira da morte. Ele pediu ao filho de oito anos que acabasse com seu sofrimento. “A dor vai embora”, foi o que ele me disse naquela noite. Você acha que eu podia negar o pedido de um homem que só queria descansar?

    — Ele… era seu pai.

    — Exatamente. — Marcus inclinou a cabeça, os olhos avaliando Cerberus. — Mas isso faz de mim um assassino? Assim como você se chama de assassino? Isso é só mais uma idiotice que você inventa para se punir.

    Marcus se levantou da grade, recuando alguns passos enquanto segurava a carabina com as duas mãos.

    — Me diga, Heian, o que é mais difícil? Lutar para ser uma boa pessoa ou tirar a própria vida achando que isso vai apagar sua maldade? — Ele abaixou a arma lentamente, mas sua postura continuava alerta. — Mesmo que você morra, seus pecados não vão desaparecer.

    — E se eu continuar vivo? — murmurou Cerberus.

    — Eles vão permanecer com você, é claro. — Marcus deu uma risada seca, sem humor. — Morrer é fácil demais. É o caminho dos fracos. Quer ser forte? Continue vivendo. Continue ajudando os outros. Deixe essa ideia estúpida para trás.

    Cerberus o observou dar as costas, os passos firmes na direção do escuro.

    — Você fala mais do que me falaram — disse ele, a voz saindo mais alta do que pretendia. — Bem mais.

    Marcus parou por um momento, sem se virar.

    — É exclusivo para quem insiste em pensar idiotices longe de casa. E eu preciso estar em outro lugar agora.

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