Capítulo 216: Viajantes
— Kalish.
A voz de Virgo se expandiu pelo salão antes mesmo que o homem tivesse tempo de cruzar a porta completamente. Ela abriu os braços em um gesto largo, deixando o torso exposto de propósito, e o recebeu com um abraço apertado. O perfume doce que usava, sempre o mesmo, grudava nas roupas de seus convidados como um carrapato, difícil de se livrar.
— Que bom que veio me ver. — Sua voz tinha um tom levemente provocativo. — Já estava preocupado que tivesse perdido a memória.
Os dois se separaram com um sorriso, um breve momento de nostalgia silenciosa entre eles.
— Nunca vou esquecer da senhora e nem da sua ajuda.
O toque suave da mão dela encontrou o queixo e a bochecha áspera de Kalish, como se analisasse sua sinceridade, e então lhe deu um tapinha leve no rosto.
— Deixa de ser falso, velho.
Ela indicou uma poltrona com um aceno casual e deu a volta na mesa com elegância, sentando-se do outro lado. Suas mãos seguraram firme as extremidades da mesa enquanto seus olhos, intensos e calculistas, pousavam sobre Kalish com um sorriso tentador. Era raro vê-la de tão bom humor. Ele sabia que seu temperamento era pior no início do mês, quando os negócios ainda estavam incertos.
— O que quer?
Kalish cruzou as pernas, repousando os braços largos sobre as abas da poltrona, assumindo uma postura relaxada, mas não desprovida de autoridade.
— Vim falar de um dos seus clientes. — Ele fez uma pausa, observando o leve arquear de sobrancelha dela antes de continuar. — GreamHachi. Soube do ocorrido?
Virgo bufou, revirando os olhos.
— Claro que sim. Quem não saberia que a maluca da Maethe morreu? — Ela deu um sorriso enviesado. — Uma benção, pra ser sincera. Eu odiava dividir minha moralidade com uma criatura tão horrível.
Ela o fitou de lado, curiosa.
— E o que você sabe, Soberano?
Kalish mediu as palavras. Sabia sobre o Demônio de Kappz, sabia que havia algo muito maior por trás da destruição de GreamHachi, mas não estava ali para compartilhar tudo.
— Não acho que sei mais do que você. — Sua voz era neutra, mas carregava um peso sutil. — Na verdade, vim pedir que seus homens não façam muitos movimentos do lado de fora. Pelo que parece, os Felroz ou alguma outra criatura andam rondando o subsolo. Ainda não sabemos exatamente o que é.
Virgo abaixou a cabeça, pensativa. Seus braços, antes erguidos, agora se cruzavam enquanto ela se recostava lentamente na cadeira.
— Eu não planejava ir até lá, mas a morte da Maethe fez meu negócio cair bastante. Ela tinha uma demanda grande, mesmo sendo uma comerciante pequena. A cidade dela era estranha, mas sempre comprava material.
Kalish inclinou-se um pouco para frente, mantendo o tom de voz controlado.
— Podemos procurar um novo comprador. Talvez nos Portos Filiados.
Foi como se tivesse cuspido um xingamento.
— Nossa… — Virgo estreitou os olhos. — Pra você sugerir isso, a situação dessa cidade realmente virou uma merda em cima de merda.
Com um gesto, estendeu a mão na direção de uma das prateleiras ao lado. Um livro grosso se agitou, soltando-se do encaixe e voando suavemente até sua palma. Ela folheou algumas páginas com desinteresse antes de erguer o olhar novamente.
— Eu lembro que havia um homem no topo dos outros dois comerciantes da região. Quem mesmo?
— Meniack Silas. Mas duvido que consiga algo com ele.
— Por quê?
— O senhor Silas tem um comércio de ervas e medicamentos raros, mas detesta os ‘Homens Continentais’ — ou seja, nós.
Era uma grande rede de comércio, mas Silas sempre manteve distância de qualquer envolvimento político ou alianças forçadas. Ele guardava seus segredos a sete chaves, um homem de princípios rígidos e, ao mesmo tempo, de uma generosidade incomum para com aqueles que precisavam.
Kalish nunca o entendeu completamente. Sua postura reservada contrastava com sua bondade quase obsessiva.
— E o segundo? — Virgo ainda não parecia convencida. — Stannis, não era? Explorador das Ruínas Meriados.
Kalish balançou a cabeça.
— Paradeiro desconhecido. Ninguém sabe onde ele está.
Ele apontou para o livro nas mãos dela.
— Nenhum nome dessa lista vai te dar o que precisa. A verdade é que Maethe era uma das poucas comerciantes que suportava comprar todos os meses com a gente. Agora, não temos mais essa estabilidade.
Os lábios de Virgo se contraíram em uma careta exagerada.
— Impostos e mais impostos.
— Exatamente. — Kalish descruzou as pernas e se levantou, esticando o braço para pegar o casaco pendurado no cabide atrás dele. — Diga aos dois Soberanos para pegarem leve. Eles virão até você de qualquer maneira.
Ele vestiu o casaco com calma, sentindo o peso do tecido sobre os ombros. Lá fora, o frio ainda era rigoroso, e sua vitalidade já não era mais a mesma de anos atrás.
Quando chegou à porta, lançou um último olhar para Virgo.
— O inverno chegou. Lembre-os disso.
Ela suspirou, desanimada, e acenou displicentemente com a mão.
— Está bem, amigo. Vá com Deus.
Kalish não respondeu, apenas seguiu pelo corredor. Do outro lado, um homem de postura rígida e vestimenta semelhante o aguardava em silêncio. Saudou-o com um breve gesto e, sem trocarem palavras, seguiram juntos para a saída da Casa do Comércio Cego.
Ao cruzarem os degraus da entrada, a neve acumulada começou a salpicar os ombros de seus casacos. Uma carroça os esperava logo à frente. O guarda abriu a porta para Kalish, que entrou rapidamente, protegendo-se do vento cortante. O outro homem deu a volta e entrou pelo lado oposto.
Assim que se acomodaram, a voz do subordinado soou firme, mas atenta:
— Senhor, temos cinco homens aguardando no portão para sair. Damos sequência à missão?
Kalish ajustou a gola do casaco, respirando fundo antes de responder.
— Sim. Precisamos conhecer os novos moradores de Kappz.
A carroça começou a se mover, suas rodas deslizando sobre o solo congelado, levando-os rumo ao desconhecido.
I
A porta da Cuba se abriu com um rangido pesado, e Marcus atravessou o limiar arrastando algo atrás de si. Sobre os ombros largos, uma corda grossa se estendia até o chão, onde o peso morto de sua captura deixava um rastro viscoso. Sua roupa branca, agora manchada de um líquido negro e espesso, grudava na pele como se absorvesse a substância. A cada passo, suas botas faziam um som pegajoso contra o piso, como se tivessem caminhado por piche.
Assim que cruzou o arco que separava a entrada do hall principal, o ambiente, antes preenchido por murmúrios dispersos, foi tomado pelo silêncio. Então veio o primeiro grito sufocado. Pessoas próximas recuaram instintivamente, algumas levando as mãos à boca, outras segurando armas improvisadas sem nem perceber.
O que Marcus arrastava era um Felroz.
Mesmo imóvel, a criatura ainda evocava a imagem do demônio que assombrava os sonhos de muitos ali. Seu corpo desfigurado parecia se retorcer em ângulos impossíveis, com a pele escura e irregular, quase metálica sob a luz fraca do ambiente. Os olhos mortos, semiabertos, refletiam um brilho opaco que fazia o estômago de alguns embrulhar.
Marcus não deu explicações. Apenas largou a corda de uma vez, permitindo que o corpo da fera caísse pesadamente ao chão. O impacto reverberou pelo salão como um golpe seco.
Ele se jogou sentado, as pernas esticadas, os ombros relaxando como se toda a tensão que o mantinha de pé tivesse sido liberada de uma vez. Sua respiração ainda era pesada, e ele ergueu a cabeça para encarar os rostos aterrorizados ao redor.
— Chamem Dante. — Sua voz ecoou pelo espaço, carregada de cansaço e urgência. — Agora.
Um som de sino soou. E atrás de Marcus entrou uma pequena carruagem, erguida por duas mãos, e um casal de desconhecidos foi observado por todos os moradores. Eles acenaram, tímidos, mas mostraram suas mãos eram desgastadas pelo tempo, queimaduras e algo que as tornava verdes.
E na carrocinha atrás de si, vários fracos, com um cheiro bem forte de ervas e também elixires de cores variadas.
— Olá. Eu sou Silas. – As outras pessoas acenaram para os dois. – Posso me abrigar por aqui hoje?
— Cale a boca e espere – respondeu Marcus sem se virar. – Idiota da carrocinha.
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