Capítulo 271: Fuga
O Bastardo não pôde evitar a surpresa ao ver seu colega ser arremessado como um saco de farinha velho. O velho, que mal se movera, permanecia imóvel, como uma estátua de pedra envelhecida pela chuva e pelo tempo. A água do mar escorria de suas roupas encharcadas, pingando no convés do navio com um som constante e irritante. Ele não parecia um homem fácil de lidar. Entre os guerreiros de Bulianto, aquele velho fora a surpresa mais desagradável. Derrotara Fockus, libertara Miatamo da armadilha e salvara Guaca. Poderia ter matado todos eles, se quisesse. Mas não era esse o plano. Matar Bulianto, como fizera, era a verdadeira missão.
— Já vi homens que serviram a causas maiores do que essa, Capital — disse o Bastardo, sua voz carregada de um desdém calculado. — Não quero que você seja mais uma vítima desse caos que está se instalando. Se o que deseja é o Desejo, então, eu lhe concedo um.
Dante arqueou uma sobrancelha, seus olhos frios fixos no homem que agora se postava como o novo Rei do Leste. — Ah, é mesmo? E como vai fazer isso?
Ele detestava mentirosos, mesmo sabendo que às vezes mentiam por um bem maior. Nesse caso, porém, ninguém ali queria acreditar no Bastardo. Nem Dante.
— Posso lhe dar opções de como alcançá-lo — continuou o Bastardo, sua voz suave, como a de um mercador oferecendo uma mercadoria rara. — Existem muitos fatores, alguns que até mesmo você deve desconhecer. Este oceano, estas águas, são fruto do chamado Lagmorato. Você não deve conhecer nada sobre isso, mas é uma lenda a que poucos têm acesso. O Desejo é concebido nesse ato, quando o Lagmorato é desafiado e vencido.
Lagmorato… no meio do oceano? Dante não queria que eles soubessem que aquelas palavras tinham tocado algo dentro dele. Então, sequer fez menção de olhar para cima. Apenas respirou fundo e balançou a cabeça, como se estivesse dispensando uma história infantil.
— São só histórias, como todas as que ouvi antes de parar aqui — respondeu Dante, sua voz firme, mas sem hostilidade. — O que quero é voltar para casa, para onde nunca deveria ter saído.
— E eu posso lhe conceder isso — disse o Bastardo, um sorriso estreito surgindo em seus lábios. — Diga-me onde fica a Capital, e farei com que você esteja lá. Mas terá que se ajoelhar diante de mim e declarar que serve ao novo Rei do Leste.
O corpo de Bulianto ainda estava quente, caído ao lado do homem que agora reivindicava seu trono. Nem sequer fora velado. Seus olhos e boca permaneciam abertos, um desrespeito gritante para com um homem que, independentemente de suas falhas, fora um líder. Dante não conhecia Bulianto, nem sua história, mas aquela cena era um insulto à dignidade de qualquer guerreiro.
Toda a tripulação do Nokia observava, seus olhos fixos em Dante, esperando. O ar estava pesado, carregado de tensão e expectativa.
— Me ajoelhar, hein? — Dante riu, um som seco e sem humor. — Não vou fazer isso.
— Seu orgulho não permite? — provocou o Bastardo, sua voz agora um fio cortante. — Olhe ao redor. Acha que está no direito de dizer que não se ajoelharia? Eles fizeram. Por que acha que seria diferente com você?
— Porque eu não sou fácil assim de ser mandado — respondeu Dante, sua voz calma, mas com uma frieza que fez o ar ao seu redor parecer mais gelado. — Eu sempre fui fiel ao que acredito, mas não vou me curvar a alguém que armou uma armadilha para tomar um título. A sua guerra é diferente da minha.
A espada do Bastardo ergueu-se, apontando na direção de Miatamo, que estava de joelhos, seu rosto marcado pelo medo e pela resignação.
— Tem certeza disso? — perguntou o Bastardo, sua voz agora um sussurro perigoso. — Sua lealdade tem preço, assim como a de todos eles. O preço vem pela capacidade de realizar algo, pela capacidade de ser alguém. Com Bulianto, vocês não seriam nada.
— Acredito que você não ouviu o que eu disse — Dante estalou os dedos, e a água que encharcava seu corpo foi expelida em um jato violento. Ele levou a mão ao cabelo branco, puxando-o para trás, e começou a caminhar na direção do Bastardo. — Sou Dante, Comandante de Kappz. Venho da Capital, minha cidade natal, e não me curvo para ninguém que seja mais fraco do que eu.
Bom, eu jurei lealdade a Clara, pensou ele, mas não disse em voz alta.
— Então, Comandante — o Bastardo começou, sua voz carregada de uma ameaça velada, — veja o que acontece com aqueles que…
Dante não esperou que ele terminasse. Tensionou as pernas e saltou. Não em direção ao Bastardo, mas em direção a Fockus. O Chama Viva nem o viu se aproximar. Dante o segurou pelo rosto, seus dedos afundando na carne queimada do homem, e o girou com força brutal, arremessando-o na direção dos Irmãos Enguia.
O convés do navio pareceu tremer com o impacto, e o silêncio que se seguiu foi mensurável. Dante deu uma risada quando os homens de Bastardo se mexeram, e brandiu o braço para o lado, criando uma imensa onda que afastou completamente todos.
Um vazio preenchido por olhos famintos. Miatamo, Guaca, os Técnicos e Curandeiros do Nokia estavam todos parados, como se o tempo tivesse congelado suas vontades. Olhavam para Dante em busca de uma ordem, um fio de sanidade naquele caos.
— Estão olhando o que? — Seu grito os acordou. — Não tenho como lidar com todos eles juntos. Precisamos ir, agora. Levantem e façam uma escolta. Eu vou segurar eles.
Porto foi o primeiro a se mover. Seus dedos calejados agarraram o punho da espada caída, e em um só impulso, ele estava de pé. Sem hesitação, cortou o Homem-Mola que avançava em sua direção. A lâmina rasgou o peito do inimigo com um estalo seco de carne e osso, e o corpo dele foi jogado para trás, saltitando como uma marionete sem cordas.
— Vamos. — Sua voz ecoando, fazendo até mesmo o próprio Bastardo ficar imóvel por um tempo. — Não temos tempo. Temos que retornar. Nekop, alguém pegue o maldito Anão.
Miatamo se ergueu do chão, correndo como um javali descontrolado na direção da ponta. E os homens do Bastardo se enfiaram diante. Mas, então, Guaca apareceu por cima, também com sua espada erguida.
— Peguem o Anão e recuem.
Miatamo avançou com brutalidade. Um chute no peito do primeiro inimigo o lançou para fora do convés, direto para a boca faminta do mar. O segundo foi agarrado pelo colarinho, arremessado como um saco de farinha sobre outro homem que se aproximava. O terceiro teve menos sorte: Miatamo o apanhou pela cintura e o jogou sem piedade na direção do próprio Bastardo.
Guaca murmurou algo ininteligível, e a madeira do convés gemeu, como se viva. Pequenos buracos se abriram sob os pés dos soldados que tentavam proteger Nekop, e eles despencaram para dentro da escuridão recém-aberta, gritando até que o som fosse tragado.
— O que vocês… — Nekop ficou incrédulo. — Nós…
— Cala a boca. — Miatamo respondeu, seco, e jogou o anão sobre o ombro como quem leva um saco de mantimentos. Virou-se sem pressa e começou a recuar.
Foi no terceiro passo que a sombra apareceu. Silenciosa como um presságio ruim, uma lâmina surgiu das trevas, vindo pelo flanco, mirando a espinha de Miatamo. Mas antes que pudesse atingir seu alvo, algo cortou o ar — uma adaga, discreta e certeira. Ela se cravou no braço da sombra, fazendo-o recuar. A espada caiu, girando no ar antes de bater no convés com um baque surdo.
Trahaus soltou uma risada curta, o som áspero como madeira seca se partindo.
— Recuar! — Guaca ordenou novamente.
— Peguem o anão! — A voz de Bastardo ecoou sobre eles, um grito de desespero disfarçado de comando. — Precisamos do anão!
Uma chuva de flechas foi disparada por trás do Bastardo. Suas pontas se incendiaram, mas no meio do caminho, uma muralha de gelo se formou diante deles.
Dante ficou alarmado quando Trahaus respirava pesadamente ao começar a voltar. A parede simplesmente formou uma cuba, separando os dois lados.
— Está impressionado? — perguntou Trahaus, passando por Dante sem olhá-lo, como uma sombra escorregando pela neve.
Dante deu um sorriso e viu os homens recuando. Do outro lado do gelo, os subordinados do Bastardo tentavam penetrar. Somente Chama Viva teria esse poder, mas Dante não iria simplesmente o parar.
Ele deu alguns passos para trás, ainda encarando o novo Rei do Leste brandir sua espada e continuar gritando. Nenhum Rei que conheceu, nenhum líder deveria ser tão desesperado ao ponto de gritar daquela forma.
Os gritos eram lastimáveis, selvagens, e seguiram ecoando enquanto cada tripulante do Nokia retornava ao navio. As velas haviam sido rasgadas. O convés estava sujo de sangue e cascos quebrados. Fora uma luta difícil. Havia corpos demais.
Dante deixou o olhar recair sobre o corpo de Bulianto, estendido entre os estilhaços de madeira. A boca aberta, o sangue já escurecendo no frio.
— Não se preocupe — murmurou ele. — Vou fazer valer a chance que me deu.
Virou-se para a porta onde Miatamo o esperava, espada em punho, sempre vigilante.
— Vamos, Capital. — A voz dele era grave, com um toque de urgência. — Temos que partir.
— Capital! — gritou alguém.
As chamas se acenderam pela direita. Fockus novamente de pé, quase salivando de raiva. O fogo ao redor de si pulsando, as labaredas ganhando mais cores, um azul e roxo. Dante deu uma risada continuando o caminho para o navio.
— Nos vemos outra hora, foguinho.
Miatamo puxou-o para dentro, fechando a escotilha atrás deles.
O navio tremulou, os contornos se tornando difusos como fumaça ao vento. Em poucos segundos, a embarcação começou a desaparecer, primeiro as velas, depois o convés superior, e por fim, o casco afundou-se em uma névoa fria.
O que sobrou foi somente aquela imagem distorcida, sem nada além de um vento fraco que chocava contra a parede de gelo. O silêncio no meio daqueles navios inteiros, que não conseguiram destruir um único navio e tomar sua tripulação.
O que restou foi apenas a muralha de gelo e o som do vento. Um vazio que parecia zombar dos navios que haviam cercado o Nokia, impotentes diante do fracasso.
— Incompetentes. — A palavra saiu amarga dos lábios de Bastardo. Ele embainhou a espada com um estalo metálico e virou-se, encarando os homens ajoelhados diante dele. Nenhum ousou permanecer de pé.
Bastardo caminhou até o corpo de Bulianto e o chutou de lado, com desdém. O braço do morto se moveu como se ainda vivesse.
— Pelo menos esse aqui está morto — disse ele, quase para si mesmo. — Não foi uma vitória completa… mas perdemos a chance de aumentar nossa influência. Agora, só nos resta tomar as ilhas. Depois, iremos atrás das Rainhas.
Seus passos ressoaram pelo convés destruído, pesados como martelos, enquanto ele retornava ao seu navio. A expressão imóvel, fria como a superfície do gelo que seus inimigos haviam deixado para trás.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.