Capítulo 191: Casa
Dante piscou, confuso. O vento morno balançava as folhas das árvores, e o cheiro de terra úmida o envolvia como um cobertor familiar. Mas algo estava errado. Tudo parecia… certo demais. A grama sob seus dedos, a textura da madeira da varanda, até mesmo a brisa carregando o aroma de pão fresco vindo da cozinha. Ele não devia estar ali.
— Desde quando estou aqui? — murmurou para si mesmo.
A última coisa de que se lembrava era o rosto de uma mulher, inchado, marcado pela dor. Clara? O nome dela escapou de sua mente como areia entre os dedos. Ele não conseguia lembrar. Apenas sabia que precisava esperar.
— Filho, por que está aqui?
A voz suave de sua mãe, Linda, o fez erguer a cabeça. Ela estava ali, parada diante dele, os olhos apertados em estranheza e algo mais… ressentimento? Não, preocupação. Seu vestido azul oscilava ao vento, e ela se aproximou hesitante, como se temesse tocá-lo e ele se desmanchar.
— O que houve? Como voltou pra casa?
Dante abriu a boca, mas não encontrou uma resposta.
— Eu não sei, mãe.
Tudo ao seu redor era uma cópia perfeita das lembranças mais queridas que guardava. As pedras soltas no caminho, a pintura descascada da cerca, o velho carvalho com o balanço que ele e sua irmã haviam construído quando crianças. Nenhuma fuligem no ar, nenhuma neve escurecendo os telhados. Apenas o calor suave da tarde e a segurança de casa.
Ele fechou os olhos e inspirou fundo.
— Gosto de estar de volta, mãe.
Linda não sorriu. Caminhou ao redor dele e se sentou ao seu lado, ainda com aquela expressão preocupada. Seu toque em seu braço era hesitante, como se procurasse alguma resposta na pele do filho.
— Você não deveria estar aqui, filho. Não deveria ter deixado aquelas pessoas.
Aquelas pessoas. Dante sentiu um incômodo rastejar em seu peito. Ele sabia de quem ela falava, mas, por algum motivo, não queria pensar nisso.
— Não gosta de seu filho ter voltado? Por quê? — Sua voz saiu mais ríspida do que pretendia. — É o que eu mais queria.
— Exato. Você queria, e estava lutando por isso. — Linda negou com a cabeça, os lábios apertados. — Tomar o caminho mais rápido para casa é o mesmo que deixar seus amigos morrerem.
Um gosto amargo subiu à boca de Dante. Ele desviou o olhar.
— Eles sabem se virar sem mim.
— Por que continua mentindo para si mesmo?
O tom dela era de decepção, mas também de um entendimento profundo que o irritava.
— Acha que o mundo se resume a uma viagem de volta pra casa e tudo vai estar bem? — Linda soltou uma risada sem humor. — Não criei um filho covarde. Nenhum dos meus dois filhos. Então por que está fazendo isso?
Dante abriu os braços, frustrado.
— Mãe, eu não sou covarde!
Linda o encarou, os olhos tão duros quanto aço.
— Não? — Sua voz saiu fria. — Então por que está lutando contra seus amigos?
A pergunta cortou Dante como uma lâmina invisível. Um arrepio subiu por sua espinha, e, de repente, o ar morno da tarde pareceu pesado, sufocante. As sombras das árvores se alongaram ao seu redor. O cheiro de pão fresco desapareceu.
O vento parou. O calor confortável do entardecer se dissipou, e um frio espectral se infiltrou em sua pele, subindo pela espinha como dedos invisíveis. A voz de sua mãe soava como um eco distante, mas cada palavra perfurava sua mente como lâminas afiadas.
— Quantas vezes eu te disse que a mente humana não deveria ser levada como brincadeira? — Linda balançou a cabeça, os olhos escuros refletindo uma tristeza profunda. — Você se deixou levar, não foi? Estava irritado, deixou essa… mancha contaminar seu coração.
O peito de Dante pulsou com violência. Ele engasgou, sentindo um aperto sufocante que o fez dobrar o corpo para frente. Seus dedos se agarraram ao casaco, tentando conter a dor lancinante que irradiava de seu peito. Quando olhou para a palma da mão, seu sangue escorria, quente e viscoso, pintando a pele com um vermelho vivo.
O líquido gotejou entre seus dedos, encharcando a grama. Então, diante de seus olhos arregalados, o campo inteiro se tingiu de carmesim. A relva verde se transformou em um tapete de sangue pulsante, se espalhando como um oceano rubro ao seu redor.
Um gemido de dor escapou de seus lábios. Seu peito queimava, como se algo dentro dele estivesse se contorcendo, rasgando suas entranhas, querendo sair. Mas sua mãe…
Linda nem se moveu.
Seu olhar permaneceu impassível, distante, como se estivesse observando um estranho.
— Eu disse que você deveria manter sua mente saudável. Segura. — A voz dela era firme, mas havia um peso nela, uma amargura fria. — Quantos dias você esteve orando comigo para deixar a raiva e a tristeza de lado? Você, mais do que ninguém, deveria saber controlar esse sentimento.
— Eu tentei, mãe… — Dante sussurrou, a voz embargada. Ele estendeu a mão ensanguentada, buscando o toque dela, uma âncora que o segurasse naquele mar revolto dentro de sua própria mente. Mas Linda não respondeu ao toque. Nem sequer piscou.
— Não. — O tom dela foi cortante. — Seu lugar não é aqui, Dante. E você sabe disso.
A respiração dele ficou irregular.
— Você veio porque não controlou suas emoções, porque deixou a raiva se sobrepor ao seu medo.
O sangue continuava escorrendo de seu peito, quente, pulsante, se misturando ao oceano carmesim ao seu redor. Linda ergueu a mão e, lentamente, tocou o rosto do filho. Seus dedos eram frios, como mármore.
— Eu não quero me decepcionar com meu filho mais velho.
Dante sentiu um nó apertar sua garganta.
— Mãe…
— Faça o que deve ser feito. — A voz dela se tornou um sussurro gelado. — Faça agora.
O mundo ao seu redor se distorceu. O sangue. A dor. A voz da mãe, distante, se apagando como uma vela ao vento.
E então, ele caiu.
Os olhos, ele enxergava. Via Leonardo escapar de suas duas mãos, usando a espada para aparar seus movimentos, os jogando para o lado, mas quando sua defesa, Dante sentia seu corpo avançar, vendo a deficiência da postura.
Antes de acertar as costas da mão, Heian apareceu, fazendo seu braço se transformar em um bloco de concreto e segurar o golpe. Antes de reagir, Maethe passou saltando na direção de Clara, ainda caída.
A lâmina queria acertar a cabeça da mulher, mas um disparo fez com que a líder de GreamHachi recuasse. E assim que pisou para tentar outro movimento, Heian usou as chamas para afastá-la mais ainda.
Leonardo e Heian queriam pará-lo, mas não atacavam diretamente. Defesa, esquiva, e tentavam sincronizar seus movimentos para não feri-lo.
Eles estão me poupando.
— Clara! — A voz de Leonardo rompeu o barulho ao redor. — Não vai dar certo!
Dante sentiu Heian se aproximar, sua presença marcada por um vento congelante. O espadachim ergueu as mãos e uma imensa tempestade de gelo explodiu contra o peito de Dante, atirando-o para trás. O impacto foi brutal, como se uma muralha tivesse colidido contra ele, mas antes que pudesse reagir, um borrão se moveu pela esquerda.
Maethe.
A mulher correu com uma velocidade assustadora, o olhar afiado como uma lâmina desembainhada. Ela sequer precisou tocá-lo. Com um gesto de mão, uma força invisível o arrancou do chão e o lançou contra o frio cortante.
Leonardo girou no mesmo instante, a espada reluzindo à luz pálida, tentando cortar Maethe antes que ela pudesse avançar mais. Mas antes que o golpe se completasse, Dante ergueu os braços.
Não. Me acerte. Precisa me acertar para eu não…
O punho de Leonardo hesitou por um instante. Foi o suficiente. O ar ao redor explodiu como uma onda invisível, lançando Leonardo ao chão. Ele rolou com a força do impacto, mas se ergueu num piscar de olhos, os pés bem plantados, o olhar afiado.
Maethe estava sobre ele.
A adaga brilhava em sua mão, girando no ar enquanto ela descia sobre Leonardo. Ele não teria tempo de erguer a espada. Não conseguiria escapar.
Dante olhou para Marcus, mas ele ainda estava recarregando a Carabina. Heian estava distante, tentando se aproximar, mas não chegaria a tempo.
Não. Não. A gente não chegou até aqui para morrer.
— Não.
As vozes dentro de sua mente rugiram como trovões.
Faça agora. Não deixe de fazer.
Dante piscou.
Maethe estava a centímetros do pescoço de Leonardo, o sorriso dela desprovido de medo, como se a vitória já estivesse em suas mãos.
— Suma.
O braço de Dante atravessou o ar como uma bala disparada de um canhão. O impacto contra o rosto de Maethe foi brutal. A cabeça dela se torceu com o golpe, e seu corpo foi lançado para trás com tanta força que quicou no chão duas vezes antes de se estilhaçar contra a estrutura do Arco de Vidro.
O silêncio que se seguiu foi quase tão violento quanto a luta.
Dante arfou, os pulmões queimando. Sua visão ficou turva, e ele segurou o próprio joelho para não cair, cuspindo sangue. Mas os gritos dentro de sua mente ainda rugiam, ecos de algo maior do que ele conseguia conter.
E então, as sombras se moveram.
Diante dele, uma figura emergiu do nada.
Dalia.
A Oficial que um dia servira ao seu lado. Seu olhar severo estava cravado nele, o dedo apontado diretamente para seu rosto.
— Está atrasado, recruta. Como quer ser um comandante se deixa se levar por algumas provocações?
Atrás dela, Freto e Crish acenavam, sorrisos nos lábios. Mais distante, Tecno brincava com um Cubo de Comunicação, jogando-o para cima sem sequer olhar para Dante.
— Vai deixar seus Oficiais passarem essa vergonha, Dante?
A dor em seu peito aumentou.
Ele caiu de joelhos.
As sombras não paravam. Elas dançavam ao seu redor, assumindo formas conhecidas. Talia surgiu ao lado, vestida de preto como os Comandos, um sorriso brincalhão no rosto enquanto apontava para ele.
— Tá vendo? Precisa de bengala mesmo, velhinho.
E então, Linda e Render.
Seus pais.
O olhar deles era conflituoso, presos entre orgulho e preocupação.
— A mente… — Render começou, a voz firme como sempre. — Deve ser tão forte quanto o corpo. Essas pessoas sempre procuraram por alguém que pudesse liderá-las. Não criei nenhum soldado.
A dor era insuportável.
— Lembra que ia se tornar um Baloeiro?
As lágrimas caíram antes que Dante pudesse contê-las.
Ele fechou os punhos. A garganta se apertou. E sangue escorreu de seus lábios.
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