Índice de Capítulo

    O vento sibilava através das frestas, trazendo consigo flocos de neve que morriam antes de tocar o chão. A tempestade não era forte, mas constante, uma muralha branca que tornava impossível enxergar além de alguns metros. Marcus manteve os olhos fixos na cidade, imóvel como uma estátua de gelo. Segurava uma maçã na mão enluvada, já coberta por uma fina camada de neve. Ficara exposto ao frio por meros segundos, mas o inverno era impiedoso.

    — Por que parece mais focado desde que começamos a morar aqui na Cuba? — Clara perguntou.

    O olhar dele permaneceu fixo na tempestade. O silêncio se estendeu tanto que ela pensou que ele fosse ignorá-la.

    — Quero apenas que as coisas saiam do jeito certo — respondeu por fim. Sua voz soou como um suspiro cansado. — Não preciso estar mais lá embaixo. Posso ficar aqui em cima.

    Clara apertou o próprio casaco contra o peito. O frio se infiltrava por qualquer brecha, por menor que fosse.

    — Aqui em cima é bem frio, Marcus. — A brisa cortante fez seu nariz arder. — Por que não pede para alguém revezar com você? Poderia descansar mais.

    Marcus não se moveu. Como alguém poderia se cansar apenas observando? Cansaço vinha de esforço, de carregar, de lutar, de suar. Ele apenas olhava. Apenas esperava.

    Lá embaixo, na segurança da Cuba, a vida seguia. Havia comida, havia calor, havia trabalho suficiente para manter as mãos ocupadas. Havia pessoas se adaptando, aprendendo, se agarrando a qualquer migalha de normalidade. Mas nada daquilo era sua função. O mundo sempre precisaria de mãos hábeis para consertar, plantar e construir. Mas também precisava de olhos.

    — Gosto de ficar aqui — disse, finalmente.

    — E gosta mesmo disso?

    Ele soltou um suspiro, apenas um fio de vapor escapando de seus lábios.

    — É o que eu sei fazer, Clara.

    Ela suspirou também, um som quase inaudível em meio ao vento. Marcus sentiu a inquietação dela, mesmo sem desviar o olhar.

    A cidade estava morta, mas nem por isso parecia menos ameaçadora. Havia algo na quietude que fazia sua nuca formigar, como se a própria ausência de movimento fosse uma armadilha prestes a se fechar.

    — Vai comer a maçã ou não?

    Ele a ergueu e cravou os dentes na polpa gelada, mastigando devagar. Sentiu o peso da carabina no colo e, por um instante, soltou-a ao lado. Clara lhe entregou outra fruta. Pera. O cheiro era levemente adocicado, fresco. Familiar.

    Ele mastigou a pera, franzindo a testa. O odor fez sua mente viajar para outro lugar, um lampejo de lembrança. Algo distante, mas não esquecido.

    — Luma veio para cá entregar isso?

    Clara parou, o sorriso surgindo antes mesmo da resposta.

    — Como descobriu isso?

    Marcus demorou a responder. Encarou a fruta entre os dedos e, por fim, deu de ombros.

    — É o cheiro. Me lembra da casa dela.

    A risada de Clara ecoou contra as paredes de concreto, um som leve, mas que soava deslocado no meio da cidade morta.

    — Conhece o perfume da casa de uma mulher, Marcus? Isso é bem inusitado.

    Ele resmungou algo incompreensível, mastigando o resto da fruta sem encará-la.

    — Vamos lá, quando foi a última vez que entrou lá?

    O vento cortou entre os prédios, trazendo consigo mais neve, mais frio. Marcus não respondeu. Apenas mordeu o último pedaço da pera e voltou a olhar para a cidade.

    — Nunca entrei na casa dela — murmurou Marcus, sem desviar os olhos da tempestade. — Mas já fiquei perto o suficiente para sentir o cheiro.

    Era verdade. Se Luma algum dia o convidasse para um chá, como fazia com Clara, ele temia nunca mais sair de lá.

    — Da última vez, comi uma pera também.

    Clara riu, o som leve e zombeteiro, mas Marcus já não a ouvia. Seus olhos estavam fixos em algo ao longe, um movimento entre os prédios, trezentos metros à frente. Pequeno, esquivo, deslizando na neve como sombras sem dono.

    Ergueu a mão, mandando Clara calar-se. Levantou-se, oscilando o peso sobre os pés, e puxou os óculos térmicos. Ajustou a lente, apertou os olhos.

    Movimentos dispersos se consolidavam em uma única marcha, uma horda atravessando a rodovia. Mas a visão lhe traiu: o calor deveria estar ali, corpos em movimento deveriam pulsar em vermelho, laranja, amarelo. Mas só havia escuridão. Nenhum sinal de vida.

    O frio em sua espinha foi mais gélido do que a própria tempestade.

    Com um puxão rápido, ativou o Cubo de Comunicação. Seu campo de energia se expandiu, interligando-se aos demais portadores. No mesmo instante, ouviu Arsena e Duna discutindo na frequência.

    — Calem-se — cortou, ríspido. — Algo está se movendo lá fora. Não tem calor. Nenhum. Mas são muitos. Estão marchando juntos, no meio da rodovia.

    Silêncio. Um silêncio que não trazia alívio, apenas a inquietação de quem compreende tarde demais o que já estava à espreita.

    — Eles são pequenos? — Gerhman perguntou, hesitante. — E os olhos deles… brilham?

    Havia algo na voz dele, um receio abafado.

    — Por favor, espero que sua resposta seja não.

    Marcus retirou os óculos, voltando a encarar a tempestade. O véu branco dançava sem piedade, cobrindo a cidade com seu silêncio mortal. Mas mesmo a brutalidade da nevasca não apagava os brilhos esverdeados que piscavam no meio do nada.

    — Positivo — respondeu, a voz tensa. — São verdes.

    — Merda. Merda. Merda. — Gerhman respirou fundo. — Dante, está ouvindo isso? Prepare todos para ficarem dentro das casas. Ninguém sai. Nem mesmo se ouvirem vozes.

    Houve um segundo de hesitação. Um segundo que pesou como chumbo.

    — O que está acontecendo? — A voz de Dante soou entrecortada, distante. — O que são essas coisas?

    Mas foi Duna quem respondeu, e sua voz parecia envelhecida, puxada do fundo de uma lembrança maldita.

    — Sugadores — disse. — Ah, que lembranças terríveis…

    Marcus já apontava para Clara, indicando que ela descesse pela corda. O tempo para perguntas havia acabado.

    Ela hesitou por um momento, os olhos arregalados, mas não discutiu. Segurou a corda e começou a descida.

    Marcus voltou o olhar para a cidade. A rodovia cortava a paisagem, uma cicatriz cinzenta na pele branca da neve. O caminho levava direto à Cuba.

    — Estão vindo para cá — disse. — O que são essas coisas?

    Duna suspirou, um som pesado, resignado.

    — Garoto, eu só ouvi lendas — murmurou. — Dizem que quando os Sugadores emergem, significa que não há mais Felroz para caçá-los. E da última vez que isso aconteceu…

    A voz de Vick ecoou, interligada à mente de Dante e, agora, à dele.

    — Foi quando a humanidade foi extinta.

    O frio de repente pareceu pior.

    — Sugadores são criaturas brutais — continuou Vick. — Eles caçam qualquer coisa viva. Para crescer. Para evoluir.

    O silêncio se alongou.

    — Minha recomendação? — Vick sussurrou. — Fiquem o mais longe possível.

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