Índice de Capítulo

    O convés do navio de Bulianto era um caos ensurdecedor. O cheiro de sal queimado e sangue fresco impregnava a brisa, misturando-se ao acre da pólvora e à ferrugem dos cascos corroídos pelo tempo. As ondas se erguiam como muralhas à volta das embarcações, esmagando-se com furor contra as quilhas e espalhando espuma pelos corpos que tombavam sobre as tábuas molhadas.

    O estrondo dos canhões reverberava como trovões distantes, e lanças de ferro cortavam o ar, atravessando homens e madeira com igual impiedade.

    No meio da carnificina, a Vanguarda avançava. Como uma faca rasgando um tecido puído, seus membros se infiltravam entre as fileiras inimigas, os mantos vermelhos tremulando como pequenas labaredas de determinação. Dante seguia logo atrás de Porto, os olhos varrendo o campo de batalha.

    Um machado zunia em sua direção. Ele girou o corpo no último instante, sentindo a lâmina se cravar no mastro ao lado. O impacto fez a estrutura estremecer, lascas de madeira voando como estilhaços. Ele não teve tempo de pensar; seguiu em frente, os pulmões ardendo com o cheiro de morte e fumaça.

    No horizonte encharcado de guerra, duas figuras se destacavam em silêncio: Bulianto e Bastardo, cada um em seu navio, observando a batalha como dois reis antigos, decidindo o destino de peões. Eles não se moviam, não davam ordens, não erguiam espadas. Não precisavam. O verdadeiro duelo acontecia através de suas tropas, um xadrez jogado com sangue.

    Foi então que um clarão avermelhado chamou sua atenção. Do outro lado do convés, Thelia lutava contra um homem envolto em chamas vivas. Chama Viva. O nome era bem mais que um epíteto exagerado. Seu corpo ardia como um archote amaldiçoado, a pele se despedaçando e se regenerando em um ciclo grotesco de dor e poder. Seus olhos, duas brasas brancas incandescentes, fixaram-se nela com um misto de ódio e fascínio.

    — Thelia da Vanguarda — rugiu ele, e sua voz crepitava como lenha seca no coração de uma fogueira. — Eu demorei anos para chegar até esse momento. Anos esperando para o nosso reencontro.

    Thelia não respondeu. Apertou o cabo do machado, a lâmina já suja de fuligem, e avançou. Movia-se com precisão, cortando o ar com golpes medidos, buscando as brechas entre o calor e o perigo. Mas Chama Viva não era um inimigo comum. Ele se esquivou do primeiro ataque e respondeu com um jorro de fogo que saltou de seu punho cerrado. Thelia rolou para o lado, mas não rápido o suficiente. As chamas a lamberam, deixando marcas escuras em padrões serpenteantes sobre sua pele.

    Dante tentou correr em sua direção, mas dois mercenários de Bastardo caíram sobre ele, espadas zunindo. Ele bloqueou um golpe, chutou o outro no estômago, girou para decapitar o primeiro. Tudo em instantes. Mas quando olhou de novo, a cena diante dele fez seu sangue gelar.

    Chama Viva agarrara Thelia pelo pescoço. Os dedos incandescentes cravaram-se em sua carne, e um chiado doentio encheu o ar — o som da pele sendo queimada, do couro defumando. Thelia gritou, mas não cedeu. O joelho dela subiu com força, atingindo a perna do inimigo. Chama Viva vacilou, sua boca se abrindo em surpresa e dor. Por um instante, pareceu que ela escaparia. Mas então ele a arremessou com uma brutalidade desumana.

    O impacto contra a parede do convés soou como um trovão. Thelia deslizou para o chão, os olhos cerrados, o peito arfando. O couro de sua armadura fumegava, e o cheiro de carne queimada era forte o bastante para encher sua própria boca. Mas seus olhos, quando se abriram, ainda ardiam com a mesma ferocidade de sempre.

    — Você… sempre foi… um covarde — cuspiu ela, sangue escorrendo pelo canto da boca. — Se esconde… atrás do fogo.

    Chama Viva riu. O som era como o estalar de um incêndio devorando uma casa.

    — Sempre fui eu mesmo, vivendo uma vida inteira cheia de erros. Mas, os seus, aqueles que não puderam esconder, foram simplesmente taxados impunes. Eu vivi aquela vida infernal enquanto você e seu irmão navegavam sem um pingo de consideração.

    Ele ergueu o braço. As chamas se concentraram em seu punho, se torcendo, se contorcendo como serpentes vivas. O golpe final vinha.

    Foi quando Porto surgiu como um raio. Sua espada se ergueu, brilhando em um arco prateado. A lâmina cortou o ar. E cortou o pulso de Chama Viva.

    A mão incandescente caiu no convés, ainda se debatendo como um animal decapitado. O grito do homem misturou-se ao rugido de Porto:

    — NINGUÉM TOCA NELA!

    Chama Viva recuou, horrorizado. O sangue dele não escorria — evaporava, erguendo-se em fios vermelhos e dourados, como um espectro se dissipando ao vento.

    Dante finalmente conseguiu correr até Thelia. Thahaus também se aproximou dela, chegando mais perto e envolvendo uma pequena camada de gelo em sua ferida. Thelia tentou se levantar, mas seu corpo a traiu.

    — Não se mexa — ordenou Trahaus, puxando-a para trás de uma barricada improvisada.

    Thelia olhou para ela, os olhos turvos pela dor, mas a voz firme como sempre.

    — O Bastardo… ele… Não podemos… deixar.

    — Ninguém vai a lugar nenhum.

    A espada de Chama Viva dançou sobre Porto, o envolvendo em um combate a curta distância. Mesmo criando uma proteção adequada para o seu corpo, ainda estava sendo forçado a recuar mais e mais.

    Mesmo durante aquele pequeno tempo de espaço e com uma mão faltando, Dante pensou que Porto conseguiria segurá-lo. Ao ver o homem sendo cortado na lateral, chutado contra o solo e tendo chamas expelindo por todo o seu corpo em vapor, ele teve que se levantar.

    — Rato — gritou Chama Viva. Suas chamas vibrando pelo seu corpo enquanto Porto recuava se arrastando pelo chão.

    Pouco tempo, e tinha feridas por toda a pele férrica. Mesmo sua habilidade não foi possível de aparar com completude. As chamas, quando tocadas, faziam um estrago.

    — Deixou nossa cidade para morrer — continuou gritando. Sua voz misturando-se a explosão que ocorria ao redor. Até no ar haviam pessoas lutando, se encontrando e repelindo.

    Dante nunca imaginou que no mar, as batalhas ocorriam da mesma forma que em terra. Sempre achou que o uso de canhões ou pelas correntes eram o normal. As histórias que seu pai contavam para ele pareciam desatualizadas quando via aquilo tudo.

    — Hoje, sua morte vinga aqueles homens que deixou. — A espada de Chama Viva se elevou novamente, alta e clara. Sua luz iluminava bastante, chamando atenção dos arredores. Nenhum dos homens que Bulianto se mexeu. — Consegue ver que foi deixado para morrer, rato?

    — Deixado pra morrer é uma palavra muito forte, hein.

    Chama Viva olhou pro lado. Dante vinha caminhando em sua direção. Ele puxou a espada da cintura, forçando seu sorriso.

    — Desculpe, garoto. Estou um pouco enferrujado, mas vou fazer o suficiente para que não chame meu colega de rato. Quer se vingar dele? Vai ser interessante ver você tentar.

    Antes do homem se mexer, o velho surgiu na frente dele. Sua mão livre acertou seu estômago, o fazendo dar um passo para trás. A mesma mão fez um ataque para cima, acertando seu queixo, e antes dele se mover, um soco pra baixo, o fazendo cambalear.

    — Ei — Dante virou para Porto, ainda caído. — Quer limpar o chão ou o que? Vaza daqui.

    — Maluco.

    Porto se levantou correndo. Antes que Chama Viva pudesse ir atrás dele, Dante deu um passo ao lado, o impedindo.

    — Não vamos apressar o que não deveria ser apressado, rapaz. Pode vir, fico no lugar dele.

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