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    Dante ficou de pé. Enfiou os pés dentro da bota velha e maltrapida, e depois teve um casaco jogado por cima de seu ombro. As correntes no seu pulso foram para seu tornozelo. Tinha tentado fazer força, quebrá-las com facilidade, mas ouviu de Pomodoro:

    — Não vai conseguir, nem precisa se esforçar.

    Pomodoro foi quem cuidou dele nos últimos meses quando esteve desacordado, mas não esperava um doutor tão novo, na casa dos trinta anos, tão desengonçado. Ele não aparava as barbas, não usava roupas elegantes e sequer parecia se importar se estava ou não em um navio.

    Aurora velejava por alguma parte do Oceânico Polar I, uma parte do Oceano mais ao sul, longe das Terras Centrais, ou melhor, do Continente Central.

    — Não acredito na sua história — disse Pomodoro cinco noites atrás, depois de Dante ter contado como foi parar em Kappz. — Você viajou dezenas, se não milhares de quilômetros por uma porta? Impossível.

    — Ouvi isso antes também.

    Dante tinha tomado sua sopa de frango com pão. Sua força estava retornando aos poucos a medida que comia, mas longe ainda do seu auge.

    — Não é que seja impossível acontecer. É uma probabilidade de sobrevivência tão pequena, tão minúscula, que a gente não consegue enumerar.

    Até a forma como ele falava era diferente do povo de Kappz. Era mais educado, menos arrogante, e não parecia se importar se Dante tinha as mãos livres. Não sabia se estava o subestimando ou não.

    — É a segunda vez que sou separado do lugar que eu gostava. Estou começando a achar que quando eu gostar desse lugar, vou ser jogado em outro depois.

    — Nem precisa se preocupar com isso, então. Vai detestar Aurora com todas as suas forças. Esse não é um navio a passeio, é um navio de carga. E bom — ele ergueu os olhos do prato —, nós somos cargas também.

    — Somos escravos?

    — Não, não precisa se preocupar com isso também. — Ele falava com tanta leveza que Dante parecia desacreditar que ele realmente era um doutor. — É mais parecido com um prisioneiro. Essa seria a palavra certa.

    Dante deu uma risada.

    — Prisioneiro?

    — Sim. Os prisioneiros são colocados para lavar o convés, esfregar roupas, até mesmo entreter os tripulantes. É por isso que está aqui, vivo. Consegui falar com o Convidado, que falou com o Sargento, que falou com o Tenente, que falou com o Capitão, e que chegou ao Sakamoto, e eles decidiram deixar você vivo.

    — Tanta gente queria me ver vivo? Por que?

    — Como eu disse, você é sortudo. Algumas pessoas enxergam isso como presságio, sabia? E se você pensar bem, da primeira vez você também caiu de um lugar bem alto, não foi? — Pomodoro coçou a cabeça, curioso. — Tudo parece um grande acaso, se pensar.

    Acaso ou não, Dante estava vivo. E Pomodoro também não estava errado em dizer que ele sobreviveu por sorte. Nic, ao seu lado, ainda dormindo, foi quem o salvou. Como? Ainda não sabia. Rupestre deve ter deixado o garotinho de olho em Dante aquele tempo todo.

    Agora, precisava deixar tudo nas mãos deles até seu retorno.

    — Estamos muito longe de Kappz?

    — Da cidade de onde você veio? Longe demais até pra voltarmos.

    Dante praguejou mentalmente. Mesmo que fosse um caso de voltar, faria. Agora, não fazia ideia de onde estava indo.

    A conversa se encerrou quando Pomodoro apagou a lamparina a óleo. Dante deitou-se com a corrente no seu tornozelo, e durante a noite, segurou e puxou. Nada, nem mesmo trincar. Como era possível?

    Ele tinha amassado pedras e ferros, até mesmo quebrado um prédio com o punho. Agora, uma corrente o parava?

    Vick não respondia, Nic dormia ao seu lado, ainda pequeno e confortável. Viajava pra um lugar diferente, longe de Clara, Marcus e o seu pessoal. Longe mais ainda de seus pais. Tudo parecia estar o levando pra longe.

    Dante dormiu se perguntando se esse era realmente seu destino.

    I

    — Ele está comendo gradativamente e sabe se comportar como uma pessoa — disse Pomodoro, de pé, enquanto a mesa de poker era recheada com mais seis. — Os outros prisioneiros fizeram alarde, todos querem ir embora, tentaram atacar os que ajudavam.

    Kamitase, o Convidado, ergueu a cabeça, olhando as cartas viradas na mesa. A fraca luz mantinha todos eles ocultos em seus jogos, praticamente longe de qualquer olhar furtivo. Os demais repetiam o processo, jogando uma ficha a frente, aceitando o desafio.

    — Preciso só de três prisioneiros — respondeu Kamitase. — Deixe o velho, então. Você ainda alega que ele tem muita sorte, e tivemos uma maré de azar desde que zarpamos de Zanatrui. Disse que ele é um prisioneiro?

    — Sim, avisei assim que ele teve capacidade de comer. Tentou se soltar, mas acredito que foi pra testar sua força. Ele está Amaldiçoado.

    O jogo parou. As seis cabeças viraram-se para Pomodoro ao mesmo tempo. Falar sobre Maldições nunca era bom no meio dos jogos.

    — Não use esse termo, doutor — sussurrou Jiana, escondida atrás das cartas, mas os cabelos escarlates fumegavam sua face. — Faz mal pra pele.

    — Esse é um termo genérico. — Pomodoro retrucou. — O velho tem uma doença em seu corpo que o impede de acessar sua Energia Cósmica. Já ouvi falar sobre, mas nunca realmente tive o desprazer de ver pessoalmente. Nesse momento, ele não é nada além de alguém normal. E duvido que essa restrição que ele teve vai torná-lo superior.

    — Restrições são feitas quando crianças. — Butacana virou a cabeça de volta pra mesa. — Ele já é velho demais. Deve ter passado a vida inteira com isso e nunca soube. Não vai ser um problema.

    Pomodoro não concordou. Na verdade, as Maldições datavam a Energia Cósmica do seu portador. Por algum motivo, quando tentou ler a de Dante, algo estranho aconteceu. Não marcava de alguém idoso, de 60 anos ou mais.

    Marcava alguém de trinta.

    Não era a primeira vez que tinha ouvido falar também sobre isso. Falar sobre só traria mais problemas para Dante e pra ele próprio.

    — Gostaria de colocá-lo para limpar o convés durante o dia.

    Kamitase concordou passando o cabelo para atrás da orelha e limpando a testa.

    — Serviço braçal, apenas. Nós vamos nos encontrar com Bulianto essa semana também. Vai ter problema, como sempre. Se ele souber lutar, coloca ele na linha de frente.

    — Ele é um senhor de idade — interveio Jiana, encarando-o. — O coitado vai morrer.

    Novamente, Kamitase encarou Pomodoro.

    — Alguém que cai dois quilômetros dentro do Rio Abissal e não morreu não é um coitado. Estou certo… doutor?

    Essa foi a única informação que Pomodoro não queria ter dito quando tirou Dante da água. Era justamente por esse motivo que Kamitase queria o velho.

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