Capítulo 209: Chamas de Vida
O fogo dançava ao redor dele, lambendo sua pele como se fosse parte de sua carne, de seu ser. A dor já não existia. Restava apenas o calor, pulsando como um segundo coração.
“As chamas são parte da sua própria natureza.”
O eco da voz de Sartirus ressoou em sua mente, áspera como madeira velha arrastada pelo vento. Ele podia quase sentir o cheiro de tabaco barato e suor que sempre envolvia aquele velho homem, a lembrança de sua risada rouca enquanto repetia as mesmas palavras, vez após vez.
“A vida é feita das chamas. Conter o fulgor no peito é o mesmo que matar a si mesmo. Deixe a chama queimar, Heian.”
E agora ele entendia.
As labaredas que se entrelaçavam ao seu redor não eram apenas fogo. Eram vontade. Eram sacrifício. Eram a fagulha da vida se tornando morte para que outros pudessem viver.
Heian cerrou os dentes. Seus pés afundavam no chão rachado enquanto a combustão crescia em sua volta, estalando como trovões subterrâneos. O metrô rugia como se a terra estivesse viva, um inferno se formando a partir de sua própria existência. Ele sentia o próprio corpo sendo consumido, queimado de dentro para fora. A carne gritava, os ossos latejavam sob a pressão do poder, mas ainda assim ele não cedia.
“Por que continua tentando se segurar quando seu coração pede que entregue a si?”
A voz de Sartirus parecia mais próxima agora, como se estivesse ali, de pé, logo atrás dele. Heian fechou os olhos. Por um instante, não estava no metrô em chamas. Estava em Rapier, de volta à fortaleza que um dia chamara de lar.
“Lembra do apelido que demos a você?”
Ele lembrava.
Cerberus.
O cão do inferno. O guardião da morte.
Era isso que ele sempre fora.
Seu corpo tremulou, as chamas vibrando em resposta ao reconhecimento. Os olhos de Heian se abriram, e neles, um brilho profundo refletiu a verdade. Não havia mais medo. Não havia mais hesitação.
Apenas fogo.
O cheiro de carne queimada enchia o túnel como um manto sufocante. O fogo lambia as paredes de concreto, fazendo-as suar e rachar, enquanto os gritos das criaturas consumidas pela labareda se misturavam ao estalo da destruição. Mas a coisa diante de Heian não queimava.
Ele abriu os olhos, e a viu.
Alta, magricela, sua pele uma colcha de retalhos costurada a partir de pedaços que outrora pertenciam a outros. O brilho esverdeado de seus olhos escorria pelas órbitas afundadas, como se a luz estivesse presa dentro de uma carcaça seca. Não tinha boca, mas falava. A voz não soava no ar — retinia na mente de Heian, como um sussurro que se alojava no fundo da alma.
— Você é um humano bem estranho. — A coisa moveu-se um passo à frente, sem pressa. O fogo deveria tê-la consumido, mas apenas se dobrava ao seu redor, como se não tivesse forças para tocá-la. — Não um inteligente, como já vi outros, mas com um poder tão forte. Ele queima sua carne, queima sua vida… e você continua forçando. Humanos não são fortes assim. Não desde…
A voz sumiu, deixando o final no ar, como se a resposta estivesse enterrada em um passado que Heian jamais conheceria.
Seus punhos tremeram. O corpo queria recuar, queria fugir. Mas o fogo era seu. Era parte dele. Então, por que a criatura não queimava?
— Como pode humanos serem tão frágeis e tão fortes ao mesmo tempo?
A risada veio sem que sua boca se movesse. O som reverberou no peito de Heian como um trovão distante. Os passos pesados fizeram as chamas dançarem e se contorcerem no chão queimado.
— Queima meus filhos e irmãos depois de ter nos salvado, humano? Não, você tem um nome também, como todos nós tivemos antes. Mas está tentando nos matar.
A criatura se inclinou para frente, a cabeça raspando no teto do túnel. A pele estalou, repuxando-se sobre ossos deformados. Estava tão perto que Heian podia sentir um frio gélido irradiando dela, uma presença que não pertencia ao mundo dos vivos.
— Você tem medo de mim. — Não foi uma pergunta. Foi uma verdade cravada na carne. — Tem medo do que eu posso fazer.
A energia dentro do peito de Heian se agitava, quente e violenta, como uma fera enjaulada prestes a romper suas correntes. A criatura percebeu.
— Sua Energia Cósmica é tão brilhante, eu a vejo. Seu peito está cheio dela, liberando como se fosse a última coisa que fará.
Os olhos verdes brilharam mais forte.
— Por que quer tanto morrer?
A pergunta foi um golpe. Heian sentiu os joelhos vacilarem, uma pontada no fundo da mente.
— Por que está queimando tudo o que está dentro do seu coração para matar os meus iguais?
A fera inclinou a cabeça, curiosa.
— Qual o valor da morte? Não sente orgulho de estar vivo?
O peso daquelas palavras era mais esmagador que qualquer força que Heian já enfrentara. Ele não queria morrer. Ele nunca quis. Mas se sua morte significasse que os outros viveriam, então talvez fosse um preço justo.
Não era?
— Por que tem medo de mim? — O monstro sussurrou.
A cabeça desceu mais, os olhos fitando os seus. Um abismo de trevas encarando a chama trêmula de um moribundo.
— Não quer ser como eu?
Heian não respondeu.
— Nunca. — Ele comprimiu os lábios. — Nunca faria isso.
A criatura pareceu sorrir mesmo a boca não mexendo. E quando esticou seu braço, foi de forma violenta, batendo contra o pescoço de Heian e o jogando contra a parede. As chamas se apagaram na hora, e o estalar do concreto o estourou.
Num grito de dor, Heian sentiu a outra mão da criatura segurar seu peito, as garras tentando penetrar sua carne. Ele abriu a boca, se debatendo, mas a carne endureceu, feito metal, travando o avanço dela.
A criatura encarou aquilo com muito interesse, observando lentamente a carne humana tentando se adaptar a dor que sentia. Ao mesmo tempo, a vitalidade de Heian ia aumentando gradativamente. O corpo retornando ao normal.
— Sua Energia é limpa demais — disse ela. — Não merece isso. Não merece ser tão abençoado quando todos nós fomos… amaldiçoados. Por que você ganhou esse poder e nós… ficamos assim?
Mesmo carbonizados, os corpos pareciam se mexer, tentando alcançar Heian a qualquer custo. Não pareciam querer subir para a superfície, apenas encontrar Heian.
A criatura se aproximou mais, seu bafo de carne podre obrigou o homem a virar o rosto.
— Você… vai se juntar a nós. Vai nos comandar. Vai nos liderar. Vai…
O braço da criatura era frio e áspero, uma junção de peles secas e mortas, repuxadas como couro velho sobre os ossos. Quando Heian o segurou, sentiu a textura enrugada e dura, como madeira enegrecida pelo tempo. Os olhos verdes, fundos como poços sem fundo, o encaravam. Não havia ódio neles, nem raiva. Apenas uma fome sem fim.
O medo se agarrava à sua espinha como garras invisíveis. Era isso que a coisa queria. Ele sabia. Aquele tipo de horror não vivia apenas da carne, mas do pavor que inspirava nos vivos. Mas Heian não cederia.
Não agora.
Ele apertou a mão ao redor do braço da criatura, puxando-a para perto, até que o fedor pútrido enchesse seus pulmões, até que pudesse ouvir o roçar das peles costuradas se mexendo a cada respiração.
— Eu já tenho um Comandante. — Sua voz saiu firme, sem vacilar. Ele puxou o monstro ainda mais, encarando os olhos verdes de perto. — E ele não se parece nada com essa coisa feia que você é.
A criatura riu. Um som áspero, distorcido, como se um corvo tivesse aprendido a imitar a voz humana.
— Ah, não se parece mesmo!
A cabeça girou no mesmo instante em que a lâmina cortou o ar. O braço que segurava Heian foi arrancado no mesmo golpe, a carne negra separando-se do ombro sem resistência. O monstro deu dois passos para trás, a cavidade vazia onde estivera o membro se contorcendo como um ferimento seco.
E então, a lâmina veio outra vez.
A espada encontrou seu pescoço, afundou até o cabo, atravessando a carne morta como um espeto de ferro em cinzas. A lâmina perfurou de um lado a outro, um golpe que teria sido fatal a qualquer coisa viva. Mas o monstro não era vivo.
A criatura apenas inclinou a cabeça, os olhos verdes ainda brilhando na escuridão. O som que veio em seguida não foi um grito, nem um rugido, mas uma risada. Profunda, gutural, vinda de algum lugar que não deveria existir.
Devagar, um de seus braços restantes agarrou a lâmina cravada em sua garganta e a puxou para fora como quem arranca um espinho do pé. O metal reluziu na luz tremeluzente das chamas, mas não havia sangue, nem qualquer resquício de carne.
Nada.
A criatura jogou a espada para o lado como se fosse um brinquedo quebrado.
E então, seus olhos desviaram.
O velho homem estava ali. Surgido da sombra e do fogo, com uma expressão fria, inabalável. Mas o monstro não via um guerreiro.
Ele via carne.
— Parece que mais refeições chegaram. — A voz escorreu como óleo negro. Lentamente, virou-se para Heian e para o recém-chegado, as chamas dançando nas órbitas verdes. — E olha só… temos muitas bocas famintas por aqui.
No fundo do túnel, na escuridão para além das chamas, algo se mexeu.
Muitas coisas.
E todas estavam famintas.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.