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    — Parece que esse é um lugar bem organizado — comentou Kalish ao cruzar a entrada da Cuba. Mas “organizado” era pouco para descrever o que via. O lugar era impressionante.

    As estruturas que sustentavam os prédios não estavam apenas conectadas, estavam fundidas de uma maneira que desafiava qualquer lógica convencional de construção. Não era o tipo de fusão que o tempo ou o acaso produziam; havia intenção, controle.

    Se alguém ali possuía uma habilidade de fundição, o processo de reerguer e reforçar aqueles arranha-céus teria sido muito mais simples. Uma vantagem que poucos no mundo poderiam se dar ao luxo de ter.

    Kalish acompanhava os passos de Dante e Heian, seus olhos analisando os dois enquanto caminhavam lado a lado.

    Qual deles era o verdadeiro líder?

    O nome “Heian” fez algo se agitar em sua mente, um resquício de memória que não conseguia captar completamente. Algo nele não lhe era estranho, mas ainda não sabia dizer o quê.

    Ao cruzarem um grande arco de ferro, o pátio se revelou diante deles.

    Era gigantesco. Mas, mais do que o tamanho, o que impressionava era a sensação de clausura provocada pela estrutura ao redor. Seis prédios imensos formavam um hexágono perfeito, suas laterais se inclinando levemente, como se tivessem sido atraídas umas para as outras. Um abrigo impenetrável.

    Movimento não faltava. Pessoas carregavam caixas, algumas mexiam em pequenas estações de trabalho improvisadas, enquanto outras estavam sentadas em torno de uma fogueira que estalava em meio ao frio do inverno.

    Os cinco seguiram adiante.

    Foi então que Kalish avistou a carroça de Silas repousada num dos cantos do pátio.

    Ao lado dela, uma mulher chorava baixinho, os ombros estremecendo com os soluços. Mas ao erguer o rosto e ver Silas sendo puxado pelo braço como um prisioneiro derrotado, algo em sua expressão mudou. O choro cessou imediatamente, e o que surgiu em seu lugar foi puro terror.

    Kalish franziu o cenho.

    Parou.

    Mudou sua rota sem hesitar.

    — Amelisse?

    A garota engoliu em seco e, antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, correu em sua direção e o envolveu em um abraço apertado.

    A mulher ao lado dela, mais velha e dona de uma beleza que resistia ao tempo, permaneceu imóvel. Seu rosto duro, os braços cruzados, observando a cena sem demonstrar emoção.

    Kalish, no entanto, ignorou a presença dela por ora. Seu foco estava na garota que tremia contra seu peito.

    — Meu Deus… o que aquele idiota fez com você?

    Amelisse soluçou contra ele, suas mãos agarrando suas vestes com força.

    — Senhor Kalish… — sua voz era fraca, embargada pelo medo. — Silas… ele é um…

    Ela hesitou.

    Ele não precisou que terminasse a frase.

    Afastou-se um pouco, deslizando os dedos pelos cabelos dela em um gesto tranquilizador.

    — Eu sei, garota. Eu sei bem.

    Não era a primeira vez que ouvia histórias sobre Silas e sua arrogância disfarçada de benevolência. O homem se via como uma divindade, um curandeiro intocável, e fazia questão de lembrar os outros disso. Mas sua bondade tinha um preço, e quem não pudesse pagar… sofreria as consequências.

    Kalish segurou o rosto de Amelisse entre as mãos, forçando-a a encará-lo.

    Ele sorriu, suave.

    — Vai ficar tudo bem, entendeu? Essas pessoas… — indicou Dante e os outros com um olhar — vão cuidar de você. Você pode confiar neles.

    Mas o terror ainda estava estampado nos olhos dela.

    — E se ele ficar bravo comigo? — as lágrimas voltaram a se acumular. — E se ele me bater de novo?

    O estômago de Kalish revirou.

    Um frio tomou seu peito, mas sua voz saiu baixa, firme como aço.

    — Ninguém… vai tocar em você.

    Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Fred se aproximou por trás e sussurrou:

    — Senhor, olhe para os quartos.

    Kalish ergueu uma sobrancelha, mas acenou para que Fred recuasse.

    Fez um último carinho nos cabelos de Amelisse antes de afastá-la gentilmente para mais perto da mulher que a acompanhava.

    Então, ergueu os olhos.

    Os quartos ficavam nos andares superiores. E foi ali que Kalish viu algo que o fez arregalar os olhos.

    — Impossível… isso é…

    — Eletricidade — a mulher de cabelos brancos, que ainda estava ao lado de Amelisse, disse de repente. Sua voz era firme, mas carregava um tom de curiosidade. — Vejo que os boatos sobre o senhor são realmente verdadeiros. Postura, palavra, confiança…

    Kalish desviou o olhar das luzes e focou nela.

    Algo naquelas feições lhe parecia familiar, mas não conseguia se lembrar de onde.

    — Já nos encontramos antes, senhora?

    — Pessoalmente, não. — Ela estendeu a mão. — Sou Clara Silver. É um prazer, senhor Kalish.

    Ele apertou sua mão.

    — O Terceiro Soberano da Zona Cega estar aqui é uma grande surpresa — Clara continuou. — Deve ter vindo de bem longe. Rupestre me avisou, mas não esperava que viessem tão rápido.

    Kalish apenas acenou com a cabeça, desviando o olhar de volta para os andares superiores, onde as luzes brilhavam como algo saído de um mundo que ele já não acreditava existir.

    — Gostaria de conversar com o líder deste lugar — disse, ignorando o último comentário. Seu tom era neutro, mas carregado de interesse genuíno. — Isso é impressionante. Onde posso encontrá-lo?

    Clara não respondeu. A atenção dela estava voltada para a porta que se abriu ao fundo do pátio. Leonardo e Fabricia surgiram, seus rostos marcados pela surpresa ao verem Kalish ali. O homem, por sua vez, deu uma risada larga, um som que ecoou pelo ambiente, atraindo olhares curiosos e desconfiados. Ele avançou em direção aos dois, abrindo os braços em um gesto expansivo, como se estivesse se reunindo com velhos amigos.

    — Sabia… — começou Kalish, sua voz carregada de uma mistura de alívio e admiração. — Eu sabia que os dois estavam vivos. Nossa, GreamHachi foi destroçada.

    Leonardo reagiu primeiro, esticando a mão para cumprimentar Kalish com um aperto firme, mas seu olhar ainda carregava uma dose de choque e respeito.

    — É uma honra poder nos vermos, senhor. Mas… o que veio fazer aqui?

    Kalish sorriu, ignorando a formalidade de Leonardo.

    — Claro que vim vê-los. Soube que a cidade tinha caído e cá estão vocês, colocando outro abrigo nos trilhos. — Ele então apertou a mão de Fabricia, seu olhar curioso se fixando nela. — Posso saber como fizeram com a eletricidade? GreamHachi nunca teve, como conseguiram? A Hidrelétrica voltou a funcionar?

    Leonardo e Fabricia trocaram um olhar rápido, hesitantes. Seus olhos se moveram para outros pontos do pátio, como se buscassem permissão para responder. Kalish percebeu imediatamente. Eles não eram os líderes ali. Então, quem era?

    — Você. — O dedo de Kalish apontou para Heian, que estava parado ao lado de Dante. — Deve ter buscado uma forma… ou devo dizer… você.

    Dante, que observava a cena de lado, deixou escapar um sorriso teimoso, mas negou com a cabeça.

    — Acho que esteja procurando por outra pessoa — respondeu o velhote, sua voz calma, mas firme. — Está procurando por aquela ali.

    Kalish seguiu o olhar de Dante e viu Clara Silver. Ela estava ao lado de Amelisse, ajudando a mulher com uma gentileza que parecia natural. Clara conversava com Amelisse, seu tom de voz suave, como se estivesse tentando aliviar o peso do momento. Kalish ficou impressionado. Clara não emanava força física ou uma presença avassaladora de Energia Cósmica. No entanto, havia algo nela que inspirava respeito — um respeito puro e firme, que até mesmo Leonardo e Fabricia, com todo o seu histórico, pareciam nutrir por ela.

    — Clara Silver — o nome saiu suave de seus lábios, quase como um suspiro. — Parece que temos muito a conversar, senhora.

    Clara, ainda concentrada em Amelisse, ignorou o comentário de Kalish. Foi Jodrick quem ergueu a voz, seu tom carregado de desgosto:

    — O Terceiro Soberano falou com você…

    — Ei, garoto.

    A atmosfera no pátio mudou instantaneamente. A pressão no ar se tornou pesada, quase sufocante. Kalish engoliu em seco, sentindo a Energia Cósmica de Heian e Dante se fundirem, criando uma aura densa e ameaçadora ao redor. Atrás de Kalish, a espada de Leonardo foi sacada com um som metálico cortante. De cima dos quartos, dois homens observavam atentos, prontos para saltar ao primeiro sinal de perigo. Do outro lado do pátio, entre as vigas, mais quatro ou cinco pessoas fitavam Kalish com olhares irritados, suas expressões duras, como se esperassem apenas uma palavra para agir.

    E no centro de tudo isso, Clara Silver permaneceu imóvel, sua postura calma e serena. Ela ergueu a cabeça e encarou Jodrick, parecendo completamente imune à pressão que dominava o ambiente.

    — Eu ouvi o que ele disse — respondeu Clara, sua voz tranquila, mas firme. — Só não gostaria que Amelisse ficasse sozinha enquanto eu converso com o seu senhor. — Ela então passou os olhos pelos demais ao redor, como se estivesse acalmando uma fera prestes a atacar. — Está tudo bem, pessoal. Ele não fez por mal.

    Suas palavras agiram como um feitiço. O peso no ar desapareceu, e a Energia Cósmica que antes dominava o ambiente se dissipou. Kalish nunca tinha visto uma concentração tão grande de pessoas prontas para atacar com tanta ferocidade. Nem mesmo dentro da Zona Cega ele havia sentido algo assim. A mistura de soldados e guardas que ele conhecia não chegava perto daquele tipo de lealdade e proteção.

    — Vamos conversar na sala de reuniões — Clara disse, finalmente voltando sua atenção para Kalish. Ela então se virou para Heian, que estava próximo. — Peça para Simone levá-la para a enfermaria. Deixe-a repousar. Está cansada e com ferimentos nas pernas e braços.

    — Sim, senhora — respondeu Heian, sua voz respeitosa, quase reverente.

    Kalish observou tudo em silêncio, sua mente trabalhando rapidamente para processar o que acabara de testemunhar. Clara Silver não era apenas uma líder — ela era o coração daquele lugar, o elo que mantinha todos unidos. E, pela primeira vez, Kalish sentiu que estava diante de alguém ter um novo senso dentro do mundo jogado aos destroços e caos.

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