Índice de Capítulo

    A batalha rugia como uma fera faminta, devorando tudo em seu caminho. O ar estava pesado com o cheiro de sangue, fumaça e o odor metálico da energia cósmica que emanava dos navios. O céu, outrora límpido, agora era uma tapeçaria de cinzas e faíscas, iluminado pelos clarões das explosões que ecoavam como trovões distantes. E no meio desse caos, Nekop, o anão de olhos astutos e mãos calejadas, entregou a notícia que cortou como uma lâmina.

    — O Capital caiu — sussurrou Nekop, sua voz rouca e apressada, como se temesse que as palavras pudessem atrair a ira dos deuses. — Senhor, o jogaram no mar. Foi aquele maldito do Cloud.

    Bulianto, o Rei do Leste, ergueu os olhos, seu rosto marcado pela guerra e pela idade. Seus olhos, frios como o aço, fixaram-se no horizonte distante, onde as chamas dançavam como espíritos vingativos. Cloud. O nome ecoou em sua mente como um sino funerário. Por quanto tempo aquele demônio se escondeu? Anos? Décadas? Era possível que ele ainda respirasse, ainda lutasse, depois de tudo o que haviam passado? Bulianto não queria acreditar. Não podia. E, no entanto, a realidade era mais cruel do que qualquer pesadelo.

    — Temos que recuar — declarou Bulianto, sua voz firme, mas carregada de um peso que nem mesmo ele podia disfarçar. — Não temos como vencer essa batalha sabendo que a qualquer momento o Rei do Oeste pode estar vindo.

    Nekop hesitou, seus dedos trêmulos apertando o caderno que carregava como um talismã.

    — Senhor, não… se nós recuarmos agora…

    — Eu sei o que vai acontecer — interrompeu Bulianto.— Eu não temo nada disso. É só um título.

    Mas não era só um título. Era muito mais que isso. Era a honra de um povo, a história de uma bandeira, a vida de centenas que dependiam de sua liderança. Os feridos se amontoavam na retaguarda, seus gritos de dor ecoando como um coro macabro. Os Técnicos, com suas habilidades, mas sem forças não seriam suficientes para deter a horda que avançava. Eles seriam esmagados, dilacerados, reduzidos a nada mais que carne e osso. A vida de muitos pelos de poucos…

    — Não — Bulianto decidiu, sua voz ecoando como um trovão. — Vamos recuar. Avise a todos. Se o Bastardo for honrado, então, ele aceitará esse tratado.

    Nekop engoliu em seco, sua garganta seca como o deserto. Era a primeira vez que via seu rei recuar. Bulianto, o homem que nunca vacilava, que nunca dava um passo para trás, agora estava cedendo terreno. O anão sentiu um nó se formar em seu estômago. Algo estava errado. Algo estava muito errado.

    Antes que Nekop pudesse se mover, uma segunda explosão sacudiu o campo de batalha, enviando uma onda de choque que fez o chão tremer sob seus pés. Bulianto virou-se rapidamente, seus olhos buscando a origem do caos. Tharaus e Thelia, dois de seus comandantes mais leais, estavam cercados por uma dúzia de homens. A explosão partira de Fockus, o pirata de chamas dançantes, que ainda respirava, ainda lutava, suas chamas tentando penetrar a armadura de Thelia.

    As chamas de Fockus eram um problema. Não apenas queimavam a carne, mas consumiam a alma, deixando para trás apenas cinzas e desespero. E, como se não bastasse, atrás de Fockus estava Tierre, a Sombra de Espada, um homem que deveria estar trancafiado nas profundezas de Fellos Coto, a prisão inexpugnável no coração do Oceânico Polar II.

    — Por que a Sombra de Espada está presente? — Bulianto murmurou, sua mente girando em busca de respostas. — Ele não estava trancafiado em Fellos Coto?

    Fellos Coto, a fortaleza impenetrável, governada por uma força marinha tão elaborada que até os deuses hesitariam em desafiar. Tierre havia sido um dos poucos tolos o suficiente para tentar, e pagara o preço com uma sentença de prisão perpétua, privado de qualquer raio de sol. Como o Bastardo o tirara de lá? Como ele conseguira reunir tantos aliados, tantos inimigos do passado, sob sua bandeira?

    Cada pergunta levantava mais dúvidas, mais incertezas. Bulianto sentiu um frio percorrer sua espinha. As respostas eram simplesmente impossíveis de serem respondidas, e isso o perturbava mais do que qualquer lâmina ou chama.

    — Senhor — Nekop chamou, sua voz agora carregada de um tom choroso. — O Bastardo negou o pedido de recuo.

    Bulianto fechou os olhos por um momento, respirando fundo. — Então, era exatamente o que nós pensávamos.

    — Não, senhor. Não é isso. — Nekop ergueu o caderno, suas mãos trêmulas segurando as páginas que registravam as palavras do Bastardo. — Ele disse que só faria um recuo se o senhor… me entregasse.

    Bulianto leu as linhas, suas palavras queimando como fogo em sua mente. “Nekop é o único que realmente tenho interesse. Sua Vanguarda, seus Técnicos ou Curandeiros, nada disso importa. Nem esse seu navio fedendo a Energia Cósmica. Eu quero Nekop, apenas.”

    O anão baixou a cabeça, sentindo-se pequeno, insignificante, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. Bulianto nunca o entregaria. Ele sabia disso. Nekop era mais que um servo, mais que um aliado. Ele era o braço direito do rei, a mente por trás de muitas de suas vitórias. Mas, no fundo, o anão sabia que, se fosse necessário, Bulianto faria o sacrifício. E isso o assustava mais do que qualquer batalha.

    — Avise a todos, Nekop — Bulianto ordenou, sua voz agora suave, quase um sussurro. — Preparem-se para o pior.

    E, enquanto o anão se afastava, Bulianto olhou para o horizonte, onde as chamas dançavam e os gritos de guerra ecoavam. Ele sabia que o dia seria longo, e que o preço da vitória — se é que ainda havia uma vitória a ser conquistada — seria pago em sangue e lágrimas.

    E a decisão dos seus inimigos fosse tomar o que ele conquistou, então, morreria protegendo. Não era o título que ele queria, era a própria desordem. A própria vida do seus aliados.

    Isso, Bulianto não aceitaria. Nem hoje, nem nunca.

    — Vou para o campo de batalha — anunciou previamente.

    Os olhares que o seguiram se tornaram cheios de dúvida e descrença. Não, um Rei não poderia entrar em uma luta, Bulianto sabia bem disso. O problema era que agora que ele tinha feito o recuo, rejeitado por isso, então, ele faria questão de ir para o campo.

    — Um Rei não pode interferir na batalha sem que outro Rei esteja presente, senhor — murmurou Nekop, sua voz carregada de um temor que ele raramente demonstrava. O anão estava de pé, seu caderno apertado contra o peito, como se as palavras escritas nele pudessem de alguma forma mudar o curso dos eventos.

    Mais do que qualquer outro homem, Bulianto sabia bem disso. Viveu sua vida inteira dessa maneira, lutando contra Reis, mas agora, ele precisava salvar os seus subordinados. E se a sua vida dependesse disso… seria assim.

    — Nekop — Bulianto finalmente falou, sua voz grave e imutável. — Coloque Repard no comando. Se eu morrer, ou se o Bastardo vencer esta batalha, peça para ele zarpar na direção de Trumam. O Convidado estará lá. Avise sobre o que aconteceu aqui e diga que não é para buscar vingança.

    O anão engoliu em seco, suas mãos trêmulas apertando o caderno como se fosse sua única âncora em um mar tempestuoso.

    — Não, senhor. Por favor, se o senhor morrer, o mar será devastado. Nossas cidades… tudo será sitiado. Vamos perder tudo o que construímos.

    Bulianto virou-se para Nekop, seus olhos queimando com uma intensidade que fez o anão recuar involuntariamente.

    — Se algum dia perdemos tudo, só nos resta construir — disse ele, sua voz suave, mas carregada de uma determinação inquebrantável. — Não foi o que você me ensinou quando começamos essa jornada? Então, vamos em frente.

    Nekop abriu a boca para protestar, mas as palavras morreram em seus lábios. Ele conhecia aquele olhar.

    Era o mesmo olhar que Bulianto tinha naquela noite, anos atrás, quando eles haviam jurado construir um reino no mar onde a justiça e a honra não fossem apenas palavras vazias. Era o olhar de um homem que já havia perdido tudo uma vez e estava disposto a perder tudo de novo, se necessário, para proteger o que restava.

    — Pelo Leste — a voz saiu fraca da boca de Bulianto. — Pelos nossos.

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