Capítulo 230: Fazendas
— Tudo o que o sol toca me pertence neste momento, Dante. — Kalish e ele haviam subido a torre do Meistre, um lugar onde somente os Soberanos tinham acesso. O caminho até o topo era labiríntico: ultrapassavam corredores estreitos, salas amplas, subiam escadas e desciam outras, enganando qualquer um que tentasse seguir seus rastros.
No fim, chegar ao topo demorava praticamente trinta minutos de caminhada. E a vista que se abriu diante deles era de tirar o fôlego. O que, na cabeça de Dante, era uma imensa fazenda, se tornou praticamente um grão de areia em meio à vastidão que se estendia diante de seus olhos. De um extremo ao outro, de uma ponta do horizonte até a outra, tudo era coberto por plantações.
As cores se misturavam em um mosaico vibrante: vermelho, laranja e amarelo dominavam a paisagem. Não eram apenas pontos isolados, mas um espaço inteiro preenchido por vinhedos, macieiras, plantações de cana e milho. Dante já havia ouvido falar sobre todas elas, mas nunca tinha visto um lugar tão bem cultivado e cuidado.
Os trabalhadores caminhavam entre as plantações, conversando animadamente, sem se importar com o inverno rigoroso. Estavam vestidos com agasalhos de alta qualidade, protegidos do frio. Soldados e guardas faziam rondas de um canto ao outro, ocasionalmente dando advertências brandas, mas sem qualquer sinal de hostilidade.
— Não digo somente do que podemos comer — completou Kalish, segurando o pulso direito com a mão esquerda, como se estivesse meditando sobre suas palavras. — As pessoas também são minhas. Tudo o que toca o solo é meu. Isso diz bastante sobre a minha pessoa, não acha?
— As pessoas podem achar que você está sendo arrogante demais — respondeu Dante, sem tirar os olhos do horizonte. Mesmo camuflado pela neve, ainda era possível ver um pequeno brilho ao longe. — O que é aquela luz no fundo?
— Bom, era para não estar piscando agora — disse Kalish, seguindo o olhar de Dante. — Aquele é o Farol de Consiegas.
A cidade ao redor era viva, com o comércio fervilhando diante das portas, e lojas que ofereciam muito mais do que um simples convite de boas-vindas. Tudo ao redor era orgânico, com uma capacidade de prosperidade que superava até mesmo a Capital.
— O Farol não é um lugar onde as pessoas normalmente vão — continuou Kalish. — Daquele lado, temos cerca de três Lagmoratos ativos. Cada um deles é domado por uma das zonas. Como eu sou o mais próximo, sempre tiro os trabalhadores de lá o mais rápido possível.
— Por que não fecham os Lagmoratos? — perguntou Dante, sua voz carregada de curiosidade.
Kalish o encarou por um momento e depois sorriu, como se a pergunta fosse ingênua.
— Sabe quantas pessoas eu já ouvi falando sobre fechar um inferno como aquele? — Dante negou com a cabeça, e Kalish ergueu a sobrancelha, como se a resposta fosse óbvia. — Nenhuma. Você é o primeiro. Quando me disse que tinha fechado um deles com apenas o Atirador ao seu lado, eu fiquei um pouco incrédulo.
— Já disse que foi uma decisão ruim na hora — respondeu Dante, sem querer admitir totalmente. — Eu poderia ter feito sozinho, mas ia demorar mais. Estive pensando em como fazer de um jeito melhor, mas hoje não tenho como simplesmente me atirar para dentro de um e esperar que as coisas sejam tranquilas.
— Enfrentar Felroz não é fácil, Dante — disse Kalish, sua voz agora mais séria. — Parece que você ainda não entendeu isso.
O clarão amarelado do Farol de Consiegas mudou sua tonalidade para um laranja intenso, chamando a atenção de ambos.
— Os homens morrem quando são confrontados diretamente — continuou Kalish, seus olhos fixos no horizonte. — Os Felroz são as piores criaturas que existem. Eles são esfomeados, gostam do barulho, e uma cidade como a minha, numa região onde o comércio vive à base de gritos, é o alvo perfeito.
A luz laranja do Farol se tornou vermelha, uma cor que se espalhou como uma sombra sobre as fazendas. Imediatamente, os moradores se alarmaram. As pás e tesouras que usavam para podar foram jogadas em um canto, e todos começaram a correr de volta para os muros maiores que dividiam a cidade das fazendas.
Kalish, no entanto, parecia tranquilo, quase em paz. Ele não esboçou uma reação imediata, apenas continuou a encarar o horizonte vermelho, como se estivesse aceitando o que estava por vir.
— Gosto do meu mundo, Dante — disse ele, sua voz calma, mas carregada de uma melancolia profunda. — Aqui sempre foi um lugar tranquilo, mesmo com os problemas dos Felroz. O único problema é que eles destroem mais do que eu poderia reconstruir em dezenas de anos.
Ele virou-se para Dante, seus olhos frios e serenos.
— A confiança.
— Ter medo é normal — respondeu Dante, sua voz suave, mas firme.
— Eu pensava assim até conhecer a Cuba.
Dante pôs os braços atrás das costas, observando o horizonte. Um ruído agudo ecoou, um berro que, mesmo sendo fino, era angustiante. Os lojistas, fazendeiros e moradores pararam ao ver uma criatura criar sombra no meio do clarão vermelho do Farol.
— Eles confiam em algo e alguém — continuou Kalish, sua voz agora mais baixa, quase um sussurro. — Mas aqui, somos todos medrosos demais. Nos escondemos atrás dos muros, esperando dias melhores.
A porta da sacada, atrás dele, foi empurrada com força. Jodrick e Fred entraram rapidamente, com Pood logo atrás. Os três se curvaram imediatamente, criando uma fila para que Virgo pudesse passar. A mulher carregava uma expressão risonha, mas preocupada. Seu imenso vestido negro era coberto por um casaco grosso, e sua cabeça estava envolta em uma manta esverdeada, recheada de flores bordadas.
Ela saudou com a mão, mas fez uma pequena menção para os três soldados, como se estivesse agradecendo pela cortesia.
— Tanto tempo fora. Voltou e não foi conversar com sua melhor amiga, Kalish? — perguntou Virgo, sua voz carregada de um tom de brincadeira, mas com um fundo de preocupação.
— Fiquei um pouco sem tempo — respondeu Kalish, com um sorriso cansado.
Os dois se abraçaram com fervor. Virgo era bem mais nova que Kalish… e que Dante. Bom, Dante não esperava que muitas pessoas fossem mais velhas do que ele de qualquer maneira. E, ao ver que ela o analisou de cima a baixo, ele sabia bem que não era uma simples mulher vindo cobrar um pedido de desculpas.
— Gosto de ficar aqui em cima — explicou Kalish, enquanto se afastava do abraço. — E tenho um colega que veio de longe para nos cumprimentar um pouco. Esse é Dante, Virgo. Meu candidato ao Confyete Revol.
A mão de Virgo veio à frente, e Dante a tomou, cumprimentando-a com um certo lisonjeio.
— É um prazer, senhor — disse ela, com um sorriso leal. — Kalish, vim avisar que esse Felroz não vai ser domado pelos outros dois idiotas. Eles sabem que qualquer erro por agora pode ser fatal nas próximas semanas. A recompensa do Confyete dessa vez é muito maior do que antes.
Kalish mostrou um entendimento e pediu que ela sentasse em uma das cadeiras. Fred limpou a neve acumulada e empurrou a cadeira para Virgo, que se acomodou com elegância.
— Sei que estou um pouco atrasado — disse Kalish, sentando-se na outra cadeira sem se importar com a neve. — Mas desde que cheguei, tenho resolvido os problemas de furto e também de administração. Não tive tempo de ouvir sobre a recompensa, mas creio que deve ser uma grande e gorda.
— Pare de ser modesto. É uma Pedra Lunar.
Dante cruzou os braços, surpreso. Uma Pedra Lunar era a recompensa direta de uma disputa entre os Três Soberanos?
O som da criatura ao longe começava a ficar mais alto, parecendo se aproximar cada vez mais.
— Por isso eles estão afobados — comentou Kalish, sua voz agora mais séria. — Faz sentido agora. Por isso Kanavarro e Betsi estão se guardando das expedições aos Lagmoratos.
— Você devia tomar cuidado, mais ainda — avisou Virgo, sua preocupação evidente. — Se essas criaturas destruírem mais uma parte da fazenda, vamos ser obrigados a lidar com eles diretamente. Não é o melhor cenário.
Dante virou-se para a imensa fazenda. A imagem do Felroz surgia maior, cada vez mais perto. Ele era encoberto pela neve e pela tempestade, mas sua presença era inegável. Dava para sentir sua fome, sua raiva.
Um alvo tão grande e tão… fraco. Dante os encarou rapidamente, erguendo o braço.
— Antes de continuarem a discutir, preciso fazer algo. Posso me retirar por um momento?
A mão de Kalish estava em sua testa, como se estivesse ponderando algo, e ele abanou a outra mão, concordando.
— Sim, sabe como voltar para cá depois de terminar, Dante?
— Sei, sim.
Ele deu as costas, caminhando na direção da beirada. Ao colocar os pés, ouviu Fred o chamar. Dante se impulsionou para frente, disparando as rajadas e se arremessando na direção da fazenda. Fez o giro algumas vezes, mas seu traje vermelho chamava atenção no meio do branco da neve e da tempestade.
Kalish ergueu-se na mesma hora. Virgo o seguiu até a beirada. Os dois simplesmente chocados.
— Merda, o que ele tem na cabeça? — perguntou a mulher, incrédula. — Kalish, vai ter que mandar alguém lá para tentar recuperar o corpo dele.
— Dele? — Kalish a encarou. — Acho que não. Vocês três, vão. Pood, use sua habilidade. Não quero perder nada.
Os três soldados curvaram-se juntos.
— Sim, senhor.
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