Capítulo 211: Acordo Subterrâneo
Dante ergueu a voz, ecoando pelo ambiente caótico.
— Juno! — chamou, firme, atraindo o olhar de Marcus e Clara, que estavam distantes, ocupados com suas próprias tarefas. — Venha aqui.
Juno não hesitou. Desprendeu-se de Leonardo, que a segurava próximo à rodovia, e se lançou no ar. Seus movimentos eram ágeis e precisos, como se os raios que cortavam o céu fossem extensões de seu corpo. Ela aterrissou com suavidade, de pé, bem diante de Dante e do monstro que os observava com olhos vazios. A garota engoliu em seco ao encarar o Rupestre, sua presença macabra pairando como uma sombra densa.
— Mande Veronica sair — ordenou Dante, sua voz carregada de urgência.
Antes mesmo que a ordem fosse concluída, fragmentos azuis começaram a se materializar ao redor de Dante, formando a figura etérea de Veronica. A IA Superior surgiu, sua expressão habitual de desdém voltada para o Rupestre. Ela flutuou por um momento, como se estivesse avaliando a criatura, antes de pousar levemente sobre o Sugador. Seus lábios se estreitaram em um misto de desgosto e curiosidade.
— E pensar que eu não veria um de perto depois de tantos anos — murmurou Veronica, sua voz ecoando como um sussurro frio. — Um Rupestre, como diriam os antigos. Amaldiçoado desde sempre a caminhar sem vida.
As palavras dela não provocaram reações além de um silêncio pesado. O Rupestre permaneceu impassível, seu rosto inexpressivo, mas o exército de criaturas ao redor pareceu reagir. Um rangido coletivo ecoou, como se todos estivessem conectados, compartilhando uma visão que apenas eles podiam compreender.
— O que você quer, velhote? — perguntou Veronica, desviando o olhar com desinteresse. — Não vou dizer nada se não tiver vontade.
Dante avançou, fechando a distância entre eles. Seus olhos fixos nela, como se tentasse arrancar a verdade à força. Veronica, mesmo intangível, recuou dois passos, surpreendida pela intensidade de sua presença.
— Quero que me fale sobre tudo o que você sabe sobre os Morbides — exigiu Dante, sua voz firme, mas carregada de uma urgência que não podia ser ignorada. — Por que não falou antes?
Veronica suspirou, como se estivesse cansada de carregar o peso de segredos antigos.
— Lendas não deveriam ser revividas — respondeu, sua voz carregada de amargura. — Não quando assustam crianças e afastam os homens. O Rastro sempre mostrou que quanto mais os humanos desejam, menos saciados ficam.
Dante não se deixou intimidar. Ele se aproximou mais, seu olhar penetrante.
— Por que não disse sobre essas criaturas? E por que parece que sente medo de falar disso? — questionou, sua voz agora um pouco mais áspera. — Pare de ser covarde.
Veronica riu, um som seco e sem humor.
— Covarde? — repetiu, sua voz cortante. — Está chamando a única criatura que se manteve viva por mais de 500 anos de covarde? Eu sou a única capaz de dizer o que realmente aconteceu. Esses monstros foram presos, muito antes dos Morbides destruírem tudo. Esta cidade já foi um berço para a criação de tecnologias, então, não me chame de covarde nunca mais.
— Então, fale a verdade pra mim — insistiu Dante, sua voz agora mais suave, mas ainda carregada de determinação.
Veronica olhou para ele, seus olhos brilhando com uma mistura de raiva e tristeza.
— Eu não posso dizer quais homens foram os mais corajosos ou os mais covardes — começou, sua voz pesada. — Mas eu vi quem ficou para lutar quando não havia chance de vitória. Idiotas. Todos eles eram idiotas. E sabe o que as mentes mais inteligentes acharam ser a melhor ideia? “Dê as crianças”, disseram. “Elas são menores.” Todos os dias, crianças eram depositadas dentro de barris, guardadas como oferendas. Idiotas, deram seu futuro para manter o presente. Essa sempre foi a maior habilidade dos humanos: sacrificar o futuro promissor por um presente que não tem futuro.
Juno e Dante permaneceram em silêncio, absorvendo as palavras de Veronica. Foi o Rupestre quem quebrou o silêncio, sua voz rouca e carregada de uma dor antiga.
— A nossa maldição veio de uma promessa, uma promessa de futuro, dada pelo Rastro. O que você sabe sobre o Rastro?
Veronica revirou os olhos, claramente incomodada.
— Não cite o Rastro, criatura — respondeu, sua voz cortante. — Eu estava lá quando ele apareceu. E estarei lá quando ele se encerrar. Não existem promessas, não existe justiça, não existe calamidade dada. Tudo veio do Rastro, e nada é dele também. A Energia Cósmica veio sem pedir permissão, e as criaturas apareceram semanas depois, famintas. Felroz, Sugadores, Rupestres, Morbides e Kreios.
O Rupestre concordou devagar, como se cada palavra de Veronica ecoasse em sua memória.
— Me lembro dos humanos que mataram meus filhos e irmãos — disse, sua voz carregada de uma tristeza profunda. — Eles não nos ouviam, não aceitavam nossos pedidos de desculpas, nem nossos suplicas de ajuda. Nos atacaram, como vocês fizeram, e nós demos fim a eles. Matamos todos que sobraram, por medo. Não somos feitos de carne, não temos sangue, não temos alma. Somos…
— Uma maldição fedida — completou Veronica, seu tom carregado de desprezo.
— Cale-se, IA — rosnou o Rupestre, sua voz ecoando como um trovão distante.
Juno e o Rupestre voltaram seus olhares para Dante, que agora estava visivelmente irritado.
— Acha que está no direito de julgar quem vive ou quem morre? Quem é justo ou injusto? — questionou Dante, apontando para Veronica. — Você perdeu para mim, lembre-se disso. E perdeu querendo erradicar todos os seres vivos. O que te faz diferente dele? Hipócrita.
A falsa ideologia de Veronica sempre deixara Dante irritado. Ela sempre defendera que metade do mundo deveria morrer e a outra metade sofrer. Se fosse apenas para que todos morressem, ela não teria aceitado ficar com Juno. A decisão de mantê-la por perto, no entanto, provara ser a melhor que ele poderia ter tomado naquela hora.
— Está irritado porque eu estou viva e todas as outras pessoas não? — provocou Veronica, sua voz afiada. — Rupestre está aqui para provar isso. Ele foi preso porque sua vitalidade foi roubada, deram de comer para os Morbides, e acabou. Essa é a história. Fim. Quer mais? Você não destruiu uma cidade inteira? O que te faz diferente dos Felroz?
Dante respondeu na hora, sua voz firme e carregada de convicção:
— Eu sei por que estou destruindo lugares. Eles não. Essa é a diferença. Diferente das criaturas, nós temos senso de empatia. Sabemos quem deve permanecer e quem não. Se eu fosse esse monstro que você está tentando pintar, nenhum dos moradores que viviam no meio da cidade estariam abrigados.
— Isso tudo é difícil para você, não é, velhote? Quer construir uma vida, mas não tem nada que possa fazer. O tempo, as criaturas, a falta de alimento, tudo é seu inimigo. E então, acha que um Rupestre surgindo com essas criaturas… — e apontou ao redor. – Vai ter algum tipo de esperança.
Não sabia como ela podia ser tão cínica. Tão focada em um lado obscuro. Como… os seres poderiam ser tão deprimidos e pessimistas com a vida dessa forma? Até dentre dos seres humanos, existiam seres parecidos com ela.
— Rupestre, eu lhe darei a Pedra Lunar. – Dante esticou o objeto dourado na direção dele. – O que peço em retorno é que ajude a cidade. Fique debaixo da terra, limpe essa terra inteira, e eu darei o que conseguir. Existem quinze Felroz que comeram Pedras Lunares e evoluíram, se achar elas, eu juro. – Ele apertou a Pedra Lunar, mostrando sua fé e confiança. – Juro por tudo que é mais sagrado que se um desses Morbides voltar pra cá, eu mesmo vou destroçar ele em pedaços. Pode confiar em um humano?
Todos que possuíam um Cubo de Comunicação ouviram as palavras de Dante, mas ninguém respondeu. Não era necessário, Dante fazia o que podia para manter a cidade de pé, e o que ele oferecia ao Rupestre era o mesmo que queria de volta.
Segurança.
— Um dia, há muito tempo, conheci um homem honrado, humano. – Os dedos do Rupestre enrolaram lentamente ao redor da Pedra Lunar. — E sonhei que havia um outro que poderia me trazer a verdadeira paz.
Era suficiente para Dante.
— Então, temos um acordo?
Ouviu-se uma risada baixa, mesmo com a boca da criatura não se mexendo.
— Temos, humano. Darei a você as coordenadas do que precisar debaixo dessas cidades, quando quiser. – E inclinou-se para ele. — E me dará o que eu preciso para curar minha maldição. As Pedras Lunares, preciso delas.
— E serão suas.
Dante e Rupestre apertaram as mãos, encarando um ao outro.
— E vou ignorar que quase matou Heian – disse Dante, mostrando um sorriso. – Porque se tivesse machucado ele de verdade, eu teria acabado com todos vocês aqui mesmo.
O próprio Rupestre não negou a afirmação dele. Vendo a confiança de suas palavras e sua postura, não poderia duvidar. Ele realmente poderia. E faria se fosse necessário.
Os dois tiveram certeza ao apertar a mão um do outro: aquela tinha sido uma aliança bem arriscada, que teria benefícios bem longos.
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