Índice de Capítulo

    O vento cortante do inverno uivava do lado de fora, penetrando as frestas da sala como um espectro faminto. Kalish estava sentado à cabeceira da mesa, suas mãos firmes sobre a superfície de madeira, os dedos tremendo levemente. À sua direita, Pood mantinha a cabeça baixa, os olhos fixos no chão, enquanto Fred, à esquerda, parecia lutar para manter a compostura. O suor escorria pela testa de Kalish, apesar do frio que dominava o ambiente. Seu rosto estava pálido, os olhos cravados em Sir Secure, que permanecia de pé, impassível, diante do Soberano.

    — Não pode ser verdade — disse Kalish, sua voz rouca, carregada de descrença. — Você só pode estar de brincadeira comigo.

    Dinamite dobrou o joelho rapidamente, seguido pelos outros presentes. Apenas Sir Secure permaneceu ereto, seus olhos fixos em Kalish. Nele, não havia amargura, apenas um ressentimento silencioso, como uma sombra que nunca se dissipava.

    — Nunca brinquei com o senhor sobre as pessoas — respondeu Secure, sua voz firme, quase fria. — Sempre fui honesto e verdadeiro. Pood está ao seu lado para confirmar.

    O garoto abaixou a cabeça ainda mais, como se quisesse desaparecer no chão. Kalish não ousou olhar para Pood. Sabia que não era culpa do menino, nem de Secure, nem de ninguém. A verdade era que ele, Kalish, havia subestimado o inimigo. Tão perto do Farol, tão perto de suas colheitas, um perigo se escondia. Não eram os Felroz que ele temia. Era algo pior.

    — Meu relatório foi concreto, senhor — Secure continuou, sua voz ecoando na sala silenciosa. — Não importa se Dante escapou da luta que travava. Ele não está presente. Sua Energia Cósmica desapareceu. Sinto informar ao senhor, mas… o Comandante de Kappz veio a falecer.

    Kalish bateu a mão na mesa com força, o estalo ecoando como um trovão. Todos na sala estremeceram, exceto Secure, que permaneceu imóvel.

    — Como ousa dizer pra mim que um monstro daqueles morreu apenas por ter desaparecido? — Kalish levantou-se, sua voz crescendo em fúria. — Como ousa afirmar que não há erros nas suas palavras quando nem mesmo entrou no Abismo, Secure?

    Virgo, que até então permanecera sentada, levantou-se rapidamente. Kalish apontou um dedo acusador em direção a Secure, que recuou um passo, seu rosto agora mostrando um leve sinal de aflição.

    — Não me diga que aquele homem morreu.

    — Já chega, Kalish — Virgo interveio, puxando-o pelos ombros e forçando-o a sentar-se novamente. — Não deveria perder sua postura na frente de seus homens. É desastroso.

    — Não existe forma daquele homem ter morrido — Kalish respondeu, sua voz agora mais baixa, mas ainda carregada de desespero. — Eu vi com meus próprios olhos. Fiz a contagem necessária.

    — Sei que parece improvável, mas é a realidade de agora — Virgo inclinou-se sobre ele, seus olhos cheios de uma gentileza que contrastava com a frieza do ambiente. — Muita gente morreu enfrentando aquelas aberrações. Temo que haja um velório a ser feito.

    Kalish percebeu, então, que não era apenas Dante que estava sendo dado como morto. Era boa parte dos que protegiam o Farol do Abismo. Homens e mulheres que haviam dedicado suas vidas a proteger o sonho daqueles que viviam em Consyegas.

    — E você precisa… falar com os familiares de todos eles, meu senhor — Virgo completou, sua voz suave, mas implacável.

    Kalish enterrou o rosto nas mãos, um peso imenso sobre seus ombros. Não eram apenas os moradores de sua cidade. Havia também os de fora, os da Cuba. Pessoas que haviam confiado em sua palavra, que haviam acreditado em suas promessas. Agora, ele teria que enfrentá-las, olhar em seus olhos e dizer que seus entes queridos não voltariam.

    Que tragédia.

    I

    Clara e Marcus foram convocados sozinhos por Sir Secure. O homem chegara após um dos batalhões entregar suprimentos, sua presença discreta, mas carregada de um peso que não passou despercebido. Do lado de fora da Cuba, envoltos pelo frio cortante, Secure mantinha uma postura solene, quase humilde. Não era a reação típica de quem visitava a Cuba pela primeira vez.

    — O que houve? — perguntou Clara, sua voz direta, sem rodeios. — Por que todo esse suspense?

    — Perdão, senhora — Secure respondeu, sua voz calma, mas com um tom de gravidade. — O Soberano Kalish pediu que eu entregasse essa mensagem propriamente a vocês, apenas. — Ele enfiou a mão no bolso, retirando um pequeno pergaminho, e o estendeu aos dois. — Leiam, por favor. Qualquer dúvida que tiverem, estarei à disposição para responder.

    Clara pegou o pergaminho, suas mãos tremendo levemente. Marcus ficou ao seu lado, seu rosto impassível, mas seus olhos revelavam uma inquietação que não podia ser escondida. O vento uivava ao redor deles, como se o próprio inverno soubesse o que estava por vir.

    E, enquanto Clara desenrolava o pergaminho, o silêncio entre eles se desenrolou ainda mais funebre. Clara tomou a ler, e seus olhos se afundaram em lágrimas nas duas primeiras páginas. Marcus segurou o papel com mais força, forçando seus olhos e sua expressão mudando a cada palavra.

    Não demorou para que lessem todo o conteúdo. Eles encararam Sir Secure que, com os lábios torcidos para dentro, tinha um rosto tão triste quanto o deles.

    — Dante… — as palavras nem queriam sair da garganta de Clara —… morreu?

    — Impossível. — Marcus tomou o papel rapidamente, lendo mais uma vez. — Isso é impossível.

    A reação dele foi a mesma que Kalish. Indignação, raiva, ódio absoluto. O atirador simplesmente lançou o pergaminho no chão, e puxou sua arma do coldre, apontando para sua testa.

    — Diga a verdade — Marcus ordenou, puxando a trava da Gun Se para trás. — Diga porque trouxe essa mentira para nossa casa. Fale ou estouro seus miolos.

    Secure fechou os olhos, erguendo as mãos. Não tinha como rebater aquela ira inteira, mas se fechasse os olhos, poderia não ver o disparo.

    — Marcus. — Clara tocou seu braço, a voz chorosa. — Não é assim que fazemos as coisas.

    — Mas, ele está mentindo.

    Clara balançou a cabeça, e foi para sua frente. Os olhos do homem eram vermelhos, mas não da raiva, eram o vermelho das lágrimas que pareciam secar antes mesmo de encontrar sua pele.

    A raiva havia secado seus olhos.

    — Ele está mentindo. — Marcus brandiu o braço, quase gritando. — Diga que está mentindo, droga.

    Clara tocou seu ombro, e ele a encarou. Foi apenas questões de segundos. Sua raiva se transformou em tristeza, uma decadência que o fez perder a força. Secure viu o atirador desabar de joelhos, tremendo.

    Não fazia ideia de quem era Dante para essas pessoas nem o que tinha feito por eles, mas… tinha certa inveja.

    Pelo menos, no final de sua vida, o Comandante Dante foi amado. Uma morte triste de gente que o amava por quem realmente era.

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