Capítulo 220: Conversas Puras
— Vamos.
O primeiro passo ecoou na neve fofa, seguido pelos demais. Kalish caminhava com a postura firme de quem não se deixava intimidar, mas seus sentidos estavam atentos a qualquer movimentação. E então, algo se arrastou nos escombros.
De trás de um veículo tombado, uma figura emergiu.
O homem vestia uma capa branca que contrastava com o colete escuro por baixo, os ombros largos e a postura reta indicavam um certo nível de disciplina. Seu olhar era impassível, uma máscara de pedra sem traço algum de hostilidade evidente. Ainda assim, Kalish ergueu a mão num gesto sutil, ordenando que seus homens parassem.
A experiência já lhe ensinara que rostos inexpressivos escondiam intenções imprevisíveis.
— Quem são vocês? — a voz do estranho rompeu o silêncio, soando fria, mas sem ameaça direta. — E de onde vieram?
Kalish soltou um suspiro discreto, aliviado por não ter sido recebido com hostilidade imediata. Entregou as rédeas de seu cavalo a Fred e avançou alguns passos, parando a cerca de cinco metros do homem.
— Um prazer, desconhecido. — Seu tom era tranquilo, mas carregado da confiança calculada de quem sabia como jogar aquele jogo. — Sou um viajante. Vim de longe, da casa mais distante da Zona Cega. Você conhece Consiegas?
O homem não reagiu de forma evidente. Nem um sorrisinho irônico, nem um sinal de surpresa. Apenas cruzou os braços e manteve sua expressão neutra.
— Conheço um pouco. — Seu olhar analisou os cavalos por um instante antes de continuar. — Um lugar distante daqui… mais de duas semanas de caminhada, mas vocês vieram montados.
Ele pausou brevemente antes de concluir:
— A que devemos o prazer, mercadores?
Kalish ergueu o queixo ligeiramente, apontando com um gesto sutil para a estrutura colossal atrás do homem.
— O senhor deve ser o dono dessa impressionante construção. É realmente uma obra grandiosa. Viemos de Consiegas para negociar. Ouvimos falar de um problema envolvendo GreamHachi e soubemos que muitos dos moradores vieram para cá. Nós somos mercadores, e viemos para ajudar. Compramos e vendemos, como sempre fizemos.
O homem observou Kalish por um momento antes de recuar um passo e enfiar a mão no bolso.
— Certo, só um momento.
Ele virou-se de costas, inclinando ligeiramente a cabeça e murmurando algo contra o que parecia ser… uma pedra?
Kalish estreitou os olhos.
Jodrick se aproximou e sussurrou:
— Senhor, Fred detectou Energia Cósmica… em forma de frequência.
Kalish franziu a testa. Era possível?
Ele olhou para a parte mais alta da Cuba. Seu olhar então deslizou para o leste, onde, no meio da neblina e dos ventos cortantes, uma torre se erguia, distante e solitária. Virou-se para o sul e viu outra torre, igualmente afastada, parecendo formar um padrão.
Se havia uma frequência, deveria haver mediadores.
Kalish voltou os olhos para o homem à sua frente, que agora retomava sua postura original.
— Está surpreso com algo? — Sua voz continuava fria, inabalável.
Kalish permitiu-se um sorriso discreto.
— Apenas curioso. Esse não seria o lugar mais fácil para se estabelecerem. Um prédio isolado e bem fortificado não teria sido mais eficiente?
O homem inclinou a cabeça levemente, como se ponderasse a pergunta.
— Já tentamos isso. Mas não sou eu quem decide essas coisas.
Antes que Kalish pudesse replicar, um estrondo fez a porta da Cuba se abrir com brutalidade.
Um corpo foi arremessado para fora.
O homem deslizou pelo gelo, caindo de peito contra o chão e se arrastando até parar alguns metros adiante. Kalish estreitou os olhos, tentando identificar a figura caída.
Outros homens saíram logo em seguida.
— Está me roubando! — vociferou o homem no chão, tentando se erguer com dificuldade. Sua voz era tingida de indignação e desespero. — Minhas ervas, meus utensílios… tudo que eu coletei nas montanhas! Devolva, seu bastardo desgraçado!
A resposta veio em um tom cortante:
— Eu disse que era uma troca pelo que você disse.
Kalish não conseguia ver quem estava falando, mas aquela voz… Ele sentiu o estômago revirar.
— Silas?
O velho que caminhava até o homem no chão o agarrou pelo colarinho e o ergueu bruscamente.
— Não mencionou que seus amigos estavam vindo? — A voz carregava um tom perigoso. — Pode chamá-los, se quiser.
Silas tentou afastá-lo, empurrando a mão contra o rosto do homem, mas foi descartado com um movimento brusco. Seu corpo atingiu o chão mais uma vez, deslizando pelo gelo até parar perigosamente perto do grupo de Kalish.
E quanto mais perto ele chegava, mais Kalish reconhecia aquele rosto.
O famoso Silas. Tão famoso quanto arrogante.
Um homem cuja reputação era de extorquir até o último suspiro de seus clientes, cobrando fortunas pela cura de doenças que ele próprio poderia muito bem ter espalhado.
Um parasita. Um mercador de miséria.
— Comandante. — Um dos homens da Cuba dirigiu-se ao velho que agora avançava na direção deles. — Rupestre me notificou desses viajantes há alguns dias. Esperei que se aproximassem para comunicar.
Silas olhou ao redor freneticamente, então seus olhos encontraram os de Kalish.
E ali, ele congelou.
Seu rosto ficou pálido como a neve ao seu redor.
— Merda… — murmurou Silas, tentando se levantar às pressas, mas escorregando no gelo. — Kalish?
Ele arregalou os olhos, a respiração acelerada.
— O que está fazendo aqui? Você deveria estar na Zona Cega! Esses homens… — Silas apontou desesperado para o grupo de Dante. — São animais! Me tire daqui! Eu ordeno!
Kalish estreitou os olhos.
Fred, que observava a cena com uma calma perigosa, avançou um passo.
— Ordem? — Sua voz era carregada de ironia. — Acho melhor escolher bem suas palavras, doutor.
Seu olhar se tornou afiado como uma lâmina.
— Não estamos na Zona Cega para que você dite qualquer coisa.
— Não é a Zona Cega, mas sei que precisa de mim tanto quanto das minhas ervas. — A voz de Silas era uma mistura de indignação e desespero. Seus olhos se moviam freneticamente entre Kalish e os homens ao seu redor. — Esses marginais me roubaram! Tiraram minha caravana, minha fortuna!
Ele cambaleou ao se levantar, os joelhos trêmulos na neve fofa, mas paralisou ao ver Fred puxando sua espada da bainha.
O brilho metálico refletiu na luz fria da lua.
— O que você está fazendo? — A voz de Silas falhou, e um arrepio de pavor percorreu sua espinha. — Como ousa apontar sua espada para mim?!
Kalish soltou um suspiro pesado, fechando os olhos por um momento enquanto massageava a ponte do nariz. Que homem insuportável.
Ele ergueu o olhar para os dois desconhecidos que estavam diante deles.
— Senhores… — Sua voz era educada, mas carregada de uma calma perigosa. — Imagino que minha próxima ordem possa não ser do agrado de todos, mas espero que compreendam.
Ele fez uma breve pausa.
— Fred, pode apagar o doutor, por favor.
A execução foi instantânea.
A lâmina de Fred cortou o ar com precisão e, antes que Silas pudesse reagir, seus olhos reviraram. Sua boca se abriu num arquejo mudo, e uma espuma fina surgiu nos cantos dos lábios. Seu corpo tombou para trás como um boneco de trapo, a neve amortecendo sua queda.
Silas ainda respirava, mas agora estava completamente inconsciente.
O velho que acompanhava Dante soltou uma risada rouca ao ver o doutor desfalecido no chão.
— Eu devia ter feito isso desde o começo. Teria sido muito mais prático do que perder tempo tentando despachá-lo.
Fred e Jodrick mantiveram suas posições, observando atentamente os dois homens à frente. O clima entre eles ainda estava carregado de tensão, mas a postura de Kalish permanecia firme, calculada.
O mais velho do grupo, que até então permanecia em silêncio, finalmente estendeu a mão.
— Parece que já conheceu Heian. — Sua voz era firme, mas sem agressividade. — Sou Dante, Comandante de Kappz. E o senhor, quem seria?
Kalish avaliou o homem por um instante. Havia um certo respeito na forma como os outros o tratavam, mas sem a habitual reverência exagerada. Eles não eram do tipo que se curvavam diante de títulos.
Ainda assim, ele aceitou o aperto de mão, respondendo com um sorriso calculadamente amistoso.
— Estamos ditando títulos? — Sua voz carregava um tom descontraído, embora seus olhos analisassem cada reação de Dante. — Sou Kalish, Terceiro Soberano da Zona Cega.
Por um breve instante, as expressões de Heian e Dante se alteraram. Kalish esperava algo mais dramático — um alvoroço, talvez, ou ao menos uma demonstração de surpresa pelo peso de seu título. Mas nada veio além de um olhar avaliativo e um assentir educado.
Se tratavam Silas como nada mais que um incômodo descartável, era evidente que não davam valor cego a hierarquias.
Dante coçou a cabeça, indiferente.
— Um Soberano? Já ouvi falar de vocês.
Ele lançou um olhar para os viajantes antes de continuar, sua postura relaxada, mas, ainda assim, atenta.
— Vieram de longe, senhores? Estão com fome? Querem entrar para conversar? Não sei como vivem lá na Zona Cega, mas, se quiserem, podemos entrar na Cuba.
Kalish soltou uma risada leve, o sorriso ainda presente em seu rosto.
— Claro, claro. Seria um prazer. Por favor, se puder me mostrar o caminho.
Ele então lançou um olhar de relance para Silas, que permanecia desacordado na neve.
— Aliás… Silas é um homem bem requisitado em certos lugares. Se não se importam, posso levá-lo de volta para a Zona Cega depois?
Dante olhou para o corpo caído do doutor com visível desgosto antes de dar de ombros.
— Pode levar esse aí para onde quiser.
O sorriso de Kalish se alargou.
— Excelente.
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