Capítulo 168: Sem Hesitar
O pai se inclinou, a carabina descansando em seus braços como um tesouro antigo, sua madeira polida refletindo o brilho tênue da lâmpada acima.
— Sabe qual era o maior sonho do seu pai? — Vinicius Lima perguntou, sua voz carregando o peso de quem já havia vivido e perdido muito. Ele ergueu a Carabina ISE, colocando-a com cuidado no suporte de ferro sobre a mesa. Era como se estivesse apresentando uma relíquia sagrada a um aprendiz destinado a guardá-la. — Que, quando você crescesse, conseguisse usar esta arma melhor do que eu.
O pequeno Marcus, sentado em uma cadeira grande demais para ele, olhava para o pai com olhos curiosos. Ele observava cada movimento de Vinicius como se fossem lições escritas em pedra, gravadas em um pergaminho invisível que só ele podia ler.
— Sabia disso? — continuou Vinicius, sua voz suavizando ao perceber o fascínio do filho. — É uma arma muito boa, bem-feita. Melhor ainda, não precisa de munição.
Ele passou o pano com precisão ao longo do cano, como um pintor cuidando de sua obra-prima. De tempos em tempos, lançava um olhar de soslaio para Marcus, que parecia beber cada palavra, cada gesto.
— Precisa cuidar dela como se fosse sua própria filha ou filho — disse Vinicius, o tom grave, mas repleto de ternura. Havia uma seriedade ali, algo que Marcus não compreendia totalmente, mas que sentia como uma pedra no fundo do estômago. — Tem que ter carinho, cuidado e respeitar. Assim sou com você, sabia?
Marcus assentiu lentamente, os olhos ainda fixos nas peças desmontadas da arma sobre a mesa.
— E, acima de tudo — Vinicius abaixou o cano, deixando o pano repousar sobre o ombro. Seus olhos, por um momento, pareceram distantes, como se revisitassem algo que Marcus não poderia alcançar. — Nunca hesite com ela. Sempre respeite sua decisão, não deixe que ela pense que você está em dúvida.
O menino franziu a testa, a curiosidade transbordando.
— Por quê, papai?
Vinicius suspirou, caminhando até o filho. Ele dobrou um joelho, trazendo o rosto para o nível do menino. Sua mão áspera, calejada por anos de luta e sacrifício, repousou suavemente na bochecha de Marcus.
— Porque, se você tiver dúvida… — Ele hesitou, a dor escondida nas palavras que viriam. Era como se o próprio peso delas o esmagasse antes mesmo de serem ditas. — O papai, às vezes, não vai poder estar com você.
Marcus piscou, confuso, mas não questionou. O olhar do pai, carregado de algo que ele ainda não podia entender, dizia mais do que qualquer palavra.
— Precisa saber o motivo de puxar o gatilho, sempre. — A voz de Vinicius endureceu, mas não perdeu o calor. Era o tom de um comandante preparando um soldado para o inevitável. — É assim que um soldado deve agir.
Ele sorriu, mas havia tristeza ali, escondida atrás da curva dos lábios.
— Você é o meu soldado, não é?
O pequeno Marcus endireitou a postura, imitando a seriedade do pai.
— Sou, papai.
Vinicius riu baixinho, um som breve e melancólico, como o último acorde de uma canção.
— Bom menino.
Cada respiração era um fantasma exalado no ar gelado, uma nuvem cinzenta que desaparecia tão rápido quanto surgia. Cada batida do coração ecoava em seus ouvidos como um tambor distante, um lembrete constante de que seu dedo ainda descansava no frio e mortal ferro do gatilho.
A Carabina ISE estava firme contra seu ombro, a coronha pressionada com força, quase como se a madeira velha e desgastada fosse parte de seu próprio corpo. Marcus fixava o olhar na rodovia à frente, os olhos entreabertos protegidos pela aba do capuz. O mundo parecia congelado, exceto pelo turbilhão que rugia dentro dele.
A indiferença que ele sentia não era natural; era cultivada. Forjada ao longo de anos enfrentando aquilo que outros temiam sequer nomear. No começo, havia medo. Ele lembrava dos dias em que o cair da noite fazia suas mãos tremerem. Lá fora, nas sombras sem fim, as criaturas se moviam, famintas, impelidas por uma necessidade que ele nunca entenderia. Agora, não havia mais tremor, apenas o peso do cansaço e a frieza da determinação.
Seu dedo roçou o gatilho novamente, um gesto deliberado, quase ritualístico.
— Sem hesitar.
O sussurro era baixo, perdido no rugido do vento, mas dentro dele soava como uma ordem irrefutável. O cano da Carabina começou a brilhar levemente, uma coloração azulada tomando forma. A Energia Cósmica fluiu de seu corpo, serpenteando como um rio invisível, se infiltrando na arma, alimentando-a com um poder que parecia pulsar com vida própria.
O vento açoitou o prédio em ruínas atrás de Marcus, suas rajadas uivando como feras famintas. As paredes quebradas e os buracos no concreto não eram proteção suficiente; eram meras lembranças de que o abrigo era temporário, como tudo naquele mundo. Sua capa balançava violentamente, o tecido chicoteando ao sabor da tempestade.
A neve era arrastada pelo caos, cada floco dançando em espirais furiosas, sem rumo, sem propósito. Era um reflexo do mundo ao redor, de uma luta incessante para existir em meio ao caos.
— Sem hesitar.
Na rodovia, a criatura rugiu, desafiando a fúria da tempestade, desafiando o próprio mundo que a moldara. Seus braços se ergueram, cada movimento um lembrete de que ela existia apenas para causar destruição. Era uma aberração, um monstro nascido do medo e da necessidade, uma sombra do que restava da humanidade.
Mas Marcus não sentia medo. Não mais.
O medo que um dia o paralisara tinha desaparecido, levado embora por um único momento que definira sua vida. Aquele dia, aquele primeiro gatilho puxado por mãos pequenas demais para segurar a responsabilidade que carregavam.
— Sem hesitar.
O brilho no cano da Carabina intensificou-se, o azul se transformando em um raio vibrante, uma promessa de poder e destruição.
E então, ele puxou o dedo para trás.
O urro da criatura ecoou como um trovão, reverberando entre as ruínas. Seu braço mutilado caiu com um baque pesado, o som abafado pela neve que se acumulava na rodovia. Os olhos da besta, selvagens e frenéticos, buscaram no horizonte a origem da dor, mas encontraram apenas o vazio. Desorientada, ela tateou o membro arrancado, seus gritos se transformando em um lamento grotesco, um som que parecia ser metade raiva, metade desespero.
Marcus observava a cena com uma paciência gélida, cada movimento seu meticulosamente calculado. Respirou fundo, deixando o ar gelado invadir seus pulmões e sair em uma nuvem densa de vapor. Seus dedos firmes envolveram o guarda-mato da Carabina, enquanto a Energia Cósmica pulsava em seu interior. Era uma força viva, quase como sangue correndo em suas veias, e ele a canalizava com a precisão de um cirurgião.
O brilho azulado no cano da arma era discreto a princípio, um fio de luz que parecia insignificante contra a escuridão da tempestade. Mas, como um fogo que cresce com o vento, a luz intensificou-se, ganhando força, até que até mesmo o Felroz a notou.
A criatura parou. Seus olhos pequenos e fundos fixaram-se em Marcus, a luz azul refletindo em suas pupilas como um presságio de morte.
Marcus soprou o ar mais uma vez, um gesto simples, mas carregado de propósito. Ele não era apressado, não era impulsivo. A calma era sua arma tanto quanto a Carabina.
Então, ele apertou o gatilho.
O disparo cortou o ar como um raio, um som seco e potente que pareceu silenciar o próprio vento por um instante. A bala energética viajou os trezentos metros em um piscar de olhos, encontrando seu alvo com uma precisão mortal. O impacto abriu um rombo no peito do Felroz, um buraco grotesco de quase trinta centímetros que expunha a carne escura e pulsante. O sangue, viscoso e negro como óleo, escorreu lentamente, gotejando em poças espessas na neve suja.
Mas a criatura não caiu. Mesmo com o peito devastado, ela permanecia de pé, cambaleando, sua respiração pesada como o rugir de um motor quebrado.
Marcus ajustou a Carabina novamente em seu ombro, a postura ajoelhada lhe dando estabilidade. Seu olhar era fixo, impiedoso, o de um homem que já havia aprendido a diferença entre hesitação e sobrevivência.
— Eu sei que você me viu — murmurou, sua voz baixa como o som de uma faca deslizando contra uma pedra.
E, pela primeira vez, o Felroz pareceu entender. Nos olhos da criatura, havia algo que não era apenas instinto ou raiva. Era medo.
— Vem me pegar.
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