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    Assim que eles passaram pela quantidade de pedra, deram de cara com caixotes empilhados. Bom, Juno achou que seria algo ainda mais tenebroso, esperava por algum tipo de criatura ou Felroz, como tinha enfrentado.

    Ela esperou Heian e Leonardo se aproximarem das caixas, com grossas cordas e algumas tendo correntes embalando por fora. A espada do espadachim fez um risco em uma delas, quebrando e a deixando tombar.

    — Isso não é um ninho — disse, varrendo a penumbra com um olhar cauteloso. — Mas quem quer que tenha escondido isso aqui, não queria que fosse encontrado.

    Mesmo as chamas esticadas não clareavam tudo. A frente, tinha mais terra e pedra, subindo até que fosse tomado completamente. O próprio Heian não viu mais necessidade de ir adiante, e negou com a cabeça.

    — Nada. Mesmo que eu force, não vamos chegar a lugar algum.

    Leonardo ainda estava parado em frente as caixas, olhando pra uma delas, e com um olhar sombrio.

    — O que houve? — Heian foi até ele e parou.

    Quando Juno foi se aproximar, a mão dos dois se levantaram, juntas. E ela travou.

    — Não, menina — a voz de Leonardo veio baixa, mas firme, carregada com um peso estranho. — Não precisa ver isso.

    Ela sentiu um frio subir pela espinha. Mas não recuou.

    — Eu também vim até aqui pra saber do metrô. — Ficou perto da caixa o suficiente, ainda olhando para os dois homens. — Posso saber o que aconteceu.

    Quando virou o rosto para baixo, sua garganta embrulhou. Os corpos do que pareciam ser crianças, menores do que três anos, foram empilhados de maneira que aos montes foram subindo até a metade. Heian continuou fitando, mas Leonardo se afastou.

    — Quem fez isso tinha que ter morrido sem um pingo de remorso — disse o Espadachim dando as costas. — Que crueldade.

    Juno sentiu sua própria mão tremer. Mas não era tristeza. Eles já estavam mortos. O sofrimento já tinha passado. Eram pequenos, miúdos, e ainda tinham carne nos ossos. Fazia tempo, mas não tanto. Os corpos expostos costumavam apodrecer de dentro para fora, mas esses…

    Quando encarou Heian, ele inclinou-se e tocou em um dos corpos.

    — Estão frios. Frios demais. — Moveu-se para outro caixote, empurrou um com o ombro, sentindo seu peso. — Se todas essas caixas têm crianças, por que escondê-las aquí embaixo? Por que atrás de um amontoado de escombros?

    O silêncio foi cortado por um sussurro. Leonardo estava parado junto a uma porta, um arco de pedra que se perdia na escuridão.

    — Acredito que seja porque tem coisa que a não deveria ser vista pelas pessoas.

    Heian fez suas chamas se esgotarem e uma nova remessa de luz saiu de sua mão. Como se fosse uma lamparina própria, pulsando luz branca ao redor. Juno ficou encantada pela esfera, pegando na mão e não sentindo nada.

    Seu entusiasmo morreu quando ela entrou no que deveria ser um corredor. Corpos mutilados, rasgados e em pedaços. Pernas e braços jogados para os lados, e até mesmo na escada, que levava a um cômodo maior, tudo tinha sido destroçado até os mínimos pedaços. Cabeças decepadas, olhos sem vida voltados para eles. O sangue nas paredes, marcados por garras, eram tingidas até o final.

    — Parece que foi aqui que as pessoas ficaram agarradas. — Heian não tinha um pingo de emoção na voz ao entrar e empurrar um dos corpos pro lado. — Os Felroz devem ter vindo pelo metrô, e acabou que as pessoas tentaram correr aqui pra dentro.

    Juno se virou para ele, a raiva fervendo em sua própria indiferença.

    — Como consegue falar assim?

    Heian olhou para Juno, que ainda o encarava com interesse.

    — Assim como?

    — Não sente nada por essas pessoas? Não consegue ver o sofrimento que é isso tudo? — Ela balançou a cabeça, ainda incrédula. — Como não sente tristeza vendo essas pessoas e… aqueles…

    — Antes de começar a chorar, antes de falar que sou insensível, quantas pessoas estão vivas aqui embaixo? — Heian ficou de costas para os corpos mutilados. — Quantas vezes você viu uma pessoa morrer na sua frente, implorando pela própria vida?

    Juno abaixou a cabeça, ainda irritada.

    Juno hesitou, sentindo a raiva escoar um pouco. Baixou os olhos, cerrando os punhos.

    — Nenhuma vez. Mas… — Ela ergueu o rosto, o olhar faiscando. — Isso não te dá o direito de falar com tanto desprezo dos mortos.

    Heian soltou um suspiro, desviando o olhar para as pilhas de cadáveres.

    — Uma vida vale mais do que a morte. O que importa agora não é lamentá-los, mas entender por que morreram. Se toda pessoa que tombar te abalar assim, então você precisa rever o motivo de estar aqui fora.

    — Heian — Leonardo interveio, o tom cauteloso. — Não precisa ser tão duro.

    — Precisa, sim. — Ele não tirou os olhos de Juno. — O mundo inteiro caiu, não só essa cidade. Os Felroz são bestas, predadores irracionais. Mas os verdadeiros monstros… — Seu olhar deslizou de Leonardo para ela. — São os vivos.

    O silêncio os envolveu. Apenas o estalar das esferas conjuradas por Heian preenchia o espaço, lançando sombras alongadas nas paredes. Juno respirou fundo, lutando contra o nó que se formava na garganta. Não sabia o que ele tinha passado, mas não podia ser tão cínico assim. Não podia simplesmente aceitar que não havia mais nada além de morte e desespero. Podia?

    Heian virou-se para o corredor escuro adiante, onde o sangue seco manchava as paredes como assinaturas grotescas.

    — Tenha respeito pelos mortos — murmurou. — Eles morreram para te mostrar que há algo que você ainda não entende. Então faça por merecer. Olhe ao redor, escute o silêncio. Cadê os monstros que viviam aqui? E por que aqui, logo nesse corredor, estão os adultos, e lá fora, as crianças?

    A respiração de Juno ficou presa na garganta. Ela não tinha uma resposta. Sentiu um arrepio percorrer a espinha.

    Leonardo permaneceu em silêncio, os olhos fixos nos cadáveres. Não precisou dizer nada. Heian não demonstrava emoção, mas seus dedos tremiam.

    — Acredito que não era para nós estarmos aqui. — Heian começou a caminhar entre os membros decepados e olhos vazios dos cadáveres. — Só que se voltarmos sem saber porque essas pessoas morreram, então, nós vamos estar desrespeitando tudo que essas pessoas fizeram para sobreviver.

    — Se eles voltarem — Juno seguiu Heian e Leonardo —, vou fazer questão de vingar essas pessoas.

    — Não faça promessas aos mortos — respondeu Heian. — Nem mesmo vazias, garota.

    Leonardo tocou o ombro dela, e balançou a cabeça.

    — Ele não tem culpa. Não fique irritada com ele.

    Juno não estava. Não com Heian. Daquele homem, ela sentia uma estranha pena.

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