Capítulo 204: Retorno do Trio
Juno observava Leonardo com atenção. Desde que enfrentara Dante, pensava que jamais veria alguém tão rápido e letal quanto ele. Mas Leonardo movia-se de forma diferente. Não era apenas destreza, era precisão. Cada golpe, cada movimento, cada passo sobre os cadáveres dos Felroz parecia calculado para a máxima eficiência. O aço de sua lâmina cintilava na penumbra, abrindo caminho entre as criaturas como se cortasse feno seco.
Ele avançava sem hesitação, fendendo crânios e decepando membros sem perder o ritmo, como se o ato de matar fosse tão simples quanto respirar. Ao seu lado, Heian mantinha as chamas acesas, iluminando o túnel com um brilho tremeluzente. Mas ele não se movia como Leonardo. Não precisava. Seu fogo bastava para impedir que os monstros se aproximassem. Enquanto isso, o espadachim dançava entre as sombras, sumindo na escuridão e reaparecendo apenas quando o brilho da lâmina refletia nos corpos caídos.
Juno percebeu que os gritos dos Felroz estavam diminuindo. O cheiro de carne queimada e sangue pútrido impregnava o ar. Sentiu um calafrio, mas não desviou os olhos. Precisava aprender.
— Você tem um rosto impressionado — disse Heian ao seu lado, sem olhá-la. — Mas não é por estar aqui embaixo. É por ele, não é?
Juno assentiu lentamente.
— Ele é… muito rápido.
Heian soltou um som quase imperceptível, algo entre um riso seco e um suspiro.
— Antigamente, era ainda mais. Leonardo envelheceu, mas ficou mais experiente.
Mais à frente, os gritos dos Felroz cessaram por completo. Leonardo emergiu da escuridão, seus olhos analisando o ambiente com cautela. Sangue negro manchava suas roupas, a lâmina gotejava, mas sua postura era relaxada, como se a matança tivesse sido pouco mais do que um exercício.
— Ele foi o melhor espadachim que já conheci — disse Heian, sem tirar os olhos do homem. — Não é como se fosse difícil lidar com ele, mas sua técnica… é diferente. Há algo nele que as pessoas não percebem até ser tarde demais.
Juno estreitou os olhos.
— Então, por que você sente raiva dele se parece admirar sua forma de lutar?
Heian hesitou por um instante, mas então soltou um longo suspiro, os olhos brilhando à luz do fogo.
— Admirar um homem não faz dele seu amigo. — Seu queixo se contraiu ligeiramente. — Nem odiá-lo faz dele seu inimigo. Algumas emoções são complexas demais para serem reduzidas a palavras simples.
Juno ponderou aquilo. Pessoas eram estranhas. Complicadas. Heian parecia um homem que recusava admitir os próprios sentimentos, alguém que carregava mais do que dizia. Ela sabia como era. Já lutara contra Dante, perdera, e foi salva por ele. No fim, ser salva era como ser amarrada a algo maior do que si mesma.
— Amar e odiar são difíceis — disse ela, mais para si mesma. — Eu não tenho mais medo dos Felroz, mas também não os odeio. Mas… às vezes tenho medo dos humanos. E às vezes os odeio pelo que fazem uns aos outros.
— Algumas pessoas vivem uma vida inteira odiando sem motivo.
Juno virou-se para ele.
— Você odeia o senhor Leonardo?
Se a pergunta o incomodou, Heian não demonstrou. Respondeu sem hesitar:
— Não existe ódio para um homem que nunca me fez mal diretamente. O que odeio são as correntes que nos prendem, as escolhas que nos forçam a fazer. Odeio a forma como o mundo segue em frente sem se importar com aqueles que caem pelo caminho. — Fez uma pausa, os olhos fixos na trilha de corpos no túnel. — Mas não tenho por que odiar alguém que apenas segue seu caminho. Tampouco tenho necessidade de me envolver.
Juno baixou os olhos.
— Deve ser solitário viver assim — murmurou. — Eu prefiro confiar nas pessoas que amo. Eu confio no senhor Dante e na senhora Clara. Você não confia neles?
Leonardo emergiu completamente da escuridão, sacudindo a lâmina para livrar-se do sangue ressecado. Respirou fundo, como se finalmente pudesse relaxar, e apontou para o fundo do túnel com a espada.
— Achei o ninho de antes. Não parece ser grande coisa.
As chamas foram se alastrando ainda mais, subindo as paredes e depois o teto, em linha reta e clareando. Os corpos dos Felroz, cada um dos que tentou acertar o humano foram devorados pelo fio da espada. Os cortes espalhados pelo torso eram os menores, cabeças decepados e membros partidos eram o que tornava a caminhada complicada.
Juno olhou para Leonardo com renovado fascínio. Ele não guardou a espada. Apenas trocou de mão.
— A sua habilidade realmente prevê o futuro, senhor Leonardo?
Leonardo inclinou a cabeça levemente, um traço de ironia dançando no canto dos lábios. A pergunta de Juno pareceu diverti-lo.
— Prever o futuro? — Sua voz ressoou baixa no túnel, ecoando nas paredes manchadas de fuligem. — Não. O futuro é um tecido imprevisível, emaranhado demais para ser desvendado. O que eu vejo é o Fio do Destino das coisas. Cada criatura tem seu ponto fraco, sua ruína inevitável. Eu apenas o enxergo antes que ele se revele.
Juno franziu o cenho, e Heian cruzou os braços.
— Parece um passo a passo — Heian murmurou, com um meio sorriso que não alcançou os olhos.
Leonardo piscou, surpreso. Pela primeira vez, sua confiança habitual pareceu vacilar, ainda que por um instante.
— Nunca pensei nisso dessa forma — admitiu. — Não é um caminho pronto, apenas um atalho. Eu percebo onde o golpe precisa cair. Nenhuma armadura, nenhuma pele é impenetrável. Tudo que respira pode sangrar, e tudo que sangra pode morrer.
O brilho das chamas de Heian tremeluziu sobre os rostos deles, projetando sombras trêmulas nas paredes de pedra. Juno percebeu a forma como Heian observava Leonardo, os olhos se apertando quase imperceptivelmente, como se estivesse pesando cada palavra.
— E comparado a sua habilidade? — Leonardo ergueu a sobrancelha.
Heian manteve o olhar fixo nele por um momento, depois olhou para Juno e suspirou.
— Eu não sou um lutador. Minha força não vem da lâmina ou do punho, mas daquilo que posso comandar. — Ele ergueu a palma da mão, e o fogo pareceu responder, rodopiando sobre os dedos antes de se dissipar no ar. — Não sou rápido como Dante. Não sou letal como você. Mas o que eu quero, eu consigo. Esse é o meu dom.
A tensão se acumulou no espaço entre os três, mas ninguém contestou as palavras de Heian. Não era necessário. Eles sabiam que era verdade.
A caminhada prosseguiu em silêncio, os passos ecoando nas profundezas do túnel. O cheiro de mofo e sangue ressecado impregnava o ar. Os gritos dos Felroz haviam cessado, mas uma presença incômoda pairava na penumbra, como se algo os observasse, oculto na escuridão.
Foi Juno quem avistou primeiro a parede de escombros. Um desabamento bloqueava completamente a passagem. As pedras eram grandes e irregulares, negras pelo tempo e umidade.
— Parece que o que buscamos está do outro lado — murmurou Heian, aproximando-se da rocha e passando a mão por sua superfície fria e rugosa.
Juno já se preparava para sugerir um caminho alternativo quando Heian se virou para ela, um brilho incomum nos olhos.
— Para que algo saia do meu caminho, basta que eu ordene.
Ele ergueu a mão e estalou os dedos.
No mesmo instante, um brilho verde sinistro percorreu a rocha, como veias pulsantes de alguma criatura dormente. O túnel se encheu de um cheiro acre, de pedra dissolvida e coisa podre. As rochas, antes sólidas e imóveis, tornaram-se viscosas, derretendo-se como carne consumida pelo tempo. A passagem se abriu diante deles, revelando um corredor ainda mais escuro e sufocante.
Leonardo descansou a mão sobre o cabo da espada, enquanto Juno observava a escuridão adiante. Ninguém disse nada, mas todos sabiam que do outro lado os esperava algo pior do que pedras caídas.
— Vamos — disse Heian. E os três avançaram.
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