Índice de Capítulo

    Clara abriu a porta da nova sala de reuniões, um espaço amplo e austero, com paredes de pedra refinadas, bem limpas e organizadas e uma longa mesa de madeira escura que ocupava o centro do cômodo. A lâmpada rugia sua fraca luz amarelada ao redor,, iluminando o pó que dançava no ar.

    Kalish, o Soberano de Consyegas, entrou com passos firmes, seus olhos escaneando o ambiente com uma mistura de curiosidade e cautela. Ele puxou uma cadeira pesada, sentou-se e debruçou os braços sobre a mesa, suas mãos entrelaçadas como se estivesse segurando algo invisível. Clara sentou-se à frente dele, seus olhos fixos no homem que, apesar de tudo, ainda mantinha uma aura de autoridade inegável.

    — Acho que ainda não tivemos uma conversa apropriada desde… bem, o incidente — começou Kalish, sua voz grave, mas carregada de uma hesitação incomum.

    O incidente. As palavras ecoaram na mente de Clara como um sino funerário. O incidente que tirara Dante da Cuba, do único lugar que ele considerava casa além da Capital. Ela não precisava compartilhar da mesma percepção que Kalish tinha do homem; afinal, ele não havia feito nada de errado. A ideia de um acordo havia sido mútua, uma decisão tomada em tempos mais simples. Mas agora, tudo o que restava era dor. Dor ao lembrar que Dante havia feito uma escolha ruim, uma escolha que o levara para longe dela.

    — Ainda não se sabe o que aconteceu, não é? — Clara foi direta ao ponto, sua voz firme, mas com um tom de desespero contido.

    Kalish inclinou a cabeça, seus olhos estreitando-se levemente. — Por que pensa assim?

    — Você sempre manda cartas quando quer dizer algo sobre as investigações que fez no Farol. Já se passaram mais de três meses, e não tenho uma resposta objetiva — respondeu Clara, tentando não parecer presunçosa diante do Soberano que, mesmo após o rompimento do acordo, ainda a ajudava. — Só queria entender melhor por que veio me ver hoje.

    Kalish remexeu-se na cadeira, claramente incomodado. Seus dedos tamborilaram levemente na mesa, como se estivesse tentando encontrar as palavras certas.

    — Não posso dizer que minha cidade tem sido beneficiada. Heian é um ótimo rapaz, me ajudou bastante com algumas coisas, e seu amigo Duna também refez algumas das principais armas que tínhamos dificuldade em consertar. Então, sei que nosso acordo prevalece. Não queria deixar que parecesse que estou apenas usufruindo dos seus subordinados.

    — Moradores — corrigiu Clara, sua voz suave, mas firme. — Eles são moradores da Cuba.

    — Perdão. Não quis ofender — Kalish baixou o olhar por um momento, como se estivesse se repreendendo mentalmente. Em seguida, inclinou-se para o lado, pegando um pequeno caderno de anotações e esticando-o pela mesa em direção a Clara. — Eu vim trazer isso também. É a nossa oferta, com as condições que temos.

    Clara pegou o caderno, suas mãos delicadas folheando as páginas até chegar à última. Havia diversas marcações e contas feitas, números riscados e recalculados, como se alguém tivesse passado horas tentando equilibrar uma equação impossível.

    — Que tipo de oferta? — perguntou Clara, erguendo os olhos para Kalish.

    — Fui saber que Dante e você tinham muito mais do que apenas amizade. Eram companheiros — Kalish falou, sua voz mais baixa agora, quase um sussurro. Ele parecia ainda mais incomodado, como se estivesse invadindo um território privado. — E como uma mulher que está comandando a Cuba, creio que esses últimos dois meses foram suficientes para deixar claro que existe futuro na sua casa.

    Clara levantou a cabeça, seus olhos estreitando-se em confusão. — Do que está falando?

    — A Zona Cega já ficou muito mais perigosa nos últimos meses, e isso tem deixado muitos dos nossos moradores mais velhos ansiosos e angustiados — Kalish gesticulou para o livro, como se ele contivesse todas as respostas. — Esse seria o nosso livro contábil, que nos mostra o rendimento que temos mensalmente, e também como podemos continuar mensurando cada vez mais a situação da Cuba.

    Clara ainda o fitava, tentando decifrar as intenções por trás de suas palavras. — Quer investir seus recursos aqui, Kalish?

    — É uma escolha que tive que fazer porque algumas coisas vão mudar na Zona Cega — ele respondeu, sua voz agora mais grave, como se estivesse carregando um peso imenso. — E depois que tudo se tornou mais caótico por conta do Confyete, os outros dois Soberanos pediram que eu doasse uma parte das fazendas para eles.

    Clara sentiu um frio percorrer sua espinha. Ela conhecia pouco das regras dos ganhadores, mas sabia que, quando um deles se tornava o vencedor, poderia criar uma regra dentro da Zona Cega que os outros deveriam seguir sem questionar. Era um jogo de poder perigoso, e Kalish estava claramente encurralado.

    — E o que você fez? — perguntou Clara, sua voz suave, mas carregada de uma tensão palpável.

    — Eu dei o Farol para eles. Por isso, estou aqui hoje, Clara — Kalish baixou a voz ainda mais, como se temesse que alguém pudesse ouvir. — Se você aceitar o acordo, posso trazer as fazendas. Sei que podemos conciliar uma forma de prosperar dentro desse inverno, mas daqui a um ano, se eles continuarem a ganhar aquela disputa, tenho certeza que vão tomar Consyegas inteira.

    Clara ficou em silêncio por um momento, seus dedos ainda passando pelas páginas do caderno. Então, ergueu os olhos, fixando-os em Kalish com uma intensidade que fez o Soberano hesitar.

    — Então, aqui seria sua nova casa? — a pergunta foi uma faca afiada, cortando o ar como um golpe certeiro. Clara queria a resposta dele, queria entender o que o motivava a escolher a Cuba. — Por que não criar algo do zero com suas regras, longe daqui? Por que escolher a Cuba?

    Kalish respirou fundo, seus olhos fechando por um breve momento antes de se fixarem novamente em Clara.

    — Porque sei que vocês têm muita gente disposta a crescer, mas não têm nenhum patrocinador. Se acha que eu quero comandar essa cidade, pode esquecer — ele negou com o dedo, sua voz firme agora, como se estivesse tentando convencer a si mesmo tanto quanto a ela. — Não quero nada disso. Quero apenas que as pessoas que confiaram em mim possam continuar vivas sem aquela opressão inteira.

    Clara observou-o por um longo momento, tentando decifrar a sinceridade em suas palavras. Finalmente, ela fechou o caderno e o empurrou de volta para ele, seus olhos ainda fixos nos dele.

    — Então, vamos fazer isso — disse ela, sua voz suave, mas carregada de uma determinação que ecoou pela sala. — Mas saiba que, se você trair a Cuba, não haverá lugar no mundo onde possa se esconder de mim.

    Kalish assentiu, seu rosto sério, mas com um brilho de respeito nos olhos.

    — Entendido.

    I

    Dante via a luz do sol dançando sobre a superfície do oceano, um brilho distante e irreal, como um sonho que se desfazia ao toque. Ele estava caindo, as raízes grossas e retorcidas ainda se enroscavam em seu corpo, puxando-o para as profundezas escuras. Quanto mais ele lutava, mais as raízes pareciam se apertar, como se o próprio mar conspirasse para mantê-lo submerso. Não era difícil imaginar que, quanto mais força ele fizesse, mais fundo afundaria. Era uma ironia cruel, uma lição que o oceano parecia ansioso para ensinar.

    Cloud fizera um comentário, breve e cortante, que agora ecoava na mente de Dante como uma faca girando em uma ferida aberta. As palavras do homem eram como veneno, infiltrando-se em seus pensamentos, corroendo sua confiança.

    Estou cometendo os mesmos erros de antes? A pergunta martelava em sua cabeça, incessante. Estou sendo impaciente? Por que parece que fui derrotado de novo?

    Sua técnica não era ruim. Ele treinara por anos, suportara derrotas humilhantes, aprendera com cada erro. Sua habilidade o tornara forte, ou pelo menos ele acreditava nisso. Mas sempre que uma situação de risco surgia, a derrota parecia inevitável, como se fosse seu destino final.

    Estava errado.

    A dúvida era um peso maior do que as raízes que o arrastavam para o fundo. Por que? É sempre assim? Eu sempre perco. Eu sempre caio. Eu sempre sou jogado de lado. Ele segurou a própria roupa, os dedos crispados contra o tecido molhado, como se pudesse se agarrar a algo sólido em meio ao vazio aquático.

    Os dias que passara vivendo com Clara, os momentos em que se sentira um verdadeiro guerreiro, o dia em que enfrentara Moonlich e testemunhara seu sacrifício… Tudo isso valera a pena? Por que ainda sorria quando lutava, quando seus inimigos o levavam a sério? Eles queriam matá-lo. Sempre da mesma forma. Sempre com a mesma frieza.

    O mundo é assim por natureza, ou sou eu quem não entendeu de verdade como as coisas funcionam?

    Dante largou o casaco, que flutuou para longe como uma sombra desbotada, e segurou a raiz com ambas as mãos. Ele afundava mais e mais, distanciando-se da luz, da superfície, da vida. O ar escapou de seus pulmões em bolhas prateadas, subindo em direção ao sol que ele não podia mais alcançar. Ele fechou os olhos, os punhos cerrados com uma força desesperada.

    Eu preciso voltar para casa. Preciso voltar… para todos eles.

    Todas as lutas que enfrentara, todas as disputas que se encerraram enquanto ele dormia, quantas pessoas realmente desejariam estar diante dele agora? Quantas delas ainda o consideravam digno de confiança, de lealdade? Ele não sabia. Mas uma coisa era certa: ele não podia desistir. Não agora. Não depois de tudo.

    As águas ao seu redor estavam frias, escuras, implacáveis. Mas dentro dele, uma chama teimosa ainda ardia. Ele abriu os olhos, fitando a escuridão que o cercava, e apertou ainda mais forte a raiz.

    Eu não vou morrer aqui.

    E, com um último esforço, ele começou a puxar-se para cima, lutando contra o peso do oceano, contra a dor que latejava em seu corpo, contra a dúvida que insistia em sussurrar em seu ouvido. Ele não sabia se conseguiria. Mas sabia que tinha que tentar.

    Porque, no fim, era tudo o que lhe restava.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota