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    Clara empurrou a pesada porta de madeira do abrigo, seus passos abafados pelo manto de neve que derretia sob suas botas.O cheiro de fuligem e ferro quente a atingiu antes mesmo de seus olhos se ajustarem à penumbra do lugar.

    A cena que a recebeu era de um caos familiar: Meliah e Degol estavam a um fio de se engalfinhar, as vozes cortantes ecoando pelo espaço apertado. Meliah, de rosto marcado por rugas de frustração e barba por fazer, gesticulava ferozmente na direção da parede de pedra escura. Degol, mais baixo e atarracado, com os cabelos desgrenhados como um cão molhado, não ficava atrás, apontando para o teto com o mesmo vigor.

    — Se a fornalha ficar no primeiro andar, nada aqui embaixo será frio! — Meliah rosnava, os olhos faiscando como brasas vivas. Ele ergueu a mão, batendo o dedo na parede e, em seguida, no teto. — O calor sobe, Degol. É física, maldição!

    — E quem é que vai carregar lenha escada acima todo dia, hein? Você? — Degol retrucou, a voz rouca e cheia de desprezo. Ele cruzou os braços, como se aquele gesto pudesse encerrar a discussão.

    Clara fechou a porta atrás de si com um leve ranger, mas nenhum dos dois pareceu notar sua presença. Ela deixou o olhar passear pela sala, da pilha de madeira encostada no canto até a fornalha apagada, com a chaminé velha e enegrecida que subia pela lateral do abrigo. Os detalhes da disputa eram irrelevantes; o verdadeiro combustível daquele embate era o orgulho teimoso de dois homens que não sabiam recuar.

    Ela respirou fundo e, por um instante, pensou em virar as costas e sair pela mesma porta por onde entrou. Mas o frio lá fora era menos cortante do que o clima dentro do abrigo.

    E pensar que os dois são irmãos e brigam como inimigos.

    Clara avançou lentamente, os passos calculados e o olhar fixo na dupla que discutia. À medida que se aproximava, as vozes dos outros no abrigo foram diminuindo, como se o próprio ar se tornasse mais denso com sua presença. Quando parou, a poucos passos de Meliah e Degol, cruzou os braços. Sua postura era de pedra, firme como as muralhas de Kappz, e os dois homens sentiram o peso de seu olhar antes mesmo de ela abrir a boca.

    — Vocês parecem gostar de semear tumulto — Clara disse, a voz baixa, mas afiada como uma lâmina. — Especialmente quando já decidimos que as fornalhas seriam separadas por numeração ímpar ou par.

    A sala pareceu congelar. Meliah, sempre tão cheio de argumentos, e Degol, o eterno impassível, permaneceram imóveis. O silêncio que se seguiu era quase tão frio quanto o inverno lá fora.

    — Clara… — Meliah tentou, mas não foi longe.

    — Não quero saber — ela cortou, sua voz agora com a força de um trovão. — Sigam o que foi estipulado. Já temos duas fornalhas aqui embaixo. A terceira vai ser lá em cima. Quantos andares foram limpos? E a madeira, quem a trouxe?

    Degol, com sua expressão que parecia eternamente moldada em pedra, girou sobre os calcanhares para encará-la. Apesar de sua fama como um dos melhores diplomatas do abrigo, aquele rosto endurecido não ajudava em nada. Era fácil entender por que as crianças fugiam dele como se fosse um espectro saído de contos sombrios.

    — Eu limpei mais cedo, senhora — respondeu, a voz grave e sem pressa, como se estivesse escolhendo cada palavra com cuidado. — A madeira também já foi colocada no lugar. Temos estoque suficiente.

    Ele fez uma pausa, e por um momento Clara pensou que a conversa terminaria ali. Mas Degol era Degol, e nunca sabia quando recuar.

    — Quero poder discutir sobre o carvão.

    As palavras ecoaram pela sala, e Clara percebeu que, apesar de sua aparência fria, havia fogo suficiente em Degol para alimentar a próxima briga.

    — Quero todos na sala de reunião — Clara ordenou, ignorando o pedido anterior. Seus olhos percorreram o abrigo até se fixarem em Leonardo e Gerhman, que estavam mais afastados. — Chamem Heian, Marcus, Simone, Fabiana. Quero também Jix e Juno. — Fez uma pausa breve, calculada, antes de continuar: — Magrot, Duna e Arsena. E se virem Dante por aí, digam que ele precisa aparecer.

    Fogo no óleo. A ordem foi como uma tocha jogada em um barril de pólvora. Leonardo e Gerhman saíram quase imediatamente, com Gerhman subindo os degraus como se o próprio inverno estivesse em seus calcanhares. Degol e Meliah trocaram olhares carregados, a familiar tensão entre irmãos que brigavam por migalhas. Depois, seguiram juntos, subindo em passos apressados.

    Clara tomou o caminho da escada, mas antes de começar a subida, deparou-se com Clerk. Ele estava parado próximo, retraído como um animal que não sabia se deveria se aproximar ou fugir.

    — Também irei participar, senhora? — ele perguntou, a voz baixa e cautelosa.

    — Sim, Clerk — respondeu Clara, com um raro sorriso aquecido. — Ficarei feliz que esteja presente.

    Enquanto subia, Clara mantinha a aparência de casualidade, acenando e trocando palavras rápidas com os moradores em cada andar. Contudo, sua postura mudava sempre que cruzava com Meliah, Degol, Gerhman ou Leonardo. Sua expressão se endurecia, e seu olhar carregava algo mais sombrio. Não sabia o que Dante tinha feito para influenciá-los daquela maneira, mas isso não importava. Eles deviam sua lealdade ao abrigo, à casa que os protegia, e não a um homem. Ela faria o que fosse necessário para que todos compreendessem isso.

    No último andar, a sala já estava quase cheia. Todos os nomes convocados estavam lá, exceto, claro, Dante. Os olhares que Clara encontrou eram inquisitivos, alguns duros, mas ninguém ousou questioná-la.

    Sem pressa, Clara caminhou até a sala onde Duna havia montado seu escritório. Quando entrou, lá estava Dante. Ele estava de pé, de costas para a porta, encarando um quadro na parede como se o mundo inteiro se resumisse àquela imagem.

    Atrás dela, os outros começaram a entrar, mas pararam ao vê-lo ali.

    — Então, finalmente deu as caras — Clara disse, a voz afiada como uma lâmina recém-amolada. — Por onde esteve?

    — Por muitos lugares — respondeu Dante, sem sequer virar o rosto. — E também em lugar nenhum. Passei boa parte do tempo aqui no abrigo, lendo e pesquisando.

    — Por que parece que está mentindo para mim?

    Ele deu de ombros, um gesto desdenhoso que a fez apertar os punhos.

    — Minha resposta é essa. Acreditar ou não depende de você.

    Era sempre assim. Desde o início, Dante demonstrava pouco ou nenhum respeito por sua posição. Ele havia ido ao Centro de Pesquisa por conta própria, desafiado as ordens para viajar até GreamHachi e criado confusões suficientes para alimentar uma dúzia de reuniões futuras como esta.

    Clara respirou fundo, controlando o impulso de exigir mais explicações. Ele estava ali, e isso bastava.

    — Vamos fazer uma reunião — ela disse, seca. — Se quiser permanecer, fique à vontade.

    Dante não respondeu. Continuou encarando o quadro como se estivesse em um mundo à parte. A irritação subiu em Clara, mas ela a sufocou. Não podia se dar ao luxo de deixar Dante desestabilizá-la.

    Virando-se para os outros, falou com firmeza:

    — Por favor, peguem uma cadeira. Prefiro falar com todos sentados.

    Duna deu uma risada seca.

    — Parece que o clima está pegando fogo.

    Magrot e Arsena, junto de Gerham, Leonardo, Fabiana Jix e Juno sentaram com as costas voltadas para Dante. Apenas Marcus, Clerk e Simone sentaram viradas ao seu lado. Degol e Meliah ficaram de frente um pro outro, ainda faiscando. Heian foi o único que permaneceu de pé, indo até Dante e falando algo em seu ouvido.

    Clara não escutou, mas não gostou nada.

    — Vamos começar — anunciou puxando a atenção para si. — Estou estipulando essa reunião para que todos os projetos e também ações sejam registradas entre os membros. Se queremos que a nossa casa seja guiada da maneira correta, faremos do jeito certo.

    Ninguém respondeu. Clara, então, continuou.

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