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    A luz cinzenta da manhã atravessava as janelas improvisadas do abrigo, espalhando-se pelo ambiente com uma frieza que parecia refletir o humor de Leonardo. Ele passara a manhã inteira com Carly, sua pequena filha, folheando os desenhos que ela insistia em lhe mostrar. Eram rabiscos infantis, desajeitados, mas cheios de vida: um cachorro de orelhas caídas, com patas desproporcionais, uma imagem que Leonardo reconheceu de imediato. Joy. O vira tantas vezes nas ruas de GreamHachi que quase podia ouvir o som de suas patas no asfalto.

    — E o que vai querer para amanhã, filha? — perguntou ele, apertando-a em um abraço que a fez rir. — Brincar com o papai ou com a mamãe? Mas só pode escolher um.

    — Mamãe! — respondeu Carly, sem hesitar, a voz cheia de travessura.

    Leonardo fingiu indignação, a expressão exagerada para arrancar mais risadas dela.

    — Mamãe? E eu? Vai me abandonar assim?

    Carly balançou a cabeça, rindo ainda mais.

    — Quero brincar com a mamãe… e com o Joy.

    A menção ao cachorro confirmou suas suspeitas. Não era só um desenho. Joy, o vira-lata de GreamHachi, era um velho conhecido de Carly, um amigo improvável das manhãs em que ela escapulia cedo para procurá-lo pelas ruas. Leonardo sentiu um aperto no peito ao lembrar daqueles dias, da simplicidade perdida.

    — Posso ver se encontro o Joy para você, meu amor. — A promessa escapou de seus lábios quase sem pensar. — Você quer mesmo um cachorrinho?

    Carly virou-se de repente, os olhos brilhando de expectativa.

    — Jura, papai? Jura que vai trazer o Joy? — Ela ergueu o dedo mindinho, estendendo-o na direção dele.

    Leonardo enroscou seu mindinho no dela, selando o pacto.

    — Juro de dedinho.

    Fabiana, sua esposa, aproximou-se com uma pilha de roupas dobradas. Sentou-se ao lado dele, a expressão tranquila enquanto observava a filha.

    — Você só pode ter o Joy se a tia Clara deixar — disse ela, a voz calma, mas firme. — Tem que pedir a permissão dela primeiro, entendeu?

    Carly assentiu várias vezes, como se já estivesse planejando o encontro com Clara.

    — E o que vamos fazer quando a encontrarmos? — perguntou Fabiana.

    — Pedir para o Joy ficar aqui — respondeu Carly, determinada, antes de sair correndo para brincar com outras crianças.

    Leonardo suspirou e pegou uma das roupas da pilha, examinando-a contra o corpo da filha à distância. Era difícil encontrar roupas de crianças, mas o abrigo, surpreendentemente, tinha um estoque razoável. Ele observou Carly desaparecer entre os outros pequenos, a risada dela ecoando pelo espaço.

    — Você deveria passar mais tempo com ela — disse Fabiana, os olhos ainda fixos nas crianças. — Ela sente falta de um pai presente. Ultimamente, você tem estado muito ligado ao abrigo.

    Leonardo sabia que ela estava certa, mas a lembrança do que enfrentaram em GreamHachi pesava sobre ele.

    — Sei disso — respondeu ele, com um cansaço que transparecia em cada palavra. — Mas ela entende que não estamos mais no Aquário. Este lugar é diferente. Eles precisam de mim.

    Fabiana não recuou, mas sua voz permaneceu calma, quase compassiva.

    — Ela também precisa de você. Ser pai é uma função tão importante quanto qualquer outra.

    Leonardo não podia negar. Desde que fugiram de GreamHachi, Fabiana insistia nesse ponto: Carly precisava dele tanto quanto qualquer um no abrigo. Ele sabia que ela estava certa, mas isso não tornava a culpa mais fácil de carregar.

    — As coisas aqui são mais difíceis do que lá — comentou ele, tentando mudar de assunto. — Agora que Dante saiu e ninguém sabe onde ele está, acho que vai piorar.

    Fabiana cruzou os braços, pensativa.

    — Dante não é o líder daqui. Você sabe disso. Clara é quem mantém tudo funcionando. E ela está certa ao dizer que precisamos de cautela. Mas… — Ela hesitou por um momento. — Não tiro os méritos de Dante. Ele não é uma pessoa comum. Nós dois sabemos disso.

    Leonardo lançou um olhar curioso para a esposa. Fabiana Vulkaris não era uma mulher de elogios fáceis. Sua habilidade, Observação Interna, tornava-a incrivelmente perspicaz, capaz de enxergar além das aparências.

    — O que achou de todos aqui? — perguntou ele.

    Fabiana deu de ombros, como se a pergunta fosse banal.

    — A maioria é comum. Alguns se destacam, mas o que me impressiona é o senso de comunidade. Eles trabalham juntos, não fazem nada sozinhos. Isso é bom, mas perigoso.

    Leonardo franziu a testa, intrigado.

    — Por quê?

    Fabiana o encarou, séria.

    — Porque, quando as coisas esquentam, é fácil quebrar o que está unido. Lembra de GreamHachi? A cidade se dividiu em dois quando você foi tirado da Cúpula. Se algo parecido acontecer aqui, este lugar vai ruir. E rápido.

    Leonardo sabia que ela estava certa, mas não queria admitir. Fabiana era como uma lâmina bem afiada: direta e implacável.

    — Acho que Dante vai voltar — disse ele, quebrando o silêncio. — Ele não deixaria tudo isso para trás.

    Fabiana riu, um som baixo e quase carinhoso.

    — Meu marido é um espadachim habilidoso, talvez o melhor que já vi. — Ela olhou para Carly, que corria ao longe. — Mas, quando se trata de entender as pessoas, você é péssimo. Juro, achei que fosse melhorar com o tempo, mas talvez isso seja uma coisa dos homens.

    Leonardo riu, balançando a cabeça.

    — Talvez. Ainda tenho muito o que aprender com você, meu amor.

    Fabiana sorriu, mas seus olhos continuaram fixos na filha, como se enxergassem algo que ele não podia ver.

    — Vai supervisionar o projeto do Heian? — Fabiana mudou de assunto bem rápido. — Precisa conversar com ele sobre o que aconteceu. Ele ficou nove anos esperando, Leo. Nove anos, e você nem parece que está ligando pra isso.

    Leonardo lembrava-se bem do dia em que conheceu Fabiana. Ela não era como as outras garotas de GreamHachi. Enquanto as jovens ao redor sorriam e baixavam os olhos, ela mantinha a cabeça erguida, o olhar penetrante e uma língua afiada. A primeira conversa deles fora sobre como um homem deveria se portar diante de uma futura esposa, um discurso que mais parecia uma afronta direta ao próprio Leonardo. Mas algo naquele tom firme e nas palavras carregadas de uma sabedoria precoce o fisgou. Desde então, procurava-a todos os dias, ansioso por mais da sua franqueza implacável e dos segredos que ela parecia carregar nos olhos.

    A habilidade de Fabiana, Observação Interna, era quase sobrenatural. Ela via através das pessoas, como se seus pensamentos fossem páginas de um livro que só ela podia ler. Leonardo nunca deixou de se surpreender com isso, mesmo depois de tantos anos.

    Agora, sentado ao lado dela, sentia o peso de suas palavras antes mesmo de ouvi-las.

    — Ele está lutando — começou Fabiana, o olhar perdido em algum ponto distante. — Nove anos esperando algo que nunca apareceu. Está deprimido, Leonardo. Aquele homem acredita que este lugar não é o que ele esperava, mas, ainda assim, está aqui porque acha que pode se redimir.

    Leonardo franziu a testa, confuso.

    — Se redimir pelo quê? Ele não precisa provar nada a ninguém.

    Fabiana virou-se para ele, a expressão carregada de uma paciência que beirava o desprezo.

    — Você claramente tem olhos e não enxerga nada, Leonardo Vulkaris. — Sua mão pousou sobre a dele, o toque leve, mas firme. — Ele matou pessoas porque você pediu. Nove anos protegendo um lugar. Nove anos, Leonardo.

    Leonardo abaixou o olhar, sentindo o peso do tempo em cada palavra dela. Era verdade. Nove anos. O mesmo tempo que ele passara esperando, acreditando que algo melhor viria.

    — Do lado de fora — continuou Fabiana, a voz agora mais baixa, mas ainda cortante. — No frio, protegendo algo que nunca seria dele. E por quê? Por um juramento. Ninguém aqui dentro deve mais a Cerberus do que você. E, ainda assim, parece que você mal se importa com ele.

    Leonardo abriu a boca para protestar, mas Fabiana não lhe deu chance.

    — Gerhman pode esperar. Esteve com aquele menino desde pequeno. Mas Cerberus? Ele te viu no máximo cinco vezes. E mesmo assim, jurou lealdade a você, ao ponto de tirar vidas para que seus pedidos fossem realizados. Entende o que isso significa? Ele quer mudar, quer se redimir, porque a única coisa que passa pela mente dele é que a dor que sente não vai embora.

    As palavras dela eram como golpes, cada uma atingindo um ponto que Leonardo preferia ignorar. Ele tentou desviar o olhar, mas Fabiana não permitiu. Seus olhos encontraram os dele, fixos, exigentes.

    — Você fez um juramento com sua filha agora há pouco, não fez? — perguntou ela, a voz tão baixa que era quase um sussurro.

    Leonardo assentiu, sentindo o peso do compromisso recente com Carly.

    — Vai demorar nove anos também? — completou Fabiana, a pergunta carregada de uma gravidade que ele não podia ignorar.

    O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Leonardo sabia que não havia resposta que pudesse aliviar o que Fabiana acabara de expor. Ele apenas permaneceu ali, olhando para as mãos dela sobre as suas, enquanto a realidade das suas ações — e inações — se acomodava como uma pedra fria em seu peito.

    — Dona Fabiana — Leonardo soltou um sorriso de lado, meio tristonho por não ter percebido algo tão visível. — Eu amo você.

    Ela concordou como se fosse óbvio.

    — Eu sei disso. Na primeira vez que me viu, eu já sabia disso. Era muito cedo para você dizer, mas eu vi que seu coração bondoso precisava de um cérebro pensante. — Fabiama piscou, e acariciou o rosto dele. — Agora, vai.

    — Vou, preciso falar com ele.

    — Mas, volta. Precisamos conversar sobre outras coisas.

    Leonardo claramente voltaria. Aquela mulher era unicamente a pessoa que mais queria estar perto. Ficar longe dela era a própria morte. Amava sua esposa e sua filha. Era isso que o mantinha vivo, erguido, determinado.

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