Capítulo 173: A Cuba
A neve caía preguiçosa, mas o frio era cortante, como se cada lufada de vento trouxesse consigo a memória de tempos mais sombrios. Leonardo encontrou Cerberus sentado em um banco improvisado, feito de tábuas antigas e fixado com pregos tortos – obra do próprio homem, ou assim ele imaginava. Cerberus era conhecido por sua precisão e habilidade. Se algo o incomodava, corrigia com a mesma frieza com que enfrentava o mundo. O vento não o tocava, como se até a tempestade respeitasse seu espaço.
Leonardo apertou o casaco contra o peito, tentando reter o calor que parecia fugir de seu corpo, e aproximou-se com passos hesitantes. Não sabia como seria recebido. Cerberus estava imóvel, uma figura de pedra contra o pano de fundo branco da neve.
— Posso me sentar? — perguntou Leonardo, a voz firme, mas carregada de cautela.
— Fique à vontade — respondeu Cerberus sem desviar o olhar da tempestade.
Leonardo se acomodou ao lado dele, sentindo imediatamente a ausência do vento que, de algum modo, era redirecionado para longe. Ajustou o cabelo e a barba com gestos mecânicos, como se precisasse de algo para ocupar as mãos antes de iniciar a conversa.
— Eu vim conversar com você — disse, finalmente.
Cerberus não se moveu.
— É? — respondeu com desinteresse. — Demorou um pouco pra isso.
Leonardo suspirou, concordando com um aceno de cabeça.
— Demorei. Minha esposa me alertou. Ela tem um jeito de enxergar o que eu não vejo. Admito que sou quase cego para entender o que se passa na cabeça das pessoas.
— Cego, surdo e o que mais puder imaginar — interrompeu Cerberus, a voz calma, mas tão fria quanto o gelo ao redor. — Não quero suas desculpas, Leonardo. Nem preciso delas.
Leonardo tentou insistir.
— Sei que está deprimido. Sei que está…
— Você não sabe de nada — cortou Cerberus, ainda sem olhar para ele. — Foram nove anos esperando por algo que nunca viria. E você sabia disso. Não tente me dizer o contrário. GreamHachi nunca me aceitaria. Nunca seria minha casa.
— Eu daria um jeito. Eu jurei a você — rebateu Leonardo, a voz quase um sussurro.
Cerberus soltou uma risada curta, desprovida de humor.
— E olha onde seu juramento nos trouxe. Estamos no mesmo lugar. Mas enquanto você quase morreu, eu sofri. Consegue entender que seu juramento não serviu para nada? Se veio aqui para se desculpar ou oferecer reparação, poupe seu fôlego.
As palavras atingiram Leonardo como um golpe, arrancando-lhe o ar. Ele sabia que Cerberus carregava um fardo, mas jamais imaginara que fosse tão pesado. Não era apenas a rejeição de GreamHachi ou os anos no frio. Era algo mais profundo, mais enraizado.
Leonardo tentou se recompor.
— Vou esperar pelo seu perdão — disse ele, com uma calma forçada. — Vou esperar até que você esteja satisfeito. Não vou tocar no assunto novamente, nem tentar forçar nada. Quando quiser, estarei aqui para ouvir sobre seus sonhos, seus medos. Fabiana sempre diz que sou péssimo com palavras, mas prometo que ouvirei antes de falar.
Cerberus finalmente se virou para ele, os olhos carregados de algo que Leonardo não conseguia decifrar.
— Espere sentado — respondeu ele, seco.
Leonardo sabia que Cerberus tinha razão para estar assim. O homem era inflexível, mas era seu direito. Mudou de assunto, buscando um terreno mais seguro.
— E sobre o projeto da água? Como está indo? Duna pode ajudar com os desenhos. Ele é sempre cheio de ideias, mas prometeu que ia ajudar com o que pudesse.
— Já estou planejando. Pedi que Magrot me conseguisse alguns materiais, mas ele anda afastado.
— E as casas?
— Comecei pela base. Quero entender a estrutura dos prédios antes de construir algo mais complexo. Mas já sei por onde começar. Preciso de tempo, mas vai dar certo. Dante me deu a permissão antes de sair.
Leonardo não duvidava. Se Dante havia confiado o projeto a Cerberus, algum progresso já devia ter sido feito. O homem era metódico demais para deixar pontas soltas.
— Já começou? — perguntou Leonardo.
— Óbvio que sim.
Pela primeira vez, Cerberus virou-se completamente para encará-lo. Nos olhos frios, um lampejo de ansiedade, como se houvesse algo que ele não dizia.
— Quer ver?
Leonardo permitiu-se um pequeno sorriso por debaixo da barba.
— Claro que quero. Mostre-me.
Cerberus levantou-se, e Leonardo o seguiu. Talvez não pudesse desfazer os últimos nove anos, mas poderia começar por ali.
A rodovia estendia-se como uma cicatriz sob a neve, seus contornos quase apagados pelo inverno implacável. Leonardo e Cerberus avançavam contra o vento, mas a tempestade parecia respeitar a presença do homem à sua frente. Em torno de Cerberus, uma barreira invisível de ar mantinha o frio e a neve à distância. Ele caminhava sem esforço, os pés firmes sobre o solo gelado, como se a própria natureza se curvasse diante de sua determinação.
A habilidade de Cerberus era um mistério que Leonardo ainda tentava compreender. Dante dissera certa vez que o corpo de Heian reagia ao que ele temia, forjando uma habilidade temporária que o conduzia à vitória. Não era apenas uma questão de medo, mas de adaptação. Leonardo conhecia histórias de homens que conjuravam poderes baseados em seu conhecimento, mas nunca havia ouvido falar de alguém que moldasse suas habilidades em resposta às emoções.
Ele é especial, pensou Leonardo.
Cem metros mais adiante, Cerberus parou de repente. Leonardo o imitou, os olhos atentos. O braço de Cerberus ergueu-se como se apontasse para algo invisível. Um som metálico ecoou pela rodovia, seco e preciso.
— Marcus vigia tudo da Torre — explicou Cerberus, retomando a caminhada sem olhar para trás. — Pedi que ele levasse alguém para verificar os túneis enquanto eu estiver fora.
Leonardo seguiu o homem em silêncio. O vento uivava ao redor deles, mas não conseguia atravessar a barreira que Cerberus criara. Então, pelo horizonte nebuloso, uma sombra colossal começou a tomar forma. A tempestade tornava impossível ver mais do que alguns metros à frente, mas, mesmo assim, o contorno da gigantesca cuba de concreto se destacava.
Conforme se aproximavam, os escombros de prédios caídos surgiam como sentinelas adormecidos. Mesmo tombados, suas dimensões eram impressionantes. O prédio mais próximo, deitado sobre um lado, ainda media cerca de cinco metros de altura. Leonardo nunca vira nada parecido.
— É grande demais — murmurou ele, quase sem acreditar. — Como vai estruturar tudo isso?
Cerberus apontou para a base do prédio, uma fundação robusta que se enraizava no solo congelado.
— A base já está pronta — respondeu ele, com simplicidade. — Remodelei a estrutura e fundi tudo ao chão. Pensei em pedir ajuda ao Clerk, como foi sugerido, mas ele tem uma esposa e um filho. Tirar um homem de sua família seria um erro. Então, fiz eu mesmo.
Leonardo observou em silêncio. Cada detalhe parecia meticulosamente reforçado. As vigas dos andares superiores haviam sido restauradas, e as partes soltas do prédio estavam agora integradas ao todo, como se nunca tivessem se desprendido.
— Deve ter sido um trabalho monumental — comentou Leonardo, impressionado. — Tudo isso… levaria meses para ser feito. Como conseguiu…?
Cerberus olhou para ele por um instante antes de responder.
— Minha habilidade me permite fazer qualquer coisa que eu considere necessária — disse, enquanto retomava a caminhada em direção à entrada. — Construi toda a base em um dia. Ontem, terminei a primeira remessa de reforços. Mas Jix insiste que eu deveria descansar, para não me sobrecarregar.
Leonardo ficou para trás por um momento, absorvendo a grandiosidade do que via. O que Cerberus fizera ali não era apenas um trabalho de construção; era uma declaração de sua determinação, de sua vontade inabalável. E, acima de tudo, de sua singularidade.
— Então, está praticamente pronto para ser remodelado? — Leonardo perguntou, lançando um olhar atento para a estrutura colossal à sua frente.
— Sim, e não. — Heian ergueu o dedo, apontando para o telhado. — A parte de cima ainda está em ruínas. Pretendo refazer tudo antes de começar a montar as alas. Por enquanto, estou esperando Magrot trazer o que preciso. Dante também disse que traria algo, mas não faço ideia do que seja. Ele falou isso antes de partir.
Continuaram avançando, o som de seus passos abafado pela neve, mas pontuado por estalos ocasionais. Às vezes, um ruído seco, como algo caindo à distância, ecoava. Leonardo franzia o cenho, tentando identificar a origem, mas o vento sibilante tornava a tarefa impossível. Heian percebeu sua inquietação.
— Juno e Arsena — disse ele, com naturalidade.
Leonardo arqueou uma sobrancelha. As duas estavam brigando? Já era suficientemente complicado lidar com Dante e Clara discutindo; outro conflito poderia abalar o frágil equilíbrio do abrigo.
— Elas treinam juntas agora — corrigiu Heian, como se lesse seus pensamentos. — Preferem fazer isso aqui, sob a supervisão de Jix. Às vezes, eu me junto a elas.
— Deve ser divertido — comentou Leonardo, tentando relaxar a tensão na voz.
Heian respondeu apenas com um som gutural de concordância, curto e seco.
Quando chegaram à entrada, duas portas escancaradas estavam cobertas por uma lona úmida, balançando com o vento. Passaram pelo vão, adentrando um pequeno corredor que os levou até o pátio central. Ali, Leonardo foi forçado a parar e absorver o que via.
O interior era uma obra de engenharia monumental. O que parecia ser apenas um prédio visto de fora era, na verdade, um emaranhado de seis estruturas interligadas. Vigas de ferro sustentavam um labirinto de corredores e plataformas, cruzando-se em alturas diferentes. Do chão ao teto, a altura parecia desafiar a lógica. Cinquenta metros de altura por fora? Lá dentro, parecia o dobro, talvez mais. As estruturas pareciam sobrepostas umas às outras, uma escalada vertical que desafiava as leis da arquitetura.
— Ajustei as conexões entre os prédios — explicou Heian, apontando para um dos cruzamentos onde duas torres se tocavam. — Antes, tudo estava desalinhado. Por isso preciso arrumar o topo. Um dos prédios caiu, e parte da estrutura se soltou.
Leonardo mal conseguiu desviar o olhar daquela obra descomunal. O aço parecia vivo, moldado com precisão quase artística. Mas sua atenção foi capturada por outro movimento. Juno recuava com Jix às costas, enquanto Arsena corria em direção oposta, subindo uma das paredes com agilidade impressionante.
Heian não pareceu notar o espetáculo de luta. Seu braço ergueu-se novamente, apontando para a cuba central.
— Como eu disse, estou melhorando o lugar aos poucos.
Leonardo permaneceu em silêncio. Era impossível não admirar a dedicação de Heian. Cada detalhe daquela estrutura carregava a marca de sua habilidade singular, uma fusão de força, inteligência e uma obstinação que parecia inquebrável. Ele é um gênio. Ficou inconformado por não ter visto isso antes.
Ele é realmente um gênio.
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