Capítulo 217: Senhor Doutor
Dante desceu as escadas apressadas, os passos firmes ecoando pelo corredor. Atrás dele, Clara acompanhava o ritmo, a expressão carregada de preocupação. Nenhum dos dois vestia suas roupas habituais. Dante usava uma calça folgada, quase improvisada, junto de um macacão surrado, enquanto Clara estava em trajes simples, longe de sua postura diária mais austera.
Os olhares no salão não se fixaram apenas na presença deles, mas na forma como chegaram juntos. Murmúrios discretos se espalharam entre os presentes, reforçando as suspeitas já antigas de que havia algo entre os dois. No entanto, dessa vez, ninguém demonstrou surpresa. O que quer que fosse, já era esperado.
Clara se adiantou antes mesmo que Dante pudesse falar. Ajoelhou-se ao lado de Marcus, avaliando-o com os olhos afiados.
— Está ferido? O que aconteceu? — Sua voz era urgente, quase uma ordem disfarçada de preocupação.
Marcus respirou fundo antes de responder, a fadiga evidente em cada movimento. Sua mão trêmula se estendeu na direção do corpo inerte da criatura caída.
— Eles… — murmurou. — São viajantes.
Dante ergueu o olhar, escaneando o salão até encontrar Arsena e Gerhman entre os espectadores. Um aceno curto bastou para que os dois entendessem a ordem não dita. Sem hesitar, atravessaram o espaço e se posicionaram ao lado de Marcus.
— Levem-no até Simone. — Dante ordenou, sua voz firme.
Os dois não perderam tempo. Arsena e Gerhman o ergueram com facilidade, amparando seu peso desgastado. Quando começaram a arrastá-lo para fora, Marcus, mesmo tonto, virou a cabeça para encará-los uma última vez.
— Pague sua promessa. — Ele apontou a outra mão, o olhar febril preso a Dante.
Clara hesitou apenas por um segundo antes de assentir e seguir com Marcus, seu foco voltado totalmente para a condição dele. Dante, no entanto, permaneceu no salão. Sua atenção agora recaía sobre os recém-chegados.
Leonardo se aproximou por trás, os passos lentos e calculados. Sua mão já repousava no cabo da espada, mas ele não a desembainhou. Os viajantes estavam ali, parados, quase inseguros, as mãos unidas entre si como se aquilo fosse a única coisa que os mantinha de pé.
Dante franziu o cenho, prestes a questioná-los, quando uma voz ecoou pelo salão.
— Leonardo, você…
A porta de um dos quartos se abriu, e Fabiana surgiu no corredor. Seus olhos encontraram os dos estrangeiros, e o choque foi instantâneo. Por um momento, ninguém se moveu. Então, ao mesmo tempo, os três apontaram um para o outro, descrentes.
— Fabiana…? — O sotaque dos viajantes era carregado, diferente de qualquer outro que Dante já tivesse ouvido em Kappz. A voz de um deles tremeu. — Você… está viva?
O rosto de Fabiana se contorceu em puro espanto.
— Tio Silas?
Dante ergueu uma sobrancelha, observando enquanto a mulher, que até então sempre fora reservada, atravessava o espaço com pressa e os envolvia em um abraço apertado. Seus dedos tocaram os rostos dos dois, como se precisasse sentir para acreditar que estavam ali.
Leonardo, que momentos antes estava pronto para desembainhar sua lâmina, mudou completamente. Aproximou-se com um movimento contido, erguendo um braço num gesto respeitoso, os olhos fixos no homem que chamavam de Silas.
Dante observava a cena sem dizer uma palavra, mas o conselho de Gerhman reverberava em sua mente como um eco inquietante.
“Fabiana Vulkaris sabe mais do que aparenta.”
Ele permaneceu quieto, e quando Leonardo e ele trocaram olhares, fez uma menção para a sala de conferência e reuniões. Dante saiu caminhando, de volta ao quarto. Entrou e pegou seu casaco, voltando a descer as escadas e indo em direção a enfermaria.
Assim que entrou, deu de cara com Marcus parado, segurando sua carabina. A arma estava destroçava, a madeira corroída por dentro cheia buracos, como se ela tivesse explodido de dentro pra fora.
Ele a segurava com cautela, com pena.
Arsena e Gerhman nada disseram, mas o clima era pesado.
— O que aconteceu lá? — perguntou Dante, a voz carregada de expectativa.
Marcus inspirou fundo, como se precisasse se forçar a engolir a raiva antes de responder. Seu maxilar estava travado, e quando finalmente abriu a boca, sua voz saiu carregada de rancor.
— Aquele… velhote. — O desprezo era quase palpável. — Ele estava no meio da cidade. Caminhando. Como se fosse um maldito passeio. Tinha até aquela merda de carrocinha dele, parando pra conversar com todo mundo.
Ele cerrou os punhos, os nós dos dedos esbranquiçando.
— E então o Felroz que Rupestre nos indicou apareceu. Bem ao lado dele.
A tensão na sala se intensificou. Dante observou quando Marcus pressionou os dedos contra a ISE, prendendo-a com mais força no próprio controle, como se a qualquer instante pudesse dispará-la de novo.
— Aquele desgraçado me fez usar uma munição de tanque. — Marcus levantou a cabeça, e seus olhos estavam vermelhos, lacrimejantes. Mas não era apenas raiva; havia algo mais profundo ali. — Essa… era a arma do meu pai.
Um silêncio pesado caiu sobre todos. Dante olhou de relance para Arsena e Gerhman, então fez um gesto com a cabeça, e os dois saíram sem questionar.
Sozinhos, Dante respirou fundo e se abaixou, fixando o olhar na arma destroçada. Com calma, esticou a mão para pegá-la, mas Marcus instintivamente segurou mais forte, recusando-se a soltá-la. Dante não insistiu. Apenas baixou o braço e se levantou.
— Posso te fazer um favor — disse, a voz controlada. — Mas, pra isso, você vai ter que me entregar essa arma.
Marcus riu, sem humor.
— Eu não quero favores. Sabe o quanto isso me custou?
— Sei. — Dante inclinou a cabeça levemente e forçou Marcus a erguer o olhar. — E é exatamente por isso que eu entendo a importância dessa arma. Então, de homem pra homem… me entregue a ISE, e eu vou te ajudar com isso. Você nos deu uma oportunidade, e vai receber duas vezes por isso.
Marcus hesitou. Seu olhar se perdeu por um instante, os dedos ainda cravados no cabo da arma. Ele respirou fundo, o peito subindo e descendo devagar, até que, por fim, esticou a ISE.
Dante a pegou sem uma palavra e se virou para sair.
— Arsena, fique com ele. Gerhman, comigo.
Os dois responderam com acenos rápidos. Arsena permaneceu ao lado de Marcus, enquanto Gerhman seguiu Dante, acelerando o passo para acompanhá-lo. Quando começaram a se aproximar da sala de reuniões, Gerhman se adiantou e parou na frente de Dante, obrigando-o a interromper a caminhada.
— Ei. Sei que você tá puto — disse, medindo as palavras. — Mas não precisa disso. Podemos conversar, chegar num acordo.
Dante deu um passo para o lado e seguiu sem dar resposta. Gerhman praguejou baixinho antes de acompanhá-lo de novo.
Quando empurrou a porta e adentrou a sala, os dois visitantes estavam sentados à mesa. Assim que o viram, suas expressões se transformaram em puro espanto. Fabiana, que estava de pé ao lado, reagiu imediatamente.
— Dante!
Todos os olhares recaíram sobre o objeto que ele carregava. A ISE, destroçada, repousava em suas mãos como um símbolo de algo muito maior do que apenas uma arma quebrada.
Fabiana tentou dar um passo à frente, mas Dante foi mais rápido. Ele ergueu a ISE e a jogou sobre a mesa com força, o impacto ecoando pelo cômodo.
— Dante, eu estou dizendo…
— E então? — A voz de Dante cortou qualquer tentativa de argumento. Sua presença, esmagadora, dominava o espaço. — Podem começar a falar. Quem são, de onde vieram… e como vão pagar pelo conserto da arma de Marcus?
— Conserto? — O homem se levantou devagar, coçando os olhos como se aquilo fosse um incômodo menor. Ele lançou um olhar para a ISE e depois para Dante, um sorriso debochado surgindo no canto dos lábios. — Pelo que vejo, senhor, não tem nada aqui que possa ser consertado.
Fabiana e Leonardo se enrijeceram ao perceber a ousadia do homem. O sorriso arrogante carregava um tom de desafio, mas Fabiana entendeu rápido a posição delicada em que estavam.
— Dante — disse, sua voz adotando um tom de súplica. — Eu estou implorando. Sei que essa arma é valiosa para Marcus, mas esses dois são…
— Ótimo. — Dante a cortou, impassível. — Se não é tão importante assim pra ser consertado, vai ser mais fácil.
Ele pegou a arma da mesa, mas não se moveu. Seu olhar frio encontrou o de Leonardo.
— A carroça de vocês vai ficar no mesmo estado.
Os sorrisos desapareceram na hora.
Leonardo endireitou a postura, já prevendo o que viria.
— Leonardo — ordenou Dante, com uma calma assustadora. — Destrua a carroça.
— Dante… — Fabiana avançou, segurando seu pulso. — Por favor, não faça isso. Meus tios são pessoas renomadas, trabalham com ervas raras. Sei que fizeram um caos, mas eles são importantes para todas as cidades. As ervas que produzem só existem por causa deles.
O que deveria ser um argumento sólido foi recebido com uma risada de Silas. Ele se levantou mais uma vez, apontando diretamente para Dante.
— Vai mesmo mexer comigo? — O tom de ameaça era evidente. — Sabe quantos inimigos você vai fazer se destruir meu trabalho?
Dante girou a carabina na mão, rápido e certeiro. Num único movimento, bateu a coronha contra a mesa.
O estrondo veio seguido do estalo seco da madeira rachando. A mesa se partiu em duas, colapsando no mesmo instante.
Os visitantes recuaram instintivamente, assustados.
— Tem merda na cabeça? — rosnou Silas.
A mão de Silas mergulhou no bolso, mas antes que pudesse puxar qualquer coisa, um brilho prateado lampejou na sala. Uma lâmina cinzenta encostou-se ao seu pescoço.
Ele engoliu em seco ao sentir o aço frio pressionando sua pele.
— Leonardo… você… — Silas sussurrou, surpreso.
Dante puxou o braço, se soltando da mão de Fabiana e se aproximou ainda mais. Seus olhos, intensos e ameaçadores, se fixaram no homem.
— Sabe quem eu sou?
O peito de Silas subia e descia rapidamente. Seus olhos se arregalaram ao encarar a expressão sombria de Dante. Sua esposa, atrás dele, segurou sua mão com força, os dedos tremendo.
— Eu… ouvi histórias — murmurou Silas, a voz falhando.
— Então fala. — Dante inclinou a cabeça, como um predador brincando com sua presa. — Diga o meu nome.
Silas hesitou. O silêncio se estendeu por um segundo longo demais. Até que, com um suspiro tenso, ele murmurou:
— Você é Dante… o Demônio. E o Comandante de Kappz.
Dante sorriu. Um sorriso gélido, vazio.
— Pode ter certeza de que sou exatamente essa pessoa, senhor doutor. — Sua voz ganhou um peso quase mortal. — E se ousar debochar de mim de novo… ou da arma que salvou essa sua bunda que viaja por aí…
Ele se inclinou ligeiramente para frente.
— Eu vou destruir tudo o que é importante pra você.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.